domingo, 28 de fevereiro de 2021

Shakespeare é indispensável


Leio Shakespeare em uma noite amena. O outono se anuncia, aos poucos, através da aragem que bole com as suculentas no peitoril da janela. Mais acima, auxilia no bailado das nuvens que ousaram encobrir as estrelas e a lua. Hoje a noite não tem luar, canta Renato, e eu leio Shakespeare. Apesar do burburinho na Praça 28 (acho que a normalidade voltou) e dos roncos inquietos das motos a judiar da noite, leio Shakespeare. E por que o lê, indaga o curioso leitor. Porque é indispensável. Leio Shakespeare e me lembro que não escrevi a crônica desta semana. Deixo, então, a ilha de Próspero, a companhia da bela e jovial Miranda, os sonhos de liberdade de Ariel para rascunhar o que, penso, será a crônica de domingo. 

Nesta derradeira semana de fevereiro, vi passar por mim muitos Calibã, Estéfano, Sebastião, Antônio e Alonso. Desfilaram à minha frente, com suas artimanhas e ambições, como tétrica escola de samba; deixaram pelo caminho rastros de torpeza e o odor nauseabundo de ardil e conluio. Ao cabo do desfile, tombaram as máscaras, revelando-se mais uma faceta de seu caráter. Essa gente também me impingiu adjetivos que, confesso, não foram/estão sendo fáceis de digerir... Mas a vida é um palco e muitos atos ainda serão encenados. 

    “Finda a tempestade/o sol nascerá” proclama o sambista. Sinto-me impelido, então, a seguir de cabeça erguida e consciência limpa – e livre, o que é mais importante – repetindo o samba. Em meio a tantas tempestades, creio, há de surgir um facho de luz para aquecer-me o coração inquieto. Por isso não quero, como Kafka, pensar que “existe muita esperança, mas não para nós.”

O vento toca meus cabelos neste resto de noite. Talvez seja Ariel a sussurrar-me: há esperança. Mais aliviado, e com a crônica encaminhada, regresso à ilha de Próspero. Onde, neste momento, outro ardil se encena. Shakespeare, sem dúvida, é indispensável. 




Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: Visconde do Rio Branco (acervo do autor) 


domingo, 21 de fevereiro de 2021

Meu carnaval

     Caminhando no fim da tarde esbarro em um velho conhecido. Com o smartphone nas mãos me diz que está a fotografar pássaros. Penso cá com meus botões: que diacho de pássaros ele fotografa nessa cidade. Aqui, quando o assunto são as aves, temos em abundância pardais e pombos; uns canarinhos dourados costumam avoar por estas terras, mas isso é tão raro que a gente até se esquece deles... Como cada juiz com sua sentença, cada doido com sua mania e cada fotógrafo com seu ângulo, nada comentei. 

    O camarada, então, me perguntou o que fiz no carnaval. O mesmo de todos os anos, respondi e imediatamente me veio à lembrança o ratinho Cérebro que todos os dias prometia a mesma coisa: planos para conquistar o mundo. E os dias se sucediam, monótonos, no laboratório... Com a ambição mais comedida, me contentei em ver televisão e ler. 

    Sem a barulhada dos festejos de Momo pude assistir "Em algum lugar do passado", belo filme que estará em cartaz na Netflix até 05 de março. Com Christopher Reeve no papel de protagonista, o drama de 1980 é encantador. Sem contar que pude matar as saudades do eterno Super-homem e, via de consequência, (re)pensar a finitude da vida. 

    Assisti também Doutor Castor, documentário em quatro episódios que o Globoplay está apresentando sobre a vida do bicheiro Castor de Andrade. O Rio de Janeiro - e o Brasil - dos anos 1980/1990 era um escracho. Se se pensar direitinho conclui-se que pouca coisa mudou. Talvez ficamos mais hipócritas. Jogo do bicho, futebol e carnaval se imbricam numa cumplicidade que choca e, ao mesmo tempo, mostra o quão corrupto é o estado e a elite brasileiros. 

    Também dentro do Globoplay, comecei a assistir a O Bem Amado (1973). Escrita por Dias Gomes, a novela foi a primeira produção a cores no gênero do país e é incrível como continua atual. Odorico Paraguaçu é a cara desse Brasil brasileiro onde mitos e bicheiros, políticos e a escória desfilam em céu aberto como destaques carnavalescos ao som das batidas de um lamentável samba enredo. 

    Acerca das leituras, retornei ao clássico Monteiro Lobato. Reli Viagem ao Céu, Historias diversas e estou concluindo Histórias de Tia Nastácia. No centenário da criação do Sítio do Picapau Amarelo, e quando muitos andam por cá propondo revisões absurdas e até o cancelamento da obra do escritor, é preciso (re)ler o pai de Emília. 

    Mergulhei também na poética de Mário Quintana e Oswald de Andrade, embora os versos deste não tenham me agradado. Saio das leituras encantado com a leveza e a simplicidade de Quintana. Viajei nos gibis (Tex, Novos Titãs, O Fantasma). Estou lendo, bem vagarosamente, o Spleen de Paris, e me dando ao desfrute de mergulhar no lirismo de Baudelaire. Entre um verso e um quadrinho, comecei a lei O Império dos Gibis, uma "biografia" da Editora Abril com destaque para a produção dos seus gibis. 

    Enfim, com tantas coisas para ocupar-me os olhos, não me sobrou tempo para fotografar passarinhos... 

