sábado, 2 de setembro de 2023

O que faz a vida valer a pena

 

 

Eu estava sentado ali, no bar, tomando minha Coca, comendo os pastéis absurdamente engordurados – e, por isso, absurdamente gostosos – que só o Caô sabe fazer.

As  meninas dançavam uns pagodinhos antigos, os rapazes, entusiasmados, castigavam os pandeiros e as mesas que, àquela altura, viravam um instrumento qualquer. Na quadra ao lado, a molecada jogava peteca. E, vez ou outra, aquela merda caía perto de mim.

_ Tá com a mão torta, moleque?

Perguntei prum gordinho que veio correndo buscar a peteca. Ele enrubesceu; não sei se pelo esforço da corrida, ou pelo o que eu falei. Também não me importei: o importante eram as meninas se requebrando.

A tarde ia assim, harmônica e prazerosa, quando Petronílio chegou. Fumando feito uma maria-fumaça, puxou a cadeira, levou a mão peluda no meu prato. 

_ Se quiser pastel, manda fritar pra você. Nos meus ninguém bole. 

Petronílio refreou a mão, abandonou a binga debaixo da mesa e, trunfando a cara, disse:

_ Pô, hoje nada tá dando certo pra mim. 

_ E não vai ser comendo os meus pastéis que vai melhorar.

Levei mais um de queijo à boca, pensei: “Tanta gente pra esse homem atazanar, e vem justo em mim. Parece que tenho um ímã que atrai chatos, puta-que-pariu.” 

Loura, ex do Caô, passou, rebolando e sorrindo, com uma latinha na mão. Seu shortinho microscópico me fez esquecer, por uns instantes, o chato do Petronílio. Mas, como felicidade de pobre dura pouco, voltei à sua incômoda presença ao sentir a fedentina doutro cigarro aceso. 

_ Ô, vai fumar esse troço pra lá! 

_ Tô vindo agora do banco. Cê não sabe o que me aconteceu. 

_ Sei, não. E, se você não desembuchar, vou continuar sem saber. 

Ele tragou fundo, suspirou fumaça e desalento em cima da mesa. 

_ Diacho, assim meus pasteis vão ficar fedendo... vai fumar pra lá! 

A peteca riscou o ar e as notas da canção, tirou fino no cabelo da ruivinha, veio rolando até parar, de novo, embaixo da minha mesa. O gordinho voltou, botando os bofes pra fora. 

_ Ô, moleque, avisa lá que se essa peteca cair aqui de novo, eu vou fazer essa merda em pedacinhos. 

De quatro sob a mesa, o gordinho resmungou qualquer coisa, pegou a peteca, desceu correndo. “Maldita hora que o Caô mandou fazer essa quadra aí”, resmunguei, de olho na moreninha que entrou, toda arrebitada, no banheiro. 

_ Fui no banco. Tô vindo de lá agora, sabe.

_ Ah é, eu tinha me esquecido que você tava aí... foi ao banco fazer o quê, outro consignado? 

_ Não. Fui receber isto aqui.

E Petronílio tirou do bolso da camisa um cheque dobrado ao meio. 

_ Sem fundos? 

_ Sem fundos. Faz tempo, eu emprestei esses quatro e quinhentos pro Juca Torto, sabe. 

 _ Mas como você empresta dinheiro se vive pendurado no consignado? 

_ Com o jurinho que o Juca ia pagar, eu pagava o banco e ainda me sobrava um, sabe. 

_ Ah. E agora o cheque voltou? 

_ Pra cê ver, a gente ajuda um amigo, e ele faz uma dessa com a gente. 

_ Mas você não fez um negocinho com ele outro dia? Foi uma moto que ele te vendeu, né? 

- Sim. Dei quatorze mil na moto. 

- É, lembro que você comentou isso... Eu te falei que ela não valia isso tudo, mas você não deu ouvidos... Mas, peraí, se ele te vendeu a moto por quatorze e te deve quatro e pouco, porque você não abateu isso e pagou só a diferença? 

_ Na hora não pensei nisso. Pra falar a verdade, não pensei que o Juca fosse me fintar. A gente é amigo desde os tempos da escola, a gente saía junto... foi ele que me levou pela primeira vez lá na zona...

