Ainda
não sei
No
banco da praça, o Professor Gê está sentado como O Pensador do Rodin.
Cumprimento-o, não me responde. Estranho, não é de ficar acabrunhado assim... dou
meia-volta, sento-me ao seu lado: afinal, ele me ajudou tantas vezes, não só
quando fui seu aluno mas, e principalmente, quando comecei a lecionar. A fim de
lhe desanuviar o cenho, pergunto: que se
passa. Era desse jeito que nos abordava em sala de aula ao notar que algo
nos incomodava.
O
Professor Gê aponta a bandeira do outro lado da rua:
“É
um absurdo, para não dizer uma afronta, o dono dessa padaria hastear a bandeira
em uma conjuntura dessas... vê-se, claramente: também debandou para o lado de
lá.”
“Professor”,
digo-lhe, “a bandeira é um símbolo nacional, pode – e, penso eu, deve - ser hasteada
sempre, em qualquer ocasião.”
“Meu
caro, você é um rapaz inteligente, portanto, não venha com esse discursinho
hipócrita, fingindo uma neutralidade que, eu sei, não é do seu feitio.”
O
Professor Gê assume a postura anterior. Insisto:
“Também
não dá para dizer que a bandeira foi colocada ali pelo dono da padaria. Olha, o
mastro está fixado no muro e, ali do lado, funciona uma repartição pública.”
“Suponhamos,
meu caro, que a bandeira foi hasteada por alguém do funcionalismo: ainda assim
me incomoda. Sabemos que, neste momento, os fascistóides que nos desgovernam se
apropriaram da nossa bandeira para vender a falsa imagem de que são
patriotas... Você sabe disso.”
“Sim,
eu sei, professor, e me sinto igualmente incomodado. Mas, não me surpreendo com
essa bandeira aí há uma semana das eleições, afinal, sabemos de que lado a política
local está... Lá no meu prédio está a maior quizumba: o síndico não aceita bandeiras
nas sacadas e janelas, os condôminos penduram assim mesmo... Agora, me explica
uma coisa: outro dia você comentou que não estava mais engajado na política,
que se afastou das redes sociais...”
O
Professor Gê empertiga-se; no estilo catedrático e aguerrido de sempre, me diz:
“Até
o primeiro turno eu estava quieto, sim. A princípio, prometera não me
manifestar porque, você sabe, os tempos estão cascudos e vem chumbo grosso por
aí. En passant, comentei com alguns
amigos que não votaria mais no Ciro, afinal, era preciso derrotar o Imbrochável
já no primeiro turno e só o Lula tinha condições políticas para isso... Mas não
externei publicamente meu voto. Aí entramos na campanha do segundo turno:
avalanches de fake news, discursos de
falsos crentes e conservadores, baixaria em cima de baixaria, tanta canalhice...
fui forçado a me manifestar nas redes. Mesmo assim, estou postando pouco: uma
reportagem aqui, uma entrevista ali, um resultado de pesquisas, evito responder
comentários... os senhores algoritmos deixam você ver?”
Assinto,
atento ao menino que se aproxima.
“Francamente,
não me reconheço: nunca fui contido assim, você sabe... serão estes cabelos
brancos? Lembra o quanto fui engajado, militante mesmo, nas eleições anteriores?
Na época do golpe contra a Dilma, travei discussões infindáveis na escola
particular onde eu lecionava. Conclusão: perdi o contrato. Mas, feito Carlota
Joaquina, saí descalço daquela choldra para dali não levar sequer o pó. Olhando
pelo retrovisor, meu caro, noto: reduzi muito a marcha... Mesmo assim, ontem fui
a Juiz de Fora ver o comício do Lula... bonito, bonito mesmo todo aquele
mundaréu de gente na Praça da Estação.”
O
menino oferece chocolates, diz que não vendeu nada e que precisa ajudar a mãe
doente. “Quantos chocolates tem aí na caixa?”, o Professor Gê indaga. Com o
dedo, o menino conta. O Professor tira da carteira duas notas de vinte. “Me dá todos”.
Os olhinhos do menino brilham e, saltitando feito um antílope, ele atravessa a
praça.
Ah,
o bom e velho Professor Gê. Lembro-me dele, de pé na mesa da cantina da escola,
bradando contra os professores e funcionários que devoravam a carne da merenda
e deixavam para nós, os alunos, a sopa rala de macarrão.
“Não
é comprando estas porcarias açucaradas e cheias de química que mudaremos o
país, mas é o que dá para fazer, por ora... Escuta, estou possesso com a
diretora lá do colégio.”
“Ainda
é a Rivanilda, professor?”
“A
própria. Aquela fascistinha de merda, adoradora de falsos mitos se adonou do
colégio como um césar romano: ninguém consegue tirá-la da diretoria... Na
pandemia, criou um grupo de whatsapp “para facilitar nossa comunicação”, ela justificou.
