sábado, 4 de maio de 2024

Madonna in Rio

 

 

        A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corpo dos rapazes que circulam e mergulham e se bronzeiam em Copacabana.

        Ai de ti Copacabana, não serás mais a mesma depois da passagem de Madonna.

        Assim como não deve ter sido a mesma depois que por ali passei, fotografando cada ladrilho do calçadão, cada folha de coqueiro, cada prédio, cada bandeira a tremular sobre a areia. Inclusive, a bandeira nacional, fincada no topo do Copacabana Palace, onde a diva americana está hospedada.

        Uma colega de ofício, que não é diva nem rainha, muito pelo contrário, disse certa vez: “Um dia, vou me hospedar lá”. Suspendi a redação do alvará, perguntei “lá em Copacabana?”. Ela tomou como ironia, franziu o cenho, retrucou: “Claro que não. No Copacabana Palace. Você vai ver as fotos, porque vou fazer questã de postar”. Tempos depois, vi: fotos pavorosamente mal feitas, dela e do marido, ambos forçando um sorriso na beira da piscina do hotel. Na repartição, o povo quis saber: será que o casamento dura o tempo das parcelas do cartão? À boca pequena, se comentou que, além de ter gasto os tubos com a festa do casório, ela pagou o dobro e mais um pouco para se hospedar por uma noite apenas no Copa... Eu, discípulo de São Tomé, até hoje não pus fé naquelas fotos.

        Voltando à pop star: sei quase nada sobre sua carreira. Da discografia, ainda menos. Mas, como fui criado com o rádio ligado o dia inteiro na cozinha, trago na memória algumas de suas canções. La Isla Bonita, Like a Prayer, Papa Don’t Preach e Crazy for You rolaram bastante pelas ondas da Cultura. Hoje, quando as ouço, brotam saudades que não sei bem explicar. Talvez, saudade da infância que se perdeu nas brumas do tempo, da época em que minha única preocupação é se não faltaria luz para assistir à novela... Na suíte presidencial do Copa, será que a Rainha também se entrega a pensamentos nostálgicos?

        O noticiário, que cobre a passagem de Madonna desde que seu jatinho aterrou no Galeão no começo da semana, divulgou: durante o show, telões enormes projetarão imagens de personalidades brasileiras. Acredito que lá estará também Ayrton Senna: nesta semana, completam-se trinta anos do desastre que ceifou sua vida. E a pergunta que muitos fizeram na tevê, num esforço tolo de memória, é: o que você fazia naquele domingo quando o carro do piloto colidiu com a barreira de concreto em Ímola? Eu, que nunca fui chegado à fórmula 1 (aliás, a qualquer esporte), assistia desenho noutro canal, ou jogava videogame. O que me lembro mesmo é que a televisão só falou da tragédia no resto daquele dia, e no seguinte e nos seguintes. Na escola, na manhã de segunda, só se falava nisso; teve até gente chorando durante a aula de Português. Cena semelhante veria anos depois, quando do acidente com a Princesa Diana. Eu não entendia aquelas lágrimas. E, sem entender, tentava vencer mais uma fase no meu videogame.  

        Ali, nos arredores onde Madonna está hospedada, há uma estátua do Senna. Bom turista, também tirei foto lá. Como dizia aquela mulher da novela: cada mergulho é um flash... E como sob o sol escaldante de Copacabana não é necessário flash para registrar boas fotos, o turista se esbalda. Há aqueles que vão para torrar na areia, os que preferem observar os minúsculos biquinis perdidos nas curvas bronzeadas, os que bebem como se não houvesse amanhã... e os que fotografam. Ah, é há aqueles que gastam todas as economias se hospedando em hotéis badalados, como a colega lá da repartição. Que, como bem acertaram as previsões, não manteve o casamento tempo suficiente para quitar as parcelas do cartão.



Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

domingo, 28 de abril de 2024

Guerra Civil

 


Na fila da Americanas, observo. Dezenas, deliciosas e irresistíveis guloseimas espalhadas nas gôndolas. Em sacos plásticos que desfilam mais cores que o arco-íris, balas e salgadinhos, bombons e biscoitos recheados serpenteiam a clientela. Para não sucumbir às tentações, presto atenção nos dois caras que, à minha frente, também aguardam atendimento:

— Cê já foi ver o filme do Wagner Moura?

— Tá doido, velho? Vou lá perder meu tempo e dinheiro com filme daquele mamador da lei Rouanet?

— Produção americana, cara. Não rola dinheiro público brasileiro, não.

— E daí? Aquele atorzinho é esquerdopata, eleitor do ladrão-de-nove-dedos... Eu que não dou meu dinheiro pra ver a bosta desse filme.

— Eu também não.

Lá do balcão, quase escondida pelos pacotes de Fini, a atendente chama o ‘próximo’.

Os caras se despedem com risadinhas bovinas. Um vai pagar a compra, o outro fica deslizando o dedo torto pelo feed do Instagram.

Tentando equilibrar as barrinhas de chocolate, o Oreo e a garrafa de água, dou uma olhadela por cima de seu ombro. Na tela do smartphone, a carantonha do (enfim inelegível) ex-presidente aparece cuspindo uma besteira qualquer. “Ainda bem que esse cara está com fones porque ninguém merece ouvir essas boçalidades, ainda mais em pé numa fila”, suspiro aliviado.  

Volto a olhar as gôndolas.

Passo a mão em duas pastilhas de hortelã e no saquinho de caramelos.  

***

Não há fila. Me aproximo da bilheteria, atento ao letreiro com os títulos e os horários.  

A atendente parece cochilar diante do monitor. Responde ao meu boa-tarde com mau humor, manda escolher a poltrona. Enquanto o ticket é impresso, encaro suas olheiras: será que ficou assim depois de assistir ao filme?

O cartaz dos Caça-Fantasmas e minha pergunta quase me fazem arrepender da compra.

***

Na sala, número razoável de espectadores. Para ser sincero, me espantei: normalmente, a primeira sessão nunca enche assim. Ainda mais em tardes frias e xexelentas, como hoje.

Vou subindo a escada, atento para não tropeçar. Da outra vez, fomos eu, as pipocas e o refrigerante ao chão. Acho, nunca passei tanta vergonha. E, na telona, as peripécias do oitentão Harrison Ford soaram para mim mais como provocação que heroísmo.    