_ E você vomitou na cama da Darleninha, eu lembro disso. Falaram na época que foi tanta porcaria que você botou pra fora que estragou até o colchão da menina...

_ Não foi bem assim, não! O que aconteceu é que misturei muita bebida, me senti meio mal... E eu tava meio ansioso também, sabe.   

_ Aham. 

_ Puxa, vira e mexe aparece um infeliz pra me lembrar daquela noite...  

_ Tem coisa que não se esquece, aliás, que ninguém esquece. 

_ Mas, vamo voltar ao cheque do Juca?

_ Se você quer... Por mim, fico em silêncio ouvindo a música. Ó só, essa molecada até que toca bem.  

 _ O cheque tá sem fundos, sabe. E, segundo o cara lá do banco, provavelmente não vou receber. Diz ele que o Juca tá devendo na praça, pra todo mundo. 

_ Inclusive pro Caô. 

_ É? 

_ Aham. E o Caô gritou aí outro dia, foi na hora do jogo, que aqui o Juca Torto não pisa mais. Só se acertar aquele monte de fiado... passa de mil. 

_  Então, não vou receber mesmo?

_ Vai não. Devia ter abatido quando comprou a moto... 

_ Nossa, tô fudido e mal pago. E agora? 

_ Agora, come um pastelzinho e aproveita a paisagem... ó aquela moreninha ali, só no requebro... é isso o que faz a vida valer a pena. 

 



Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

domingo, 23 de julho de 2023

Flanando pelo domingo


Saio do supermercado com duas sacolas. Não me custaram os olhos da cara pois ainda os conservo, míopes e estrábicos, mas que me levaram um bocado de reais, ah levaram... “A vida anda cara”, sentenciou um senhor na fila. Não discordei. Contudo, como hoje é domingo, e os domingos não foram feitos para lamúrias e resmungos, paguei as frutas e o queijo minas. 

Vou caminhando pela rua quase deserta. Passa um pouco do meio dia; nada mais natural que as famílias e os solitários estejam em casa, almoçando. Uma quadrinha de minha meninice vem à mente: meio dia, panela no fogo, barriga vazia... Era mais ou menos isso que estava escrito na cartilha que tinha lá em casa. Repleta de ilustrações coloridas e versinhos, eu a usava para brincar de escolinha. 

Um quadro negro, uma caixa de giz, a cartilha... eu desempenhava o papel de professor. Um misto de Raimundo Nonato e Jirafales, sem bigode e charuto, meio exigente, meio jocoso. O mundo, contudo, deu suas voltas e cambalhotas: não fui ganhar a vida numa sala de aula. 

Desço pela ruazinha paralela à igreja. O silêncio dominical convida a reduzir a marcha, observar. Tenho vontade de parar, deixar o sol de inverno me afagar o rosto... e, simplesmente, contemplar. Todavia, temo parecer ridículo. Eu, se visse alguém parado entre a São João Batista e o Paço Municipal, com as sacolas brancas do Zezinho à mão a mirar o nada... também o julgaria ridículo. Estúpido, com certeza. Sigo, pois. 

A praça, atapetada de folhas avermelhadas, entrega-se ao sol, hospede tão raro nessa época. Um cão vadio lagarteia, o velhinho no degrau do coreto parece imitá-lo. Uma folha da amendoeira cai, lentamente, diante do meu rosto. Por um breve e fantasioso instante, me sinto num daqueles filmes americanos onde folhas caem, rubras e belas, entregando-se ao outono. Nessas ocasiões, dou razão à canção que diz: “no outono é sempre igual/as folhas caem no quintal”... Mas, sem quintal e outono cinematográficos, me contento em flanar pelo carpete escarlate da Praça 28 enquanto o sino anuncia meio dia e meia. 

Um fato chama minha atenção: o busto de Celso Machado não está em seu costumeiro lugar. Quem levou o Celso, e para onde? É o que pergunto ao pombo que zanza no gramado. Sem resposta, encaro a pilastra despida. E, feito uma estátua mal ajambrada, me ponho a recordar a crônica que li mais cedo, antes de sair: “a história nos dias de hoje, mais do que nunca, é o assunto mais impopular, um assunto de gabinete por excelência, um apanágio de eruditos, que discutem, debatem, comparam e até hoje não chegaram a um acordo sobre as ideias mais elementares”. 

