sábado, 26 de fevereiro de 2022

Marcas do tempo

 

        Olhava algumas marcas do tempo no rosto enquanto, autonomamente, escovava os dentes. Sem o vapor do banho, o espelho é mais implacável, Itamar pensou. Súbito, um estrondo CRÁS BUM PÁ típico das revistinhas que ele lera na meninice penetrou pelo basculante. Itamar largou a escova e as conjecturas na pia.

        No cruzamento da Pedro II com a XV de novembro, um Gol abalroara um Palio, empurrando-o contra o muro da escola. Imprensado, o motorista tentava, em vão, abrir a porta. Buzinas impacientes subiam a ladeira, o trânsito congestionava. Curiosos brotavam nas sacadas e janelas; um grisalho de óculos atravessou a rua, fotografando com o celular. Os pedreiros pararam de encher os baldes e rebocar as paredes, certamente pensaram como Itamar: tanto lugar pra bater, bateram logo no muro onde a massa ainda nem secou. A mulher que passeava com o maltês se juntou ao grupo na porta da venda.

        De pé, o motorista parecia aturdido; passou a mão no carro, nos cabelos ralos, olhou ao redor, voltou a tocar o carro...  o homem do Palio falava sabe-se lá com quem. A julgar pelo SOU FELIZ POR SER CATÓLICO colado na traseira, está conversando com algum santo, ou até mesmo direto com Jesus, ironizou Itamar.

        Os pedreiros ajudaram a retirar o Gol; o outro motorista pode finalmente sair e avaliar o estrago. Limpou a mão na camisa; desolado, contemplou os estilhaços no asfalto: dividiam o sol em milhares de pontinhos vítreos. Impertinentes, as maritacas faziam o costumeiro rebuliço no jardim da escola. “O carro prata, menina, parece uma lata de cerveja depois de pisoteada por um bloco de carnaval; o capô afundou, foi parar no volante. O outro é um vinho, está com as laterais destruídas; um dos retrovisores, menina, voou pra longe... não, parece que o cara do carro vinho machucou só a mão; o outro está de costas, não dá pra eu ver.” Itamar ouviu a vizinha do 303 que falava ao celular.

        Os curiosos se aproximavam; em seus olhos o desejo por sangue, mais sangue. Não houve, contudo, altercação, sequer trocas de acusações; o público, desapontado, dispersou. Os motoristas conversavam, conversavam indiferentes às buzinas e ao grisalho que fotografava cada detalhe. Um homem com camisa do Flamengo tentava organizar o sobe e desce dos veículos. Quando a polícia chegou, o guincho se preparava para levar o Gol. Sentado no meio fio “o cara do vinho fala e gesticula sem parar no celular.”

Itamar, cansado de ouvir a vizinha, fechou a janela. Vida que segue, lembrou-se da frase que sempre aparecia nas redes sociais. Voltou ao banheiro; mirou-se, desapontado. HUMMM HAMMM UHHH AHHH penetravam pelo basculante e, dessa vez, em nada lembravam as revistinhas que ele lera na meninice. Observou as entradas e os fios brancos na barba por fazer. Há anos/e com furor/amei-te sincero/entregando-te mais que tesão/e coração. Os versos que rascunhara ao acordar ricochetearam no espelho; agora, contudo, soavam tolos e inúteis.  

Rosenilda entrou na sala. Largou as sacolas no chão: teve a impressão que o patrão falava sozinho.

_ O senhor não sabe o que aconteceu!

Sei sim, ô se sei, Itamar quis comentar. Mas como não adiantava, encostou-se à parede do corredor, esperando o relatório.

_ A filha do véio aí do 607 subiu o elevador comigo agora; chorando, desorientada, os braços tudo roxo. Disse que o marido bateu nela. Me garantiu que não volta mais pra casa; diz que o sujeito tá cada vez mais violento, que dessa vez bateu nela porque ela manchou o uniforme dele com água sanitária... semana passada foi porque ela salgou demais o feijão. Homem assim merece a morte, disgramado dos inferno.

A máscara e a indignação embaçavam os óculos de Rosenilda. O sorriso do patrão deixou-a ainda mais exasperada. Recolheu as sacolas, foi à cozinha. O vizinho cantava no chuveiro; “mais uma dessas porcarias do momento”, Itamar resmungou. Guardou o bozzano e a gilete: amanhã faço a merda dessa barba. Encarou-se novamente: as marcas do tempo e o falatório da empregada fizeram-no esquecer o poema.


Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

 

*publicado originalmente na edição de janeiro/2022 da Revista Conhece-te. 

sábado, 19 de fevereiro de 2022

Resposta aos Senhores da cidade

                                                                 

Perguntam-me por que escrevo tanto sobre minha meninice. Não me furto à resposta, senhores: tendo tão somente a solidão do quarto e o silêncio dos livros, entrego-me à tentação de pensar e escrever sobre os tempos de antanho. Sentado a observar as paredes nuas e uma teiazinha teimosa que une meu Pequeno Príncipe ao Barba Ensopada de Sangue, recordo a infância, materializo-a no papel. E o faço porque prefiro escancarar as janelas da memória e ouvir os ecos das remembranças a dar trela aos ruídos do presente. É preferível, penso, escrever sobre aquele tempinho bom a gastar palavras falando sobre o hoje. Palavras são valiosas como rubis; não devem, pois, ser desperdiçadas.

         Por que falo do ontem, senhores? Porque, se descerro as cortinas, o que vejo é um prédio, horrendo como o Gigante que caiu do pé-de-feijão, a me impedir de assistir ao pôr-do-sol... e é tão triste não ver o sol se pôr! Pelos orifícios desse pavoroso Leviatã, vagam luzes baças e sem graça que revelam silhuetas de doutores, secretárias e outras personagens em constante vaivém laborativo. Da minha janela, vejo-os, penso: parecem formigas às vésperas do inverno.

         Os senhores ainda querem saber por que escrevo sobre o ontem? Eu lhes digo, com toda a vênia que merecem. Porque não tenho mais o direito de ver os tons lilases e arroxeados a riscar o firmamento anunciando o anoitecer; porque tanto concreto e tanto ferro me impedem de assistir ao espetáculo das nuvens se trombando na serra; porque vossos prédios, senhores, me roubaram o direito de ver a chuva chegando mansa, expulsando os caminhantes da praça e das ruas, lavando o telhado da São João Batista. Porque, desde que construíram essa torre de Babel, só consigo ver a lua crescente quando já vai alta e meus olhos já pedem o aconchego dos braços de Morfeu. Mais uma razão, senhores? Eu lhes dou, afinal, não me custa: nas tardes de abril já não gozo mais o direito de deitar na cama e sentir o sol, pouco a pouco, roçar-me o corpo, começando pelos pés e deslizando até o rosto, como um afetuoso amante.

         A Babel, é preciso dizer, não está só: em seu entorno, há prédios igualmente pavorosos que se assemelham a muralhas medievais. Há dias em que me sinto como um soldado, imprensado e esquecido numa casamata úmida, à véspera do derradeiro bombardeio. Luto para não sucumbir mas, como os senhores sabem, o poder do progresso é demasiado. Luto, contudo, como o último guerreiro que ambiciona invadir o castelo do rei; luto como o insano Quixote contra a implacável força de Frestón; luto como o poeta que, na calada da noite, forja o verso final. Lutando, recuso-me a olhar o hoje. Prefiro continuar a olhar pelo retrovisor, pois a memória, eu sei, sempre trará momentos áureos. De sem-gracice me bastam os prédios cinzentos do centro, as paredes cor-de-pastel da repartição, o obituário do Jornal Nacional, as palavras que me chegam da rua quando, à varanda, tento ler alguma literatura...

Senhores, eis, portanto, as razões porque escrevo tanto sobre a meninice e o ontem. Sei que estamos no verão, os dias são claros e fartos, e os senhores certamente devem achar enfadonhos meus textos e queixas. Mas, o outono vem chegando, senhores. “Em vista do que, ponhamo-nos melancólicos”, como escreveu Rubem Braga. E que nossa melancolia nos faça refletir.


 Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

domingo, 13 de fevereiro de 2022

Tentei uma crônica afável

 


Queria escrevinhar singelezas neste início de tarde. Contudo, as palavras ausentaram-se de mim. Ao meu redor, pessoas falam demasiadamente em prazos e processos, sobre a batida na avenida e a falta de chuvas, de Fulano que cada vez trabalha menos e Cicrana que, depois do divórcio, desandou a viajar. Apesar do falatório, faltam-me palavras dignas de ocupar esta folha em branco.

Os clipes largados na mesa dizem pouco acerca das semanas que estive de férias. Da janela, vejo nuvens acinzentarem o dia; mas acho que não choverá. Há anos vivemos assim: reclamando da seca, clamando a São Pedro que envie suas preciosas gotas para encher nossos reservatórios. Porém, nos meses em que as chuvas abundam, pouco ou nada é feito por nós e pelas autoridades para economizar a água. Aí quando o inverno chega, trazendo na mala a estiagem, recomeça o blábláblá de sempre. Ao meu lado, falam em acender velas na cruz da Júlia, fazer novenas, enfeitar a Santa Cruz… Afinal, “a fé não costuma faiá”. Contudo, homem de pouca fé que sou, prefiro ficar no meu cantinho, de butuca no gingado das nuvens.

O telefone toca. O estagiário atende: a linha fica muda, pela segunda vez. Ele ri (os jovens sempre riem); se fosse comigo, resmungaria e praguejaria o resto da tarde... Meu calendário marca: falta pouco para a primavera. Recordo agora, não sei por que, a última vez que estive em Mariana: na estação ferroviária, os ipês amarelíssimos pediam muitas fotos... Olho novamente o céu, saudoso de quando podia viajar. Nos fones, Adriana Calcanhoto me diz “não gosto do bom gosto, não gosto do bom senso, não gosto dos bons modos”. Olhando a página em branco, resmungo: Adriana, também ando desgostoso de tanta coisa...

Finjo que o falatório não me incomoda. Faltam cinquenta e um dias úteis para o ano acabar. Neste cálculo já deduzi as férias que ainda gozarei e os feriados e suas benditas emendas. Risquei-os todos com tinta vermelha: um alento para suportar as semanas vindouras... Retiro mais uma casadinha da gaveta, reviro a mente à cata de palavras para encher a imensidão branca da página. Ao lado da folhinha, a garrafa transpira, quase molha o celular. Ah como eu queria estar sentado na varanda relendo o Veríssimo, ou esparramado no sofá assistindo a velhas novelas. Reprise por reprise, sou mais o Vale a Pena Ver de Novo que esse falatório insano.

Queria escrevinhar singelezas neste início de tarde. Ou, pelo menos, uma crônica mais afável. Tentei, não consegui. Mas, como se diz, o importante é tentar.

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

*Publicado originalmente na Revista Conhece-te, dezembro/2021

Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...