Noto que algumas pessoas sequer esperam o filme rolar para devorar as pipocas e os biscoitos de queijo.

Sigo em busca da fila R. Sempre escolho poltrona ali. Não pense o leitor que o faço por razões esotéricas ou coisa semelhante. É que, atrás desta fila, só a parede. E, embora digam que parede tem ouvidos, não importo: pior são os que têm boca e desembestam a tagarelar durante a sessão. Como aconteceu quando vim assistir Jurassic World: Domínio e tive que suportar uns enjoados palestrando o tempo inteiro. Daquela vez, cheguei meio atrasado, então não deu pra comprar a poltrona na R.

***

Guerra Civil entrega uma lição: a democracia pode ser frágil, muito frágil. E mostra o quão a sociedade encontra-se polarizada. Embora seja uma distopia, é assustador imaginar que poderíamos estar vivendo tudo aquilo caso o golpe de 2023 tivesse se concretizado. E, o que é aterrador, se continuarmos condescendentes com as práticas fascistas que todo dia pululam nos noticiários, nada impede que, em um futuro não tão distante, o país passe pelo caos narrado no filme.

Alex Garland, diretor do longa, deixa-nos este alerta. Um alerta de como radicalizações e fanatismos são perniciosos. Um alerta do mal embutido nos discursos extremistas que, não raro, enfiam deus, pátria e família em cada uma de suas frases ardilosas.

***

Simbólica a cena em que a bandeira norte-americana tremula ao vento apenas com duas estrelas. Significativa a fala de um miliciano que julga algumas pessoas mais americanas que outras, conforme seu estado de origem. E, com isso, se arvora o direito de eliminar os menos americanos e os estrangeiros.

Também simbólica a cidadela por onde passam os protagonistas: apesar do clima bélico em que chafurda a nação, seus habitantes vivem em aparente calmaria. Como diz a mocinha da loja, não quiseram se envolver. Sua explicação me fez lembrar alguns conhecidos que arrotam por aí: “ditadura nunca existiu”, “ditadura só é ruim pra quem não anda na linha”, “não tenho problema com a polícia porque estou trabalhando” ou, ainda, “esse papo de golpe é invenção de comunista petralha”.

Negar o óbvio: idiotia ou tática de sobrevivência? Sempre me pergunto isso. Ainda não encontrei a resposta.

As cenas de Washington, sitiada e arrasada, me fizeram lembrar a tomada de Berlim pelos Aliados. O bombardeio à Casa Branca, os ataques ao La Moneda, que ceifaram Allende e a democracia no Chile.

***

Refletindo, mal dou por conta que os créditos sobem e o público se dispersa.

Recolho as embalagens vazias, bebo o restinho da água.

Desço a escada pensando nos ruminantes lá da loja: perderam um filmaço. A moça da limpeza me encara. Acho, mais uma vez pensei em voz alta. Envergonhado, enfio o derradeiro caramelo na boca e, cabisbaixo, tomo o rumo da rua.   

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 




  

 

domingo, 31 de março de 2024

O ontem ainda lateja

Domingo de Páscoa. Esta crônica poderia reclamar dos preços do bacalhau e do ovo de chocolate, dissertar sobre fé e espiritualidade, enveredar pela metafísica de Aristóteles ou Tomás de Aquino. Poderia também comentar frivolidades burocráticas esbanjando, assim, “os erros do meu português ruim”. Poderia, quiçá, errar por lembranças e sentimentalismos que, acho, já encheram o saco do leitor.

Todavia, se escrevesse sobre quaisquer desses assuntos, agiria como o Lula, que determinou aos seus ministros se abstivessem de falar sobre o fatídico 31 de março de 1964. Segundo O Globo, o presidente ‘queria evitar que a data fosse usada para “conflagrar o ambiente político do país”.’ Discordo da decisão: vetar eventos sobre os sessenta anos do golpe não apagarão as marcas deixadas pela ditadura.

Mas, quem sou eu para dar pitaco nos assuntos governamentais, não é mesmo? Se o Lula, que conheceu a repressão, não quer remoer a ditadura, porque “já faz parte da história”, deixemo-lo lá em Brasília com questões mais prementes.

A História, esta ciência que se alimenta de restos feito um chacal, analisa e pondera, explora e perscruta documentos. Das divinas fontes de Clio, bebemos nós, cronistas e historiadores. Então, que minhas palavras jorrem límpidas e serenas por este texto, tal como o arroio onde as Musas banham sua alva beleza.  

Sessenta anos do golpe. Ou da revolução vitoriosa, como pretendem alguns. Independente do conceito, uma ferida. Ferida nacional demora mais a cicatrizar. Basta uma voltinha nas ruas, entrar num bar ou numa repartição, visualizar posts nas redes sociais para notar: a ferida ainda está aberta. Bem aberta. E não necessita laudo médico para perceber que a cicatrização vai demorar.

Dizem, efemérides não podem passar em branco. Para o bem ou para o mal, o 31 de março precisa ser lembrado. Porque tem muito cidadão de bem por aí negando a realidade, distorcendo os fatos, enaltecendo figuras que não merecem um bom adjetivo.

Busquei na estante o Darcy Azambuja. Assoprei a poeira, transcrevo ipsis litteris: “Quase sempre a ditadura surge por meio de uma revolução: é um homem, apoiado pelas forças armadas, que depõe o detentor do Poder Executivo, dissolve o Parlamento e governa, com um partido que o apoia, promulgando ordens que são leis no sentido material.”

É o que ocorreu a partir de abril de 1964: destituição de Jango, assunção dos militares ao poder (primeiro, uma junta autointitulada “Comando Supremo da Revolução”; posteriormente, o marechal Castelo Branco, eleito indiretamente), decretação do primeiro ato institucional, cassações de parlamentares, suspensão de direitos políticos e garantias de estabilidade, perseguições a líderes oposicionistas, entre outras medidas.   

Segue Darcy: “a ditadura (...) é o processo enérgico de vencer uma crise quando o governo normal não o pode fazer.” Os historiadores relatam sucessivas crises no começo da década de 1960, que se agravaram com a renúncia de Jânio e as reformas de Goulart, consideradas perigosas e de inclinações comunistas. Os idos de março de 1964, ainda segundo a História, foram turbulentos, acarretaram sucessivas perdas para o governo e culminaram na suspensão do processo democrático no país por duas décadas.