Acho, Dostoiévski estava certo; e me entristeço pensando que, entre suas palavras e este rigoroso inverno, transcorreram mais de cento e setenta anos. Todavia, como não pretendo bancar o erudito, o pernóstico ou ser mais um chatonildo de plantão (repito, os domingos não foram feitos para isso), vou andando. 

A boca pede um chocolatinho. Não devia, eu sei, mas cedo à tentação. Há quem se entregue aos deleites carnais, ao fumo desatinado, à jogatina inconsequente como Dostoiévski... eu me dou, de corpo e alma, ao prazer da mesa. Um dia, e esse dia há de vir, prestarei contas desse meu pecadilho. Por ora devoro, desabridamente, doces e chocolates. 

Saio da drugstore (a cidade agora está très chic, tem até drugstore) levando mais uma sacola. A ditadura do plástico é terrível; mas, como não tenho vocação para rebelde e/ou subversivo, curuzes!, levo mais uma sacolinha para casa. 

Os cones alaranjados sinalizam que as obras ainda não terminaram. Graças à Deusa Sensatez, demoliram aqueles quiosques horrendos que só serviam para descaracterizar o patrimônio histórico-arquitetônico, já tão descaracterizado, e atrair bebuns barulhentos à praça. Aplausos para o lúcido executor desse projeto!

Subo a ladeira do Conservatório. Tenho pressa de chegar em casa, me livrar destas sacolas e destes trajes de domingo, devorar meu Lacta. Apresso tanto o passo que, quando dou por conta, é tarde: o peloto de bosta já grudou no meu tênis... Me esqueço que os domingos não foram feitos para queixas e pragas e, feito um pirata, amaldiçoou o cagão que deixou este presente desgraçado na calçada.  




terça-feira, 22 de novembro de 2022

Adeus, Erasmo Carlos

 


Abro minha caixa de e-mail. São 14:08 horas, de uma tarde ordinária, dessas bem burocráticas que nos arrasta junto com ofícios, alvarás e mandados. Mas, como eu dizia, abro minha caixa de e-mail: preciso solicitar qualquer coisa no portal da informática.

Chegou um desses e-mails que recebo aos montes, enviados por jornais e sites de entretenimento. Normalmente, não os abro; mas este aqui preciso abrir: MORRE O CANTOR E COMPOSITOR ERASMO CARLOS. Assim está grafada a matéria. Um soco em caixa alta, bem no meio do estômago, certeiro como aqueles que o Stallone dá nos filmes.

Aqui, no computador da repartição, não consigo abrir sites de noticiários, portanto, sou impedido de saber o que se passa no mundo. Isso pode ser bom ou ruim, depende do que está a acontecer; se eclodir uma guerra, por exemplo, só saberei quando chegar em casa, lá pelas seis e tanta (isso se eu chegar vivo, porque posso ser alvo de uma bomba qualquer enquanto caminho, vá saber). Assim, só fico sabendo das novidades quando abro algum desses e-mails que me chegam como mariposas no verão e leio suas manchetes. É o que faço agora. 


Mesmo sem acesso ao conteúdo integral, a manchete por si só já me abala. Ainda há pouco, coisa de uns trinta minutos, eu ouvi uma canção do Tremendão - uma das muitas que estão dispersas em minhas playlists. Erasmo é parte de minha trilha sonora diária, e isso faz tempo.


Corro a vista pelo Google Notícias. Infelizmente, não é fake news: aos 81 anos, o Gigante Gentil sai de cena. Parte para o andar de cima, fará companhia à Gal Costa (cuja passagem ainda não superei). Ícones da música estão partindo... é triste ver gente que eu ouço todo dia, desde os tempos dos vinis, indo embora. É da vida, alguém pode argumentar. Sim, é, mas não deixa de me entristecer.  


