A decoração ilumina árvores, bancos,
meus passos. Ilumina, sobretudo, minhas esperanças. Apesar da chuva que,
incansável, despenca desde as quatro da tarde. Vou pelo parque,
desvencilhando-me das poças, encantado com as lampadazinhas que anunciam a
proximidade do Natal.
Em
frente à igreja, um grupo conversa. São jovens: nota-se pela descontração.
Seguram mochilas, sacolas, bolsas; parecem indiferentes aos pingos que tombam
como se quisessem varar os poliésteres das sombrinhas. A conversa segue
animada. E eu sigo adiante. Sorrateira feito uma espiã soviética, a chuva
penetra meus Asic, infiltrando-se nas meias.
Alojado na fachada do Paço Municipal, um
Papai Noel sorri para as poças que se avolumam, para os veículos que rasgam o
asfalto e cospem água pútrida na calçada. Ou, talvez, sorri da minha metáfora
um tanto quanto anacrônica: afinal quem, nos estertores de 2023, e debaixo de
um toró desses, ainda se lembra de espiões soviéticos... No meio de tanto
neoclassicismo, o sorriso plástico e condescendente parece anunciar: trarei
boas novas, aguardem ho ho ho!
Aguardo
o sinal abrir, mantenho o devido distanciamento da pista: não quero chegar
molhado e, pior, imundo. Apresados, ônibus, táxis, entregadores do Ifood
continuam a passar. “Eu ando pelo mundo/E os automóveis correm para quê?”
A
mulherzinha ao meu lado me olha com rabo de olho. Penso mandá-la ouvir Adriana
Calcanhoto, contudo, continuo a cantarolar: deve ser tão tapada quanto minha
estagiária que, ao ver minhas fotos no show, soltou esta pérola: nunca ouvi
falar dessa mulher... Ignoro a criatura, como ignorei a estagiária naquele dia.
E continuo a cantar: “Exponho o meu modo, me mostro/Eu canto para quem?”
Protegido pelo guarda-chuva que me
emprestaram no hotel, encaro o bonequinho vermelho do outro lado da avenida.
Não vejo mais o Bom Velhinho; mas, eu sei, ainda sorri. Assim como sei que não
desperta qualquer sentimento nessa gente azafamada que passa por aqui, nos
automóveis ou a pé.
Súbito,
um Siena ignora o bonequinho que mudou de cor, avança escarrando grosseria e
imundície... Não canto mais. A vontade é mandá-lo pra ponte que caiu. Mas, me
contenho: sinto uma coisa incendiar o peito. Não é raiva, ao contrário, é algo
bom. Apesar da sujidade que escorre pelas barras da calça e macula meus tênis,
sinto uma energia diferente aflorar em mim. Se fosse dado a superstições, como
minha ex-estagiária, diria que são bons fluidos emanados pelo Papai Noel do
Paço.
No meio da avenida, tenho ímpeto de proclamar:
tô vendo uma esperança! Todavia, como essas pessoas que atravessam junto comigo
não devem se lembrar da Graúna, mantenho o silêncio: receio ser chamado de
biruta.
A
mulherzinha passa à frente. Paro no calçadão. Olho novamente o Papai Noel.
Tímido, ensaio um adeus com a mão livre. O vento, insensível, tenta me arrancar
o guarda-chuva.
Sob
marquises, gente enrolada em trapos e desamparo. Algumas tentam engambelar a
fome com restos de qualquer coisa, outras fumam desilusões cercadas de lonas e
papelão encharcados. Uma mulher acalenta o bebê. Há espaço para a esperança
entre tanto descaso e abandono, questiono aos pisca-piscas que compõem uma
passarela dourada no calçadão.
Piso
as poças iluminadas: inútil evitá-las. Um vira-lata persegue uma ratazana vinda
não sei de onde. Mais astuta, a bicha se escafede pelas grades da galeria. Longe, a
sirene do SAMU estrangula a noite.
Outra morada improvisada. Alguém, envolto
numa manta suja, dorme diante do Banco do Brasil. As luzes amarelas e azuis do
letreiro velam seu sono. Porém, com tanta umidade, barulho e claridade,
consegue dormir?
Adiante, lixeiras abarrotadas com restos
de capitalismo, outras poças. O pipoqueiro tenta garantir o pão na porta do
teatro, onde um grupo se aglomera. Comentam as expectativas para o espetáculo,
os ingressos já adquiridos para os próximos eventos... entremeadas de gestos e
risos, as palavras, tal como a sirene do SAMU, ocupam a noite. Esquecidos da
chuva, e de um mendigo que jaz aos pés da bilheteria, fazem planos para a
resenha de amanhã, o réveillon. Parafraseando Lulu Santos: gente fina, elegante
e, talvez, sincera.
Pergunto à atendente o valor do
ingresso. Ela aponta o cartaz pregado à parede com durex. Varia conforme o
setor: plateia A, plateia B e balcão nobre. Pagamento com PIX ou cartão, me
informa, estendendo um mapa mal impresso dos assentos. Como a diferença entre
os preços é ínfima, opto pela plateia A. Pode ser a fila IV, cadeira 5. Pétreo,
o homem continua largado no degrau. Vivo, indago à maquininha. Digito a senha.
Transação efetuada.
“Como pode acontecer o que aconteceu e
eu continuar normