domingo, 22 de maio de 2022

PRIMEIRO DIA DE AULA


Primeiro dia de aula. Como sempre, o ônibus atrasou; já me acostumei: ano passado foi todo assim. Numa noite, o trânsito congestionou a Beira Rio; noutra, o ônibus demorou a cortar as ruas estreitas do Centro; na época das chuvas fortes, os buracos no asfalto reabriram e foi uma dificuldade vencer os vinte quilômetros entre minha cidade e Ares Formosos... Às vezes, eu achava que chegaria no horário, mas o ônibus custava a conseguir vaga no estacionamento; resultado: descer lá longe e andar até a faculdade e encarar seus setenta e um degraus porque o elevador... ah, o elevador vive na promessa da reitoria. Nessas horas invejo a galera da Pedagogia: o curso é no térreo. E ainda dizem por aí que vida de estudante é fácil. Fácil é a vida de parlamentar em Brasília. 

Porta entreaberta. O professor, de pé, ereto no terno preto como um sabugo encasacado, lia o que julguei fosse o conteúdo programático ou a bibliografia. Caminhei até o fundão. Doralina, sempre gentil, deixou o caderno marcando lugar para mim. O Gianecchini sorria, sem camisa, na capa. Sentei, enxuguei o suor da testa; Doralina recolheu o caderno, sorriu; ao contrário do Gianecchini, um sorriso compreensivo: antes de se mudar para Ares Formosos, ela também passou pelos mesmos perrengues que eu. 

No alto do quadro, em letra feia: DOUTOR CLÁUDIO CÂNDIDO. Os colegas acompanhavam a leitura em folhas A4 semelhantes às do professor-doutor. Pedi-lhe uma. Ele abaixou a folha que lhe encobria parcialmente o rosto mal barbeado; o indicador sujo de tinta empurrou os óculos do nariz, a mão voltou ao bolso da calça. 

- Meu caro, não tolero interrupções. Esta foi minha primeira advertência ao adentrar a sala. Mas, como o senhor atrasou-se para a aula... Recapitulando, senhores: atrasos e interrupções não são, e não serão, admitidos; a dinâmica da aula é, como comunicado anteriormente, exposição do conteúdo por cinquenta minutos; findo este prazo, concederei aos senhores, no máximo, dez minutos para perguntas. Friso: perguntas atinentes ao conteúdo abordado em sala de aula; quesitos referentes a tópicos estudados anteriormente não serão admitidos. Vale dizer, os senhores quedarão sem resposta. Matéria lecionada é como água do rio: flui, segue seu curso. O conteúdo ministrado é levado pela correnteza do tempo e o Direito, como os senhores devem saber, não socorre aos que dormem. Regra básica para o bom jurista: nunca perca o prazo. Preclusão, senhores; portanto, aula dada, assunto encerrado. Outrossim, não tolerarei questões sobre tópicos ainda não lecionados; futurologia é para cartomantes, adivinhos e os ingênuos que creem neles. Se os senhores sobreviverem ao longo do semestre, terão oportunidade de ouvir-me prelecionar sobre suas eventuais questões. Dito isto, espero ter deixado claro a metodologia empregada, e espero também não regressar mais a este assunto. Duas coisas enfastiam-me profundamente: I) alunos descompromissados com o horário da aula e II) repetir-me. 

Doutor Cláudio destampou a garrafinha que suava ao lado das canetas, bebericou. Não entendi se a careta foi para mim ou em razão do trem esverdeado que engoliu. Ignorou minhas desculpas com um pigarro, tornou a cobrir o rosto com a folha. Doralina puxou a carteira, seu ombro tocou o meu: acompanha comigo. O professor retomou a leitura, voz arrastada, monótono como as ladainhas de novena que ouvi na meninice.

- Ele só vai dar uma aula mesmo? 

- Disse que ninguém presta atenção no outro por mais de cinquenta minutos. É científico, diz ele. 

- Mas ele vai receber pelas duas aulas né, retruquei, concluindo mais uma espiral no caderno. 

- Pois é. E teve a cara de pau de dizer, desse jeito empolado aí: espero os senhores não tenham quesitos, assim regressarei mais cedo à minha casa: tenho artigos para finalizar e publicar.  

Doralina imitou a voz do professor, tão direitinho... parecia o Tom Cavalcante imitando outros artistas. Sufoquei o riso, copiei os títulos que o professor acabara de anotar no quadro com sua letra ridícula. 

- Estes a inoperante da estagiária não digitou, então os senhores anotem, pois usaremos alguns capítulos do Sussekind a partir da sexta aula, e do Maranhão logo após nossa primeira avaliação. 

- Ninguém questionou esse absurdo de apenas cinquenta minutos de aula? 

Doralina, com a caneta rosa, transcrevia os títulos em caligrafia caprichada; com a roxa, sublinhou-os duas vezes. Metódica, como sempre. 

- O Dauro questionou, foi o único. 

- E? 

- E o professor disse que a metodologia dele é assim, que tem base científica e respaldo da direção da faculdade... só faltou dizer que foi abençoada pelo papa João Paulo II.  

Rabisquei no topo do caderno: ASSHOLE TEACHER.  Doralina riu; sinal que meu curso de inglês estava servindo para alguma coisa. 

- Uai, e ficou por isso mesmo, ninguém falou mais nada? 

- A Danusa pediu pra aula começar um pouco depois das sete. Falou que muitos colegas vêm de outras cidades e chegam atrasados devido ao trânsito e aos ônibus que custam a estacionar... comentou que os outros professores esperam uns dez minutos ... 

- E ele? 

- Disse que é diferente dos outros professores. E Doralina imitou-o novamente: a começar pelo meu título: caso os senhores ainda não saibam, sou o único professor com doutorado contratado por esta instituição de ensino. O único, aliás, desta cidade provinciana... Depois ele falou que a primavera antecede o verão e as andorinhas, o inverno... não entendi muito bem, acho que quis dizer que o bom aluno chega antes do professor. Ah falou também que não é dono das empresas de ônibus, nada tem a ver com “questões de mobilidade de trânsito”, que os prejudicados devem reclamar na prefeitura, ou sair mais cedo de casa. 

- Disgramado filho duma...

- Caso minha preleção esteja a perturbar a confabulação dos senhores aí dos fundos, por favor, avisem-me: não quero ser inoportuno. Posso, outrossim, ceder-lhes a palavra a fim de compartilharem conosco vosso brilhantismo e sapiência. Afinal, o que os senhores têm a dizer certamente é mais instrutivo que minha aula. 

Os bajuladores de plantão riram, feito hienas. Encarei o doutor: seus óculos novamente na ponta do nariz, o deboche escancarado entre as desagradáveis rugas de expressão. Danusa, três carteiras à frente, fez um gesto para eu me acalmar. Dauro saiu, deixou a porta escancarada: um grupo do décimo período conversava debruçado no parapeito do corredor; o relógio da igreja de Santo Ivo marcava 7:35; o tempo virava para chuva.  

 I WILL KILL THIS GUY, garatujei no caderno. Doralina acarinhou minha coxa. Doutor Cláudio bebericou mais um pouco, fez outra careta, tornou a ler. Tentei me concentrar na mão de Doralina ainda a brincar no meu jeans, ousando um pouco além da coxa. Lembrei a noite em que nos entregamos entre as estantes de Constitucional e Penal... por pouco, não ficamos trancados na biblioteca. Não teria sido nada mau, penso. Doutor Cláudio fechou a porta com força, resmungou sobre os alunos no corredor. Àquela altura a mão de Doralina me despertava outros sentimentos, e eu estava pouco me lixando para “o único doutor da instituição”.    




Texto: Raphael Cerqueira Silva 
Foto: acervo do autor 

sábado, 7 de maio de 2022

LEITURA PUXA LEITURA



Leitura puxa leitura, me disse, certa vez, um professor. Vendo-me, como de costume, lendo no pátio da escola, ele parou e explicou: um livro faz referência a outro(s) livro(s) e a filme(s) e a música(s) que, por sua vez, citam outros livros, filmes e músicas... a espiral de referências é infindável e, assim, vamos acumulando repertório, descobrindo novas leituras. 

     Antigamente, as pessoas faziam listas de futuras leituras; o professor mesmo tinha um caderno enorme, brochurão e capa dura, onde anotava títulos de livros para comprar e de filmes para alugar. Com a internet, penso, ficou mais fácil para os curiosos sairmos em busca das referências. Vejam o que me aconteceu ontem. 

Sexta-feira. O Conservatório fechado, a Praça 28 de Setembro - ó milagre! - respeitando o sossego do contribuinte, aproveitei o raro momento de silêncio para ler Ao correr da máquina, crônica de Clarice Lispector escrita em abril de 1971. Depois de discorrer sobre o amor e a verdade, sobre o “dia lindo de outono” e o “homem que veio consertar o toca-discos”, Clarice diz que assistiu ao filme Cada um vive como quer; e arremata: “tinha música e eu chorei”. Rapidamente meu lado curioso se manifestou: opa! preciso ver esse filme que tirou lágrimas de Clarice... Como eu disse, a internet facilita nossa vida: o filme está no Youtube, completo e dublado. Assisti. 

Não chorei, como Clarice; é preciso muito mais para me fazer chorar. Contudo, gostei do filme. Jack Nicholson é Robert, um ex-pianista que rompe com o passado e a família, vive um relacionamento fracassado com Rayette, tem um trabalho e relações de amizade que não lhe satisfazem. Enfim, Robert é o típico homem de trinta e poucos anos que arrasta o viver sem saber para onde... e, além de tudo, tem que ouvir de duas garotas, no fim do boliche, que está ficando careca. Acompanhei o drama de Robert, com atenção. O filme termina do jeito que eu gosto: abrupto, inesperado; só dei conta que acabou porque os créditos surgiram na tela. 

Como leitura puxa leitura... o filme tem muitas músicas, algumas executadas ao piano; fui pesquisar na internet: Chopin, Bach, Mozart. Adicionei-as à minha playlist: música clássica, ouvi vários escritores dizerem em entrevistas, ajuda na hora de escrever. 

De pesquisa em pesquisa, ocupei a noite, que deixou de ser silenciosa: ganhou até trilha sonora. Quem dera o silêncio noturno fosse sempre rompido desse jeito... 

         No momento em que escrevo esta crônica, penso no livro que comprei na internet, cuja indicação apareceu numa crônica do Drummond. Espero que o carteiro não demore a trazê-lo... Em Compre livro no táxi, o gauche conversa com um taxista que, além de levar e buscar passageiros, exerce o árduo ofício de vender livros.... o árduo aí vai por minha conta, afinal, em um país onde poucos leem  - e são as Senhoras Estatísticas que o dizem, não eu – vender livro não deve ser uma atividade muito rentável. 

           Quando o livro chegar, talvez eu escreva umas linhas; desde já, torço para que o autor faça referências a outro(s) livro(s), filme(s) ou música(s)... e que eu tenha mais noites silenciosas para ler/assistir/ouvir em paz.  



Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor


Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...