A principio, relutei em participar daquilo: muita bajulação, muita
hipocrisia... mas acabei ficando no grupo, embora deixe as notificações
silenciadas... Imagina o nome do grupo?”
Minha
vez de franzir o cenho. Ele sorri:
“Colégio Altruístico. Por Júpiter, que título
mais besta. Por que esse nome? Não sei e, se bobear, nem ela sabe, porque o
espírito da solidariedade ou da fraternidade passa longe daquele coliseu, você conhece
aquilo lá... A não ser que se possa considerar altruísmo ficar enviando
mensagens pretensamente religiosas, versículos, orações e essa presepada de
igreja... Rivanilda posta todo dia essas papeatas; acha que, sendo administradora
do grupo, precisa dar o exemplo. “Deus, Pátria e Família”, ela vive escrevendo
sem saber donde vem esse lema.”
“Saí
de todos os grupos do zap.”
“Este
babaca que vos fala devia ter feito o mesmo. Mas, não: fiquei no grupo e, volta
e meia, me pego discutindo com alguns beócios. Outro dia tentei explicar ao
professor de matemática, por A + B, o que foi o Integralismo e por que o lema
surrupiado pelo Inominável me incomoda tanto... quase fui linchado. Meu caro, tento
levar a luz da racionalidade, recebo em troca pedradas de gente medieva e
tacanha.”
Ele
me oferece um chocolate.
“Sabe,
às vezes me sinto como naquela alegoria do Platão: sou o prisioneiro da caverna
que vê a luminosidade, volta para contar e toma uma coça por blasfemar contra a
escuridão. Por isso, desde que começou a campanha, fiquei mais quieto. Porém,
hoje não aguentei: postei no grupo um link falando do absurdo que o governo
quer fazer com os aposentados... você deve ter lido essa proposta abjeta do
Guedes de desvincular o salário mínimo e os benefícios da previdência do INPC.”
O
chocolate está meio mole, lambuza-me os dedos. Assinto.
“Na
hora do almoço, Rivanilda me enviou mensagem no privado. Olha o que aquela
ditadora de merda me escreveu...” - o Professor Gê saca o celular do bolso,
mostra-me a mensagem que printou – “printei, sim, porque Rivanilda é mestra em
apagar as mensagens e depois diz que suas palavras foram deturpadas.”
Ele
me entrega seu celular. Pego-o com cuidado para não lambuzá-lo, leio:
“Bom
dia, professor!!! Por favor, nada de política no grupo Colégio Altruístico.
Veja que ninguém postou nada de política aqui, aí vem o professor com essa
postagem! Fica com Deus!!!”
Devolvo-lhe
o celular. O professor Gê pergunta se li sua resposta, faço que não com a
cabeça. Ele, então, a resume: não se trata de politica e sim de uma matéria publicada
por uma revista explicando as consequências para os trabalhadores e aposentados
brasileiros, se aprovado o projeto do governo.
“Agora
escuta a resposta da fascistinha: Desculpa, professor, mas no atual momento é
politicagem sim! Todas as postagens servem para nortear a decisão dos
eleitores! A postagem deve ser excluída!!... Ah, como esses pontos de
exclamação me irritam: me lembram aquelas revistinhas onde os personagens só falam
com exclamações...”
“E
o que você fez?”
“Não
respondi, também não excluí. Isso é censura, e eu sou veementemente contra a
censura, sempre fui... Lembra aquela vez em que fui à Superintendência porque
queriam proibir a leitura em sala de aula dos livros do Dalton Trevisan, sob
pretexto que seus textos ofendiam a moral? “Censura, censura” bradei na Superintendência...
Venci a peleja, trabalhei os textos com os alunos. E da outra vez em que vieram
com papinho: Monteiro Lobato é racista, é preconceituoso, os alunos não devem
ler mais suas obras... “Censura!” bradei. Ameacei procurar um jornal na capital,
armei um salseiro na Superintendência... Venci de novo: não só lemos as Caçadas
de Pedrinho, como encenamos uma peça baseada no livro. Mais recentemente,
Rivanilda me procurou, disse que alguns pais se sentiram incomodados porque eu lecionei
sobre religiões de matriz africana e levei para a classe imagens de orixás. Ah,
ameacei oficiar o governador, chamar a imprensa... morreu o assunto, pude
trabalhar o conteúdo em paz.”
“E
a postagem lá no grupo, ficou por isso mesmo?”
“O
quê, e aquela Lucrécia Bórgia ia deixar? Ela apagou o link.”
“E
você vai fazer o quê?”
Professor
Gê mira a bandeira, assume novamente a postura meditativa:
“Ainda
não sei, meu caro, ainda não sei...”
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Imagem: acervo do autor