Antônio Carlos Lemos Ferreira, poeta juiz-forano, verseja: “saiu daqui/um personagem abestado/vestido de azeitona/um boca de cachimbo/ressentido sem fama/parecido com o Popeye/mandado pelo civil banqueiro Magalhães Pinto...”

É notório: o golpe de 64 não pode ser atribuído apenas às Forças Armadas. Empreiteiros, intelectuais, empresários, políticos de direita, religiosos contribuíram ativamente para a ruptura constitucional. Queriam afastar o governo que, segundo eles, “se dispunha a bolchevizar o País”. Assim, a revolução viria “drenar o bolsão comunista”. Porém, isso era bobagem, mero pretexto para incutir medo na patuleia e justificar, dessa forma, os atos antidemocráticos. Por isso, estudos mais recentes denominam de ditadura civil-militar o período compreendido entre 1964 e 1985.

Voltemos ao poema: infelizmente, Minas carrega sobre os ombros a mácula de ter capitaneado o movimento golpista. De Juiz de Fora, partiram as forças destrutivas da ordem e da democracia, comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho. Embora apregoassem que marchavam em defesa da ordem e da democracia! Paradoxos que a História tenta examinar e explicar às novas gerações, apesar dos sucessivos ataques e desqualificações promovidas por pseudointelectuais e reaças de plantão.

À medida que o tempo passava, os tentáculos ditatoriais fortaleciam e se alastravam por vários cantos do país. Em Juiz de Fora, para ficarmos com um exemplo, deixou marcas fatais nas celas da Penitenciária de Linhares, como revelado por Daniela Arbex no livro “Cova 312”.

 Em “A Ditadura Envergonhada”, Elio Gaspari analisa: “A repressão política, porém, emanava do coração do regime e tinha uma nova qualidade. Não se tratava mais de espancar o notório dirigente comunista capturado no fragor do golpe. A tortura passava a ser praticada como forma de interrogatório em diversas guarnições. Instalado como meio eficaz para combater a “corrupção e a subversão”, o governo atribuía-se a megalomaníaca tarefa de acabar com ambas.” 

Para tanto, instauravam-se os temíveis IPMs (inquéritos policiais militares). E muita gente penou com eles. A tortura, que já existia antes, com a ditadura civil-militar se embrenhou de tal forma no cotidiano das prisões, que a historiografia a considera uma ferramenta institucionalizada pelo Estado.

Por outro lado, a maior parte da população sequer tomava conhecimento de tudo isso. O povo vivia alienado, diziam os militantes de esquerda. Na verdade, a censura, outra ferramenta institucional, amordaçava qualquer possível tentativa de denúncia feita por uns poucos veículos de imprensa que resistiam à revolução.

Antônio Maria, no dia seguinte ao golpe, dá conta da dimensão dos fatos: “Eles estão brigando, mas sabem por quê. E nós, que não temos causa? Faremos parte de uma pequena classe média, ao sabor dos mais humilhantes receios. O ordenado irá atrasar? Será que eles vão nos botar na rua? São essas as perguntas que nós faremos, diariamente. É por isso que estamos assim: porque não temos nada a ganhar, depois dessa briga (...) Temos a máquina de escrever, onde somos levados a escrever, quase sempre o “mais conveniente” e, mesmo assim, com o risco de perdê-la.” Para o cronista, tudo era previsível, inclusive “o que iria acontecer hoje, 31 de março, e amanhã, e depois e depois de depois”. Assim, restaria ao povo se perguntar: “E se o ordenado atrasar? E se não houver mais ordenado?.”  

Escrever, (re)ler, analisar documentos, ouvir versões, buscar esclarecimentos é tarefa constante daqueles que buscam compreender as engrenagens político-sociais de seu país. Compete, pois, aos governantes, à sociedade e, sobretudo, às Forças Armadas não obstaculizar as pesquisas. Porque uma sociedade bem informada, esclarecida, será capaz de formar cidadãos melhores.  É preciso transparência para que todos possamos conhecer a verdade ou, pelo menos, vislumbrarmos o que ocorreu no passado.

Talvez, se tivéssemos sido mais transparentes e menos complacentes com anistias, não teríamos visto as cenas absurdas e patéticas que tomaram o noticiário nos últimos anos. E que culminaram no dantesco espetáculo do 08 de janeiro de 2023.       

 


Texto: Raphael Cerqueira Silva 
Foto: acervo do autor 

domingo, 7 de janeiro de 2024

Aí é que está o busílis

 

Na fila do correio, encontro Euzebiozinho. Cabisbaixo, receoso de encarar o mundo. É assim desde a faculdade... “faz tempo, ô se faz”, comenta, como se adivinhasse meu pensamento. Assinto com a cabeça. O tempo fez com que ficássemos assim: sem assunto feito desconhecidos que se cruzam em uma repartição qualquer.  

Euzebiozinho encara com ar filosófico o escarro que alguém largou no piso. Parece abatido.

O cabeludo à minha frente chia: não é possível, só um funcionário pra atender!  

Continuo a observar meu antigo companheiro: bastante grisalho, óculos tortos, roupas largas e amarfanhadas, camisa manchada, encurvado. A pandemia, definitivamente, não fez bem ao pobre do Euzebiozinho.

 Confessa, em um suspiro, que está cansado. De tudo, frisa, sem me encarar. Quer desabafar, percebo. Na faculdade era assim: quando se perdia na página de uma doutrina ou em um panfleto do mural, era batata: precisava desabafar... como nos velhos tempos, lhe empresto os ouvidos. Ele os aceita. De bom grado, a julgar pelo sorrisinho amarelo que se esboça entre a barba malfeita.