    Mas, à essa altura, meu camarada já não me ouvia. Embrenhado no terreno baldio, estava paradinho feito um urutau à espera de novos ângulos. 





Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 




domingo, 14 de fevereiro de 2021

Boa companhia


        Em cartaz na Netflix: Relatos do Mundo. Nesta noite em que a chuva ronda e a brisa antecipa o cheirinho de outono, topei a sugestão do streaming e fui assistir ao faroeste. Tom Hanks é um veterano da guerra que viaja de cidade em cidade lendo as notícias dos jornais para as pessoas. Em troca de moedas, o capitão Jefferson Kyle Kidd transita por lugares perdidos do Texas narrando ao povo os relatos do mundo. Nessas andanças, o velho Capitão encontra uma menina perdida que se comunica apenas em uma língua indígena. Decidido a levá-la aos seus familiares, Kid enfrentará obstáculos típicos de um bom western.

          Enquanto a sexta de carnaval se exauria e a brisa úmida brincava na cortina, a vastidão do oeste se desenrolava na minha tela e os tiros de Hanks ricocheteavam aqui e ali. Findo o filme, fiquei a cismar qual o primeiro faroeste a que assisti na vida.  Certamente não foi no cinema: sou da época em que Hollywood já não investia seus preciosos dólares nessas produções. Foi na televisão, sem dúvida. Provavelmente no meio de uma tarde modorrenta, talvez na tela da Manchete que sempre reprisava esse gênero. Mas não era apenas a emissora do Bloch que exibia cowboys e apaches; praticamente toda semana as tevês exibiam um bang bang. Nessas sessões vespertinas conheci John Wayne, Kirk Douglas, Clint Eastwood, Robert Redford e outros cowboys dos quais não me recordo os nomes. Lembro alguns títulos: Rastros de ódio, Santa Fé, Caminhos Ásperos, Por um punhado de dólares, Os filhos de Kate Elder... mas os filmes são tão parecidos que acabo misturando na memória títulos e atores.              

Noutros tempos, as ruas estariam lotadas e insuportavelmente barulhentas. Seria carnaval e, com toda certeza, eu não encararia duas horas de filme. Não com as janelas tremendo ao som dos funks e bate-estacas carnavalescos (?). Hoje, felizmente, o som dos rifles, os ricochetes das balas e o tropel das cavalgaduras me fizeram boa companhia.






Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Imaginação avoa

 

IMAGINAÇÃO AVOA

 

carneiro balão trem

castelo dinossauro bola

pião pirâmide urso

todos macios, todos fofos

alvíssimos a flutuar pra lá

pra cá, para o infinito e além

 

entro correndo em casa

imaginação avoa como o quê

lá fora vagam nas horas

a manhã o sol a aragem

as nuvenzinhas amigas




Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: Ilhéus/BA (acervo do autor) 

domingo, 7 de fevereiro de 2021

TEMA PARA FUTURA CRÔNICA

O carnaval vem aí. Oficialmente começa na próxima sexta. Dizem que esse ano não haverá, por conta do corona. Mas como o feriado está mantido no calendário... Quem viver, verá. Se teve maluco festejando o réveillon, é provável que algum Simão Bacamarte saia por aí purpurinado, lançando confetes e serpentinas, exibindo para Momo as coxas brancas e os muques saudosos de academia. Repito: quem viver, verá. Tema para futura crônica (?)

Enquanto isso, o noticiário segue cinzento. Cinzento como este domingo que amanheceu chuvoso e frio, com raios e trovões. Noutros tempos, era bom domingo assim: eu me enrolava no cobertor e ficava o dia todo vendo os programas do Sílvio Santos. Hoje, me contento com uma ou outra série da Netflix. Que por sinal estreou na quinta A Cidade Invisível, que me conquistou o interesse. Tema para futura crônica (?) 

Seguindo a trilha do noticiário cinzento, tivemos eleição na Câmara. Sai a bosta, entra a merda, como diria Juju Jubarte, uma colega de classe. Desbocada como ela só, Juju dizia a palavra exata, nas horas inexatas. Por isso perdia preciosos pontos no quesito disciplina. Hoje, Juju Jubarte seria considerada lacradora e empoderada; naquele tempo, era desbocada mesmo. Tema para futura crônica (?)

Revirando os jornais: o desemprego segue em alta; o preço dos gibis está nas alturas; o combustível vai aumentar; as aulas presenciais voltam e não voltam; Fernanda Montenegro e Lima Duarte se vacinaram sem medo de virar jacaré; no planalto, prorrogarão o auxílio emergencial; Zé Gotinha faz trinta e cinco anos justamente quando a vacinação anda tão desacreditada. Temas para futuras crônicas (?)

Difícil se inspirar. E sem inspiração, não dá para escrever um poema. Diz Oswald de Andrade: mas não há poesia/ num hotel/ mesmo sendo/Splanada/ ou Grand-Hotel. O mundo virou um grande hotel desanimador, de paredes insípidas e broxantes. Para aliviar as tristezas e colorir o domingo que antecede a folia momesca, só mergulhando na poesia modernista. Tema para futura crônica (?)

A chuva cai lá fora (ainda bem, se caísse aqui dentro eu teria que gastar para tapar as goteiras) e vamos com Oswald para fechar esta crônica sem pé e sem cabeça: Há poesia/ na dor/ na flor/ no beija-flor/no elevador. 

P.S: prezados leitores, prometo que a próxima crônica virá mais elaborada. Ao menos, terá pé e cabeça.  




Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: Gramado/RS (acervo do autor) 

Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...