Inevitavelmente meu lado nostálgico dispara - eu tenho um lado nostálgico que é, tipo, o lado B dos velhos discos: vive tocando e me levando a outras eras. A memória auditiva mais antiga que trago do Erasmo é a canção que ele gravou com a Turma do Balão Mágico: "barato bom barato bom é o da barata dona girafa que gravata..." esses versos tocaram tanto na vitrolinha lá de casa. Trilha sonora de infância marca, desperta-me a nostalgia.  Outra canção me vem à mente: Papo de Esquina, que o Tremendão gravou em 1988 com seu irmão de fé Roberto Carlos, e que ouvíamos muito no toca-fitas do Chevette do pai.
 

 Lá em casa também rodava bastante o "Erasmo... Convida", com duetos de velhas canções de sua autoria. Anos e anos depois, quando lançado o segundo volume (já nos tempos do CD) fiz questão de comprá-lo na pré-venda da internet. E eu o ouvi muito no meu discman, indo e voltando da faculdade...  está guardadinho nalgum canto do meu quarto, junto com outros discos e dvds do Erasmo.


Essas memórias musicais são disparadas enquanto já nem me lembro mais por que abri a caixa de e-mail. Deixa pra lá, é de somenos importância. Decidido, volto a redigir os ofícios e as cartas, enquanto o Spotify, aleatoriamente, executa "Abra seus olhos". E os meus olhos, bem abertos, represam uma lágrima de despedida: "aqui não é lugar para sentimentalismos", sentencio a mim mesmo, antes que outros o façam.  





Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: internet 

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

A última sessão de música

 

        Acordo antes do galo cantar, olho o céu: “é, parece que não vai chover”. Visto-me, vou à rodoviária.

        Uns gatos pingados esperam ônibus. Os passageiros desembarcam, alguns sonolentos; abraços e cumprimentos, malas e bolsas, olhares perscrutadores: a vida se repete na plataforma.  Encostado na pilastra, observo o vai e vem: uma mulher leva a criança no colo, senhoras com sacola, um homem com o cigarro no canto da boca, um jovem desengonçado com a mochila no ombro, o velho televisor ligado sempre no mesmo canal... É a vida desse lugar, é a vida.

        Espero o trocador entregar as bagagens. Entre os que desembarcam, Carmô, bolsa e jaqueta penduradas no braço. Desce com dificuldade, um senhor a ajuda. Cumprimenta-me com seu sorriso de alvorecer – é daquelas que nunca acordam de mau humor, uma espécie de Maria que mistura a dor e a alegria, sempre driblando as vicissitudes da vida com um sorriso. Ela bota a bolsa na cadeira, pega o celular “vou ligar pro Osvandir que, na certa, perdeu a hora de vir me apanhar”.

Os passageiros retiram as malas no bagageiro, eu aguardo.

        “Estou vindo de BH, fui assistir o show do Bituca”, ela me diz. Rapidamente me vem à memória aquela época em que trabalhamos juntos: Carmô chegava ao expediente, sempre sorridente, cantarolando canções do Milton. E, mesmo depois da tragédia que vitimou seu filho e parte de seus sonhos, Carmô continuou cantarolando na repartição.   

        “Assisti pelo Globoplay, foi muito bom” digo.

        “Muito bom, maninho? Foi MA-RA-VI-LHO-SO! Mineirão lotado, o pessoal numa energia incrível. Quando as cortinas se abriram, me senti transportada para o céu... chama, chama e ninguém atende”. Carmô tenta outra vez, peço licença.

        O trocador me entrega a caixa. Carmô ainda tenta falar com o marido. “Não posso te dar carona. Tô a pé, como sempre” justifico-me, ela sorri: “Maninho, tô extasiada até agora, nem consegui pregar o olho na viagem. Fiquei lá na frente... apareci na televisão?” Nego com a cabeça, coloco a caixa no chão (puxa, mais pesada que imaginei, penso).

“Me emocionei pra caramba. E pensar que não veremos mais o Bituca nos palcos da vida, dá uma dó! Ontem, quando ouvi Cuitelinho, ah maninho, não aguentei e chorei: lembrei os tempos em que eu morava na roça, meu menino ainda pequeno correndo no terreiro com as galinhas...”

“Ele dedicou o show à Gal, né. Achei tão bonito isso.”