        “Amigo, ando cansado. Aliás, farto. Todo dia, a mesma ladainha lá na secretaria... sim, continuo na prefeitura... e a ladainha é a mesma de anos. Mas a falsidade, a hipocrisia e o cinismo daquela gente é que me impacientam e me fazem perder a fé no bicho-homem. Ontem, pra você ter uma ideia, uma mocoronga falou, com todas as letras, que eu devia trabalhar menos e fazer como ela porque, sendo servidores efetivos, nada vai nos acontecer. Descartou a bituca na janela, e arrematou: fazendo muito ou pouco, nosso vencimento é o mesmo. Foi pra cantina, ignorando os que esperavam atendimento... se parar pra pensar, errada ela não está. Porque, nesses anos todos, nunca vi um servidor ser punido. Mas a fala dela é asquerosa, antiética, tira do sério até o cristo. E reforça o discurso do povo, e de certos políticos, de que o serviço público não presta, que é um mafuá onde transitam parasitas indolentes à espera dos vencimentos. Eu discordo mas, infelizmente, muitos servidores contribuem pra essa concepção. Por isso, amigo, minha sina é triste. Toda tarde, aquela lengalenga em volta de mim; falam de tudo e, principalmente, de todos. E trabalhar que é bom... Deixam sempre pro dia seguinte, ou pra alguém fazer. Nessas horas, me sinto um alienígena que abandonaram no meio daqueles humanos preguiçosos, inoperantes, cínicos. Sei que não devia dar bola, que devia continuar fazendo minha parte, bater o ponto e voltar pra casa com a consciência tranquila. Mas, é difícil. Noutro dia, uma boçal disse que destilo ódio com minhas ironias... Tudo porque comentei que, contratada que é, devia se colocar no lugar dela e parar de se intrometer em assuntos de efetivo. Ih, não gostou, me chamou de tóxico, ameaçou de se queixar ao prefeito. Vai e dá um abraço nele por mim, eu disse. A criatura tem as costas quentes, sei, mas não abaixo pra qualquer um, não. Amigo, estou farto. Farto da mediocridade, farto de nadar e sempre morrer na praia. Farto de produzir, e os colegas puxarem pra trás. Outro dia, soltaram esta pérola: quando determinado servidor se empenha em produzir muito, prejudica aqueles que têm dificuldades e não conseguem acompanhá-lo... Ou seja, ao invés de mandar aquela cambada produzir, querem que eu reduza o ritmo! Quem trabalha, incomoda. Sinto-me desmotivado, essa é a verdade. O serviço público - e suas regras estúpidas, sua burocracia arrogante, seus desmandos irracionais – é desmotivador, desalentador. E digo mais, é enlouquecedor. Quase sempre me sinto perdido em emaranhados de ordens e contraordens, rodeado de índios que se julgam caciques. Semana passada, a chefia sugeriu que preciso me afastar, que devia solicitar férias-prêmio ou licença. Vá viajar e arejar as ideias, foi o que disse.... desde o entrevero com a contratada circula o burburinho de que não estou batendo bem da cachola. A faxineira me contou. Loucos são eles, não eu! Estou ‘em pleno gozo de minhas faculdades mentais’, como dizia nosso professor. Lúcido o suficiente pra enxergar o caráter daquela corja. Não me suportam porque digo a verdade. Como não tenho rabo preso com ninguém, me dou o direito de falar o que penso. E dane-se se me criticam pelas costas. Mas esgota tanto viver num lugar desses... chego em casa desanimado, a cabeça pesada, não consigo nem prestar atenção no noticiário. Quando deito, o sono custa a vir. Para ser curto e direto, amigo: estou de saco cheio com aquele bando de cretinos.”         

Durante todo o tempo, Euzebiozinho não deixou de mirar o escarro. Os ombros cada vez mais encurvados, o rosto hirto como um boneco de madeira.  

26, em vermelho-sangue, brota no painel.

A fila retoma a marcha. “Num era sem tempo”, o cabeludo resmunga.

Euzebiozinho, seduzido pelo escarro, sequer percebeu que o funcionário se ausentara por uns bons minutos. Dou-lhe um empurrãozinho. Ele se arrasta ao balcão. À distância, parece um senhorzinho às portas da aposentadoria.

“As correspondências tão sendo entregues mais devagar porque estamos sem pessoal”, o atendente informa rabiscando qualquer coisa num papel.

Euzebiozinho acompanha a caneta com os olhos. “Todo mês, os boletos chegam com atraso e tenho que pagar juros...”, argumenta.

“Entendo, senhor, mas não podemos fazer nada.” Há desdém no sorriso do atendente. Euzebiozinho também nota. Diz “isso é um absurdo”, brada que vai reclamar na ouvidoria.

 Aí é que está o busílis, tenho vontade de alertá-lo, tal como aquele personagem do Rubem Fonseca. Todavia, imperativo, o 27 tinge o painel, me convocando.   



        Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 


domingo, 31 de dezembro de 2023

No escurinho do cinema

          

O tempo está virando para chuva. Inclusive, sinto a umidade no vento. Apresso o passo. E, para encurtar o caminho, me espremo entre motos mal estacionadas. Minha sacola engancha no guidão de uma Shineray, obrigando-me a retroceder para soltá-la. Bem feito, tivesse ido até a faixa de pedestre, não acontecia isso, digo a mim mesmo.   

        Os veículos descem lentamente, parece cortejo fúnebre. Impaciente, espero uma brecha para atravessar. Brecha que, pelo visto, não virá tão cedo.

        O sino da matriz bate as três. Um corolla para. Agradeço com um aceno. Uma gestante passa por mim a levar um menino pela mão. “Num quero ir, quero ficá!”, berra, tentando se soltar. Buzinas cobram agilidade. Um motoqueiro xinga o motorista do corolla, avança a toda pela direita. Por um triz, não levou o birrento.  

 Nessa cidade, as pessoas se impacientam até com uma gentileza. Já a salvo na praça, rio de mim mesmo: censurei as buzinas, mas há alguns minutos era eu o impaciente que resmungava contra a lentidão do trânsito.

O cadarço do tênis me afasta das divagações. Deixo a sacola no banco, agacho para amarrá-lo. Donde estou, vejo, num ângulo interessante, o prédio onde funcionou o cinema. Em reformas. ‘Restauração da fachada’, publicaram n’ A Voz. Segundo a reportagem, ao término das obras, terá ‘uma sala para atividades audiovisuais’... Queiram os deuses protetores da Sétima Arte não fique só na promessa!

Pego a sacola. Retomo minha marcha apressada.

        Os antigos contam dos tempos que o Cine Brasil funcionava ali naquele prédio. Alguns, cuja memória não se foi junto com os cabelos e o vigor, recordam os filmes assistidos: sessões de faroeste, musicais em preto-e-branco, comédias do Mazzaropi, chanchadas da Atlântida... Certa feita, um senhorzinho me confidenciou: os peitos de mulher mais bonitos que eu vi na vida foram nesse cinema aí. Cofiou o bigode à lá Charles Bronson, seguiu calçada afora levando o sorrisinho dúbio. E eu fiquei a cismar se estariam os peitos em techinicolor ou ao alcance de sua mão na poltrona ao lado.