“Tudo foi lindo. Não acredito que participei desse momento histórico... Alô, Osvandir, onde você tá? Como assim onde eu tô... Na rodoviária, uai, o ônibus já chegou... Que adiantou o quê, já viu ônibus adiantar, Osvandir! Você é que perdeu a hora... Tá, vou esperar.” Carmô guarda o celular, comenta: “Desde que saiu do coma que o Osvandir ficou assim, meio esquecido... bem que o médico avisou: nada será como antes. O que se há de fazer, né? É a vida, maninho, é a vida... mas, voltando pro show: na hora que reabriram as cortinas e o Wagner Tiso tocou os primeiros acordes de ‘Coração de Estudante’... ah, não aguentei. Mas não foi só eu que desandou a chorar não: perto de mim um monte de gente foi às lágrimas...essa música é forte, né, e muito significativa, ainda mais em um momento como esse... Peraí, o celular tá tocando. Oi, Osvandir. Hein, o portão enguiçou? Não, vai amolar vizinho a essa hora, não... hoje é emenda do feriado, esqueceu? O povo vai dormir até mais tarde. Eu pego o táxi, pode deixar. Tchau.”

Carmô desliga e, apesar do contratempo, mantém a ternura ao falar: “De novo o portão eletrônico deu defeito. E o Osvandir não consegue levantá-lo, sabe. Desde que fez aquela cirurgia no braço, por conta do acidente, não consegue levantar nada pesado... e aquele portão parece de chumbo. Enfim, meu caminho é de pedra, maninho, mas... é a vida”.

Pego minha caixa, ela, a bolsa e a jaqueta; vamos pela rampa. “Sei muito bem o que o Bituca tá passando; quando fui forçada a parar com minha carreira... você sabe, o acidente estúpido com o ônibus quando voltávamos dum show, a perda do meu menino, o coma do Osvandir... Nossa, foi duro. A gente começava a ampliar nosso público, a se apresentar em outras cidades, aí, de repente, acontece tudo aquilo... Enfim, seguimos a vida, porém, nada mais foi como antes: Osvandir aposentou por invalidez, eu continuei na repartição. Mas, como eu simplesmente não consigo parar, em casa solto a voz para tentar sufocar a tristeza e, na repartição, canto para suportar a burocracia... No violão, porém, nunca mais mexi: me entristece, lembro do meu menino, ele aprendeu a tocar de ouvido, diziam que tinha um futuro promissor... Osvandir, coitado, não consegue tocar mais nada.”

Carmô me oferta mais um pouco de seu sorriso de alvorecer, tenta conter uma lágrima: “E você, que notícias me dá de você?”

“Caí da cama cedo para buscar esta caixa. São livros que um amigo de Belo Horizonte me enviou. Ele está de mudança para Lisboa, me presenteou com um monte de livros.” Carmô segue manquitolando ao meu lado. Digo-lhe que estou finalizando um livro de crônicas, “já em fase de revisão”, ela comenta que o pessoal da repartição “sente muito sua falta, gostavam de você”. Assinto em silêncio, embora eu não possa dizer o mesmo deles, penso.

 “Qualquer dia a gente se vê”, diz, acenando do táxi. Apesar da caixa pesada, sigo a pé pela avenida, pensando: quanta disposição! Encarar mais de sete horas de viagem, ter que cruzar a Rodovia dos Inconfidentes onde tudo aconteceu... claro que ela relembrou o acidente com a banda, a morte do filho: essas lembranças são inevitáveis. Puxa, que travessia! Sem contar que passou o dia inteiro na capital, pegando táxi para ir e voltar do estádio, varou a noite nesse ônibus desconfortável... é cansativo para mim, imagino para ela que, depois da tragédia, ficou com aquele problema na perna. Enfim, é preciso ter gana, não é assim que diz aquele verso do Milton? Se fosse comigo, não teria essa força toda, não.

 

       

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

INTENSA E FORTE

 


Nuvens cinza-chumbo fizeram da manhã, noite. Pelas frestas da janela, penetra um ventinho frio; meus pés pedem meias, meus olhos querem palavras. Em dias assim, recordo os versos de Djavan: “um dia frio/um bom lugar pra ler um livro”... abro o armário: ainda embalados, alguns livros adquiridos em minha penúltima viagem a Juiz de Fora cobram-me leitura (eu e minha velha mania de comprar mais livros que dou conta de ler). Desembrulho o Verissimo... crônicas ajudarão a levar esta manhã.

A chuva volta a cair, o quarto escurece ainda mais. Vejo-me obrigado a puxar a poltrona mais para perto da janela... Ontem, no fim da tarde, choveu granizo - cada pedra de amedrontar, pensei que ia furar as telhas da cobertura. Mais tarde, enquanto assistia Travessia, mais chuva despencou, exigindo-me moletom e cobertor.

Atipicamente, o novembro vai se entristecendo com chuva e frio. Viro uma página, outra, mais outra... as cenas e situações bem humoradas acalentam. Todavia, não afastam a vontade de roer alguma coisa: uma, duas castanhas talvez sejam suficientes para engambelar o estômago até o almoço ficar pronto.

No quarto ao lado, a criança assiste desenho; na rua, alunos e carros e motos apressam-se para fugir dos grossos pingos. Indiferentes, as maritacas cantam sua estridente e, aparentemente, desarmônica sinfonia. Ontem, antes do toró, pausei a leitura do Batman, observei-as: duas – talvez um casalzinho – há dias tentam fazer um buraquinho entre a parede e o caibro do telhado. Todavia, ariscas como só elas o são, futricavam o buraco, paravam, me olhavam... e, de repente, num tremendo alarido, voaram até a árvore da escola.

***

Findo o almoço, e com a chuva rareando, deito-me na cama. (Nesses dias de férias, é possível fazer a sesta.) Deslizo os dedos fatigados pelo feed do Instagram. Súbito, um daqueles posts que não se quer ver: morre Gal Costa, aos 77 anos. Não é uma notícia fácil de se digerir... infelizmente, mais uma voz – e que voz, senhores! – silencia-se.

Assisti a um único show de Gal, há alguns anos, em Juiz de Fora. Numa noite de muito frio, sua voz inigualável me aqueceu e enterneceu. Um show intimista, voz e violão. Daqueles momentos que a gente guarda na memória, para sempre.

Meus dedos continuam a deslizar no smartphone, fotos e vídeos de Gal se revezam na tela. Uma grande perda...

***

Lembrei-me daquela vez que o vendedor da loja de CDs me telefonou (faz tempo isso, bicho, eu ainda comprava CDs e ainda tinha telefone fixo em casa).

“Alô.”

“Alô, tudo bem? A Gal chegou!”

Por um instante, não captei a mensagem. Eu assistia a um filme no quarto, irritado porque o vento não deixava as cortinas paradas e a claridade dava no televisor e, súbito, o telefone tocou; corri para atender e alguém, sem se identificar, exclama: “A Gal chegou!”. Achei que era trote, ri. Do outro lado da linha, a criatura, enfim, se identificou. E só aí me dei conta: era o cara da loja ligando para me avisar que o disco que eu encomendara chegou.

***

“Estratosférica” foi, se não me engano, um dos últimos CD’s que comprei. Da Gal, foi o último: tempos depois migrei, definitivamente, para o universo digital... estas linhas, por exemplo, são escritas enquanto uma de minhas playlists no Spotify está tocando.

Enquanto finalizo esta crônica, e os acordes iniciais de “Lágrimas Negras” se insinua entre os livros e a luminária forçosamente acesa às duas e pouca da tarde, lá fora a chuva cai novamente, intensa e forte, como o canto de Gal Costa. 

 


      Texto: Raphael Cerqueira Silva 

foto: acervo do autor 

sábado, 29 de outubro de 2022

A ira de Sandovalino

         Vou pela avenida, fones nos ouvidos, cantando em dueto com Cássia Eller. (Depois da pandemia, larguei mão de ser bobo, passei a cantar na rua, no trabalho, em qualquer canto... sem me importar com o que pensam de mim, e sem medo de ser feliz). Mas, como eu dizia, lá vou eu pela avenida; passos firmes, sinto o frescor da manhã primaveril roçar-me o rosto. Súbito, alguém grita: “Ei, ei, coisinha!”