As árvores sacolejam com a ventania. Um galho tomba a poucos centímetros de mim. Os velhinhos desfazem canastras, recolhem o tabuleiro. Devem ter frequentado o Cine Brasil e chupado muitos drops de anis, penso... lamento não ter, como se diz, pego esse tempo: quando nasci, o cinema estava desativado há décadas.

De repente, o dia veste cinza-chumbo. Vou pela Raul Soares feito um expressinho.

A chuva me pega na porta de casa.  

Subo as escadas. Nalgum apartamento entre o segundo e o terceiro andar, assistem a um filme: as sirenes da polícia americana são inconfundíveis. Os sons vêm ao meu encalço como se fora eu o meliante que os tiras pretendem capturar.

Destranco e tranco a porta, ligeiro como um foragido de Alcatraz.

Enquanto as pipocas estouram, guardo a compra. Um antigo jingle vem à ponta da língua: pipoca na panela começa a arrebentar/pipoca com sal que sede que dá... Abro a geladeira. Não tem guaraná. O jeito é tomar a limonada que sobrou do almoço.

Dou o play em Gênio Indomável. Matt Damon, no auge da juventude, e Robin Williams (pra mim, a eterna babá quase perfeita) hão de me fazer esquecer o toró, as inquietudes que sempre me assaltam no fim do ano, essa vontade doida de beber um Antartica.

O clássico dos anos noventa e Maestro, que assisti ontem, exigem do espectador atenção, entrega e, sobretudo, paciência: são lentos e ultrapassam duas horas... ou talvez não exijam nada disso, eu é que entendo patavina de cinema. Porém, uma coisa sei: à medida que o tempo passa (e não me refiro à duração dos longas), dou conta de que preciso apenas de cenas com bons diálogos, silêncios bem dosados e pouca, ou nenhuma, ação. Ação é para a juventude. Ou, como disse Olyveira Daemon:

“a galera acha que filme adulto é filme com sexo & violência extrema... meu povo, isso é filme juvenil. filme adulto é sempre ritmo lento, lentíssimo, cheio de silêncios & vazios, sem enredo bem definido sem hora pra acabar.”

A chuva salpica a janela. Talvez, enciumada: tenho, em 42” e só para mim, a bela e indomável rebeldia de Will Hunting.

Fecho a cortina. O filme vai começar.    


Texto: Raphael Cerqueira Silva 
Foto: acervo do autor 

domingo, 24 de dezembro de 2023

Noite de teatro

 

 

        A decoração ilumina árvores, bancos, meus passos. Ilumina, sobretudo, minhas esperanças. Apesar da chuva que, incansável, despenca desde as quatro da tarde. Vou pelo parque, desvencilhando-me das poças, encantado com as lampadazinhas que anunciam a proximidade do Natal.   

Em frente à igreja, um grupo conversa. São jovens: nota-se pela descontração. Seguram mochilas, sacolas, bolsas; parecem indiferentes aos pingos que tombam como se quisessem varar os poliésteres das sombrinhas. A conversa segue animada. E eu sigo adiante. Sorrateira feito uma espiã soviética, a chuva penetra meus Asic, infiltrando-se nas meias.  

        Alojado na fachada do Paço Municipal, um Papai Noel sorri para as poças que se avolumam, para os veículos que rasgam o asfalto e cospem água pútrida na calçada. Ou, talvez, sorri da minha metáfora um tanto quanto anacrônica: afinal quem, nos estertores de 2023, e debaixo de um toró desses, ainda se lembra de espiões soviéticos... No meio de tanto neoclassicismo, o sorriso plástico e condescendente parece anunciar: trarei boas novas, aguardem ho ho ho!

        Aguardo o sinal abrir, mantenho o devido distanciamento da pista: não quero chegar molhado e, pior, imundo. Apresados, ônibus, táxis, entregadores do Ifood continuam a passar. “Eu ando pelo mundo/E os automóveis correm para quê?”

A mulherzinha ao meu lado me olha com rabo de olho. Penso mandá-la ouvir Adriana Calcanhoto, contudo, continuo a cantarolar: deve ser tão tapada quanto minha estagiária que, ao ver minhas fotos no show, soltou esta pérola: nunca ouvi falar dessa mulher... Ignoro a criatura, como ignorei a estagiária naquele dia. E continuo a cantar: “Exponho o meu modo, me mostro/Eu canto para quem?” 

        Protegido pelo guarda-chuva que me emprestaram no hotel, encaro o bonequinho vermelho do outro lado da avenida. Não vejo mais o Bom Velhinho; mas, eu sei, ainda sorri. Assim como sei que não desperta qualquer sentimento nessa gente azafamada que passa por aqui, nos automóveis ou a pé.

        Súbito, um Siena ignora o bonequinho que mudou de cor, avança escarrando grosseria e imundície... Não canto mais. A vontade é mandá-lo pra ponte que caiu. Mas, me contenho: sinto uma coisa incendiar o peito. Não é raiva, ao contrário, é algo bom. Apesar da sujidade que escorre pelas barras da calça e macula meus tênis, sinto uma energia diferente aflorar em mim. Se fosse dado a superstições, como minha ex-estagiária, diria que são bons fluidos emanados pelo Papai Noel do Paço.

 No meio da avenida, tenho ímpeto de proclamar: tô vendo uma esperança! Todavia, como essas pessoas que atravessam junto comigo não devem se lembrar da Graúna, mantenho o silêncio: receio ser chamado de biruta. 

A mulherzinha passa à frente. Paro no calçadão. Olho novamente o Papai Noel. Tímido, ensaio um adeus com a mão livre. O vento, insensível, tenta me arrancar o guarda-chuva.

Sob marquises, gente enrolada em trapos e desamparo. Algumas tentam engambelar a fome com restos de qualquer coisa, outras fumam desilusões cercadas de lonas e papelão encharcados. Uma mulher acalenta o bebê. Há espaço para a esperança entre tanto descaso e abandono, questiono aos pisca-piscas que compõem uma passarela dourada no calçadão.

Piso as poças iluminadas: inútil evitá-las. Um vira-lata persegue uma ratazana vinda não sei de onde. Mais astuta, a bicha se escafede pelas grades da galeria. Longe, a sirene do SAMU estrangula a noite.

        Outra morada improvisada. Alguém, envolto numa manta suja, dorme diante do Banco do Brasil. As luzes amarelas e azuis do letreiro velam seu sono. Porém, com tanta umidade, barulho e claridade, consegue dormir?

        Adiante, lixeiras abarrotadas com restos de capitalismo, outras poças. O pipoqueiro tenta garantir o pão na porta do teatro, onde um grupo se aglomera. Comentam as expectativas para o espetáculo, os ingressos já adquiridos para os próximos eventos... entremeadas de gestos e risos, as palavras, tal como a sirene do SAMU, ocupam a noite. Esquecidos da chuva, e de um mendigo que jaz aos pés da bilheteria, fazem planos para a resenha de amanhã, o réveillon. Parafraseando Lulu Santos: gente fina, elegante e, talvez, sincera.        

        Pergunto à atendente o valor do ingresso. Ela aponta o cartaz pregado à parede com durex. Varia conforme o setor: plateia A, plateia B e balcão nobre. Pagamento com PIX ou cartão, me informa, estendendo um mapa mal impresso dos assentos. Como a diferença entre os preços é ínfima, opto pela plateia A. Pode ser a fila IV, cadeira 5. Pétreo, o homem continua largado no degrau. Vivo, indago à maquininha. Digito a senha. Transação efetuada.

        “Como pode acontecer o que aconteceu e eu continuar normalmente minha vida medíocre?” A frase, lida no café da manhã, ressurge implacável para martelar minha consciência. É o questionamento que José Castello se faz ao ver um garoto esfarrapado adentrar o restaurante onde comia seu contrafilé com arroz negro. Defronte a bilheteria, me lanço a mesma pergunta enquanto a moça deseja ‘bom show’.

        Guardo o ticket no bolso. Por um triz, não tropeço na peleja que esconde quase nada do infeliz. Sinto-me incomodado: o valor que paguei para curtir o entretenimento de duas horas daria para alimentar este sujeito por uns dias. C’est la vie, alguém dirá em tom blasé. São as mazelas do sistema, o pragmático argumentará. Deus quis, sentenciará o crente. Betinho, certamente, o consideraria “um problema ético”. E essas pessoas aí na porta do teatro, o que pensam? Simplesmente acreditam que não há o que fazer ou, se há, está além de sua alçada? Aliás, será que pensam sobre?

 Olho para o céu: a chuva aperta. Mesmo de costas para o teatro, ainda tenho entranhado na retina o corpo enrolado na peleja encardida. Perdemos, mesmo, a capacidade de nos indignar, questiono ao guarda-chuva que emperrou e se recusa a abrir. 

         

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 




quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Ficam memórias e ensinamentos


Invariavelmente, as más notícias chegam pela manhã. Pelo menos, à minha porta sempre batem quando os primeiros raios do sol se adonam da sacada. Bem, ‘bater à porta’ é modo de dizer: as más notícias vêm assim que ligo o Wi-Fi. Talvez brotem com a alvorada porque a maioria das dores - e das mortes - ocorrem sob o pálio da noite.  Então, amanhece e as tristezas precisam ser levadas a quem possa interessar.

        Hoje, não foi diferente. Eu arrumava a cama quando a mensagem saltou pelo celular. Uma colega de labuta – a única que me escreve regularmente ou, noutras palavras, a única que tolera minha casmurrice crônica – me enviou esta mensagem: Soube que o Wagner Inácio faleceu. Poucas, diretas, e tristes palavras.

        Estendi o lençol, troquei a fronha, não com a atenção de antes. O bem-te-vi que tentava impor seu canto à desarmonia dos pardais se calou; e estes, respeitosos, debandaram. Olhei os reflexos do sol nas vidraças do prédio vizinho, fiquei a recordar:

        Wagner Inácio foi meu professor. Assumiu a cátedra quando eu cursava o segundo ano. Confesso, o Direito Civil não me seduzia muito e, por isso, não fui um dos melhores da classe. Naquele tempo, eu preferia os historicismos do Constitucional e as teorias do Penal... Contudo, o Professor Wagner, apesar da juventude ou talvez por isso - regulava idade com a maioria de nós – conseguia imprimir dinamismo e frescor às aulas. Didática inconfundível, laçava minha atenção mesmo quando o tópico era, para mim, enfadonho ou confuso. Espirituoso, um senso de humor acurado e uma autoironia com a qual eu me identificava, me ensinou: é preciso saber rir de si mesmo. Repetindo o gesto do Jô Soares, deixava um “beijo do gordo”, e saía corredor afora. Apressado, corria à sala da coordenação, onde outras responsabilidades acadêmicas o aguardavam.

        Lecionava, muitas vezes, sentado no tampo da carteira dos alunos. Nessas horas, dizia chistes sobre a caneta de uma – “olha, a caneta dela é toda delicada” -, folheava o caderno do outro – “pra eu ver se tá anotando direitinho o que falei”. Ou, simplesmente, remexia nossos estojos. Certa noite, enquanto discorria sobre a teoria concepcionista no Código Civil de 2002, tirou o Passatempo da minha pochete. Sem cerimônia, abriu o pacote já pela metade e, com o biscoito à boca, comentou: tá meio murcho. Mesmo assim, se serviu de mais um. Espalmou as mãos afastando as migalhas, fechou o zíper da pochete, e prosseguiu com a aula. Eu, que desde o primário nunca fui de dividir lanche com ninguém, tive que engolir aquilo calado. O Wagner Inácio era assim, tinha dessas idiossincrasias... Acho, era adepto da máxima: perco o aluno, mas não perco a piada. Não me perdeu, contudo, passei a guardar meu lanche na pasta.

        Tempos depois, um sorteio: Wagner estava empolgado com a publicação de seu livro sobre o erro médico e suas consequências jurídicas. Largado na minha carteira, perguntou: se você ganhar esse livro, vai ler. Sorri, e retruquei que nunca ganhara nada num sorteio. E emendei: se eu passar no meio duma briga onde as pessoas estão jogando pedras, é capaz de eu não levar uma pedrada sequer... Ele riu, e disse: você vai ganhar, e vai ler. Feito o sorteio, fui contemplado. E li o livro, que está guardado nalgum canto deste apartamento na companhia do Sílvio Rodrigues, Humberto Theodoro, Damásio e outros... Com a leitura, aprendi, entre tantas coisas, que nosocômio é sinônimo para hospital. Engraçado, passei meses encasquetado com essa simpática palavra... mas, até hoje, nunca a usei.

        Nos já saudosos tempos das audiências presenciais, em que partes e advogados precisavam comparecer ao fórum, encontrei o Dr. Wagner muitas vezes. (Hoje, com o processo eletrônico e as audiências por videoconferência, a gente não vê ninguém, o fórum quase fica às moscas... nos dias nublados e chuvosos, aqueles corredores parecem casas mal-assombradas de filme B).

Mas, como eu dizia, o Dr. Wagner comparecia às varas para consultar os autos, protocolar documentos, participar de audiências. Em um desses encontros, pedi-lhe para prefaciar um livro de poemas que pretendia publicar. Ele topou, mesmo a literatura não sendo muito a sua praia. Dias depois, enviei-lhe o arquivo. Todavia, por questões contratuais, não fechei com as editoras: uma me exigiu o livro com menos páginas, ou seja, eu teria que mutilar minha obra; a outra propôs que eu bancasse os custos da publicação... Não topei, o livro está engavetado. Contudo, sem o prefácio do Wagner: inexperiente nesses assuntos e frustrado, lhe enviei e-mail dizendo que não havia previsão do livro ser publicado, e se seria, e que, portanto, não precisaria se preocupar com o prefácio...

A Indesejada das Gentes, nesta semana que antecede o Natal, fez mais uma visita. Todavia, não levará as memórias e os ensinamentos que o mestre nos legou.

Ao Wagner Inácio, esta crônica.

 



 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 
Foto: acervo do autor 

domingo, 17 de dezembro de 2023

Tradições

 

O ano vai chegando ao fim. Tradicionalmente, as pessoas que conheço viajam para Guarapari, organizam novenas, prometem o que não cumprirão, se entopem de rabanada e peru e lentilha e panetone, montam árvores (algumas tão pavorosas que me pergunto como o Noel ainda deposita presentes ali). Nas repartições, burocratas planejam confraternizações, onde se empanturrarão de churrasco, farofa e vinagrete, e beberão como se não houvesse amanhã.  Enfim, como diz o outro, tem gosto pra tudo.

Como eu disse noutra crônica, a cada dia fico mais parecido com o Raul: aprendendo a ser louco, um maluco total. Contudo, também cometo certas idiossincrasias. Uma delas: devoro um chocotone enorme e, ao cabo, lambo dedos e beiços para, quem sabe, brotar outro em meu colo. Dava certo com o papel dos presentes no aniversário: jogando-os debaixo da cama, sempre ganhava mais presentes. Com o chocotone, ainda não deu certo. No entanto, continuo insistindo, como insistem alguns conhecidos em vestir branco na virada do ano. 

Outra de minhas tradições – e, creio, de uma legião de súditos: esperar, ansiosamente, o Roberto Carlos. Desde novembro, começo a pesquisar no Google quem são seus convidados, o repertório do show, onde foi gravado… Navegando como um descobridor português, acabo sempre atracando no porto da saudade. Ali, desembarco, miro o horizonte: vejo além dele imagens doutros tempos. 

Nos tempos anteriores à internet, para conseguir aquelas informações, eu precisava adquirir o Caderno da TV, que saía aos domingos n’O Globo. Ou esperar a chamada durante os intervalos dos programas. Tempos de menos informação, de mais encantos. Talvez por isso mesmo, inesquecíveis.

 Assim como não me esqueço: comprava, meses de antecedência, uma fita para gravar o Especial. Foram anos e anos marcando na agenda, esperando a novela das oito terminar para apertar o REC no videocassete.

Escrevendo o parágrafo anterior, senti a brisa da nostalgia revolver as memórias. Como o cabeçote do videocassete, fez um chiado e, sem querer querendo, deu o play. Agora desfilam apressadas pelas retinas, feito um filme do Chaplin, imagens de minha juventude, das VHS empilhadas na estante, da programação da tevê recortada do jornal, de ‘tantos sonhos feitos em pedaços’ pelo implacável Sr. Tempo.

Se, por um lado, este Senhor jogou para escanteio as fitas, os videocassetes, as tevês de tubo e os jornais impressos, por outro, trouxe novas tecnologias: o streaming e o Youtube permitem ver e rever os especiais do Rei a qualquer hora, o ano todo.

E, quando o vejo, majestoso, na tela da minha Philips, não deixo de recordar: no Nilson Nelson, em Brasília, recebi de sua mão uma rosa vermelha. Acho, já comentei sobre esse momento lindo nalguma crônica… às vezes, me pego repetindo temas e lembranças. Caduquice, indago aos livros na estante. Eles permanecem em silêncio; eu, com minhas inquietudes. Nessas horas, recorro à televisão: alguém sempre está falando qualquer coisa.

Todavia, quando me sinto farto do silêncio livresco e das baboseiras televisivas, olho a parede. A imensidão branca me acalma: imagino que é um enorme bloco de gelo vindo em minha direção para afastar esse calor dantesco.

Neste exato momento, encaro mais uma vez a parede. Mentalmente, conto quantos dias faltam para o Especial do Roberto Carlos. De repente, uma barata cascuda e asquerosa invade o quarto. Como ousa, sua sacripanta! Sem esperar resposta, dou-lhe uma chinelada. A bicha estremece, contudo, resiste. Outra chinelada. Mais outra, para garantir. A invasora jaz aos pés da cama. Torno a olhar a parede: mais tarde, com o chinelo, empurrarei seu cadáver nojento à varanda e, com um chutão pelé, o lançarei na escuridão da noite.

Mas, como eu dizia, voltei a olhar a parede. Minhas vistas acompanham a rachadura, sobem até o topo do guarda-roupa, onde repousa uma caixa de pinus. Ao longo dos anos, ela guardou tanta coisa: brinquedos, revistinhas, chaveiros, adesivos, lápis de cor; hoje, preserva fotografias. E, o que poucos sabem, uma relíquia: a rosa que recebi do Roberto. Murcha e seca, todavia, intacta. Quer dizer, intacta em termos: ao sair do ginásio, uma dona, vendo que eu levava a rosa feito um troféu, me cercou pedindo uma pétala… pediu com tanta sofreguidão, um certo desespero até, que cedi: arranquei uma petalinha. Ela se foi, saltitando igual a Tieta nas dunas do Mangue Seco. Eu entrei no táxi.

A rosa vermelha, que hoje não é mais tão vermelha, resiste ao tempo, como outras tantas lembranças. Não fossem estes livros aí na estante me perscrutando o tempo inteiro, eu treparia no tamborete, abriria a caixa, me entregaria sem pudor à Senhora Nostalgia.

Um desses indiscretos perscrutadores é o A Descoberta do Mundo. Nele, Clarice comenta que folhas sempre caem em seus cabelos. Quando li isso, imaginei-a flanando pelo Leme, a brisa lhe entregando tais bilhetinhos... Afinal, como diz a canção do Roberto, “folhas são bilhetes deixados aos homens do nosso tempo”. Na crônica, a escritora confidencia que recolhe tais delicadezas que Deus lhe concede. “Até que um dia, abrindo a bolsa, encontro entre os objetos a folha seca, engelhada, morta. Jogo-a fora: não me interessa fetiche morto como lembrança.” 

A mim, contudo, me interessa manter guardadinha a rosa que ganhei. Fetiche? Rotulem como quiser: a rosa segue na caixa. Livre do vento que bate a porta do quarto, longe das patas imundas duma barata desclassificada, a salvo do silêncio constrangedor dos livros. Sobretudo, protegida de mãos que, por ventura, queiram tocá-la e, desastrada ou dolosamente, destruí-la. 

O ano vai chegando ao fim. Do nada, me pego a pensar em coisas sem nexo. E, o que é pior, a escrever coisas sem nexo. Porém, é melhor escrevê-las que montar árvores pavorosas, viajar para praias lotadas, encher a cara e dar vexame nas confraternizações que os burocratas insistem em realizar. Afinal, todos têm a sua tradição. Inclusive os burocratas. 



Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 


domingo, 3 de dezembro de 2023

É primavera


Vou distraído pela calçada ouvindo Simone.

“Gás de cozinha, cem real. Isso mesmo, só cem real!” Entre chiados e vilipêndios gramaticais, o alto-falante anuncia a promoção. O caminhão passa, vagarosamente, levando os botijões e a voz fanha.

Aumento o som.

Tento não pensar no sobe-e-desce dos preços: você vai ao mercado, o produto custa X; retorna amanhã, custa X+2; daí a alguns dias cai pra X+1 para, no dia seguinte, saltar para X+3... “PROMOÇÃO”, “OFERTA” insistem as letras vermelhas nos cartazes espalhados pelo mercado. Na minha terra isso tinha outro nome.

O caminhão do gás, que agora dobra à esquerda, também vive nessa roda-viva. Aliás, quem não vive?

Já posso baixar o volume. 

Em dueto com Simone, pareço um besourão com amigdalite. Mesmo assim, canto. Para não pensar na inflação, na fatura do cartão, na xaropada da burocracia e, sobretudo, para não pensar no joelho. Que dói, depois das extravagâncias no treino: tentando impressionar certa pessoa que malhava ao meu lado, abusei dos exercícios. É o preço que pagamos por nossas, digamos, vaidades bestas.

Retomo a marcha pela calçada. E quase piso na pipoca que, laboriosamente, vai ladeira acima.

Lembro-me da fábula: as formigas já começaram seu mister. Unidas, somam forças para carregar o troféu. Deram sorte: fui eu a passar neste momento. Fosse um apressadinho qualquer, desses que andam como se tivessem as asas de Hermes nos calcanhares, teriam sido esmagadas junto com a pipoca.

Observo a fileira de operárias. A Cigarra continua seu canto melodioso em meus ouvidos.

Súbito, feito a M60 do Rambo, uma moto dispara: “hoje! é hoje a grande inauguração da Pizzaria Mamma Mia!”.

Tento lembrar a última vez que saí para comer pizza. Afinal, convenhamos, pedir pizza ou qualquer outra coisa pelo Ifood não é o mesmo que sair para comer... Ainda que o estabelecimento esteja lotado, que as pessoas se esgoelem ao conversar, que o cantor continue entoando seu canto “não importando se quem pagou quis ouvir”, ainda que ao cabo da noite cobrem um absurdo pelo lanche que só servirá para aumentar a circunferência abdominal e o peso da consciência...

A moto avança o ‘PARE’ quase apagado, leva o retrovisor do Onix. Junto, minhas conjecturas.

O motorista xinga. O motoqueiro acelera, escapole pela travessa.

Esquecido das pizzas e formigas, sigo meu caminho.

Vou cantando, antecipando-me aos festejos natalinos: O ano termina e nasce outra vez... Recordo aquela noite no Central. Simone desfilou grandes sucessos para comemorar seus cinquenta anos de carreira. Uma noite memorável. Preciso escrever sobre, penso.

Meus pensamentos novamente interrompidos. Agora, pelo Oran. Outros pensamentos, contudo, me assaltam: curioso passar por aqui, não é seu trajeto... Lenta e ruidosamente, ele sobe. Uma fila de veículos se formando logo atrás. Sem o saber, o velho ônibus despertou-me reminiscências:

Muitos anos me separam daquele garoto que ia e voltava no Oran. Ia sonolento, voltava faminto no uniforme amarelo e preto. (Hoje, o sono rareia. E a fome? Estrangulo-a com biscoitos e doces, poderosíssimos aliados das pizzas na invencível Batalha das Calorias). Mas, aquele garoto franzino e quatro-olhos sequer sabia o que eram calorias: suas preocupações bem diferentes dessas que me afligem atualmente: contas a vencer, cabelos rareando, metas burocráticas, amores não vividos, outros tantos fracassados...

Aquele garoto, “leve buço lhe sombreava o lábio”, sempre levava um livro nas mãos. Às vezes, lia-o durante a viagem; noutras vezes, impiedosas, as pálpebras impediam-no. Vejo-o na dura poltrona, cabelos fartos em desalinho, o Noite na taverna xerocado em seu regaço, a cabeça tombada... ainda lê as mórbidas e poéticas frases de Álvares de Azevedo, ou capitulou ante o poderio de Morfeu? Ao lado, a Company cinza, que o pai comprara, no crediário, em prestações a perder de vista. Dormindo ou lendo, certamente, preocupações rondam-no: testinhos semanais, equações matemáticas, fórmulas químicas, leis newtonianas, orações subordinadas substantivas, problemáticas envolvendo senos e cossenos e catetos e hipotenusas...

O ônibus, a custo, vence a ladeira. Vai sentido cemitério. Para onde também vou.     



 

Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor 

Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...