A princípio, não olho, afinal, não sou “coisinha”. A pessoa insiste, parece irritada: “Coisinha, ei, peraí!” Digo aos meus botões (pensando bem, não há botões no meu traje de academia mas, para fins literários, deixo a expressão): deve ser comigo. Olho.

Sandovalino me acena, esperando uma brecha para atravessar. Como não reconheci sua voz? Essa música deve estar muito alta, resmungo, baixando o volume. Encostado na mureta da ponte, eu o aguardo. O short jeans, justo e curto, deixa seus gambitos à mostra; na camiseta verde-amarela, sob a carantonha do Imbrochável, o asqueroso lema: Deus, Pátria, Família.

O ônibus passa, Sandovalino atravessa; no rosto, um misto de fúria e desencanto. Mais uma vez seu namorado saiu de casa, comento para meus botões imaginários.

Sandovalino se aproxima, dedo em riste, a outra mão na cintura fina. O que será que esse cara chato quer comigo?, me pergunto, baixando ainda mais o volume do celular.

- Olha aqui, tô achando RI-DÌ-CU-LAS suas postagens no Insta. Que decepção, menino, que decepção! Eu fazia outra imagem de você: um bofe culto, que vive lendo e fez não sei quantas faculdades, que publicou livro... eu até comprei seu livro... agora vem declarar voto naquele ladrão condenado pela justiça. Nossa, vi suas postagens e fiquei chocado. Ainda ontem comentei lá no meu serviço: tô passado, decepcionado mesmo.

Sandovalino fala sem tomar fôlego. A saraivada de palavras, no entanto, não me impede de recordar algumas declarações atribuídas pela mídia ao seu candidato: “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro, ele muda o comportamento dele”, “Moro num condomínio, de repente vai um casal homossexual morar do meu lado. Isso vai desvalorizar minha casa!”... Sandovalino continua falando, lembro-me outras frases, inclusive aquela famosa: “menino veste azul e menina veste rosa” dita pela ministra-que-vê-Jesus-na- goiabeira. Sandovalino fala cuspindo feito o Frajola, olho a foto estampada em sua camiseta, me pergunto: não lê jornal, não vê televisão? Decido não discutir: como dizia minha professora de História Antiga, é cegueira mental.

- My God, eu não sabia que você era petralha... eu tenho ranço dessa gente. Por isso, eu peguei seu livro e rasguei em mil pedacinhos; fiz que nem a Sandra de Sá: joguei fora no lixo! E depois taquei fogo, pra não restar nem uma vírgula, nem um ponto daquele lero-lero comunista.

Sorrio com sarcasmo. Sandovalino bufa e, antes que me empurre pela mureta, sigo meu caminho. Ele grita, me acusa de não ter argumentos, retruco: “Minhas postagens falam por mim. Tchau, querido!” Ele nota, claro, a ironia.

- CAN-CE-LEI você! Tá amarrado que eu vou continuar te seguindo. Não sigo comunistas, apoiadores de ex presidiário. Meu presidente será reeleito no domingo e, em nome de Jesus, vai mandar vocês todos pra Cuba, pro paredão, pro diabo que os parta.

Com o indicador e o polegar, faço-lhe o “L”; aumento o volume, vou caminhando e cantando: “O que está acontecendo?/O mundo está ao contrário e ninguém reparou/O que está acontecendo? Eu estava em paz quando você chegou”.

Em casa, tiro a roupa suada. Antes de procurar o chuveiro, checo as redes sociais: perdi mais alguns seguidores. Leio os novos comentários: ataques de direitistas radicais, mais ofensas e, entre tantas baboseiras, um comentário de Sandovalino na minha postagem mais recente: um 22 seguido de um monte de bandeirinhas do Brasil.

Apago ou não apago, eis a questão. Olho as maritacas que me olham dependuradas nas telhas, decido: apago. Faço como aquela santarrona lá da repartição, que anteontem deletou meu link no grupo do WhatsApp. Faxina feita, posso tomar meu banho sossegado. 

 


Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

O que faz a vida valer a pena

    Eu estava sentado ali, no bar, tomando minha Coca, comendo os pastéis absurdamente engordurados – e, por isso, absurdamente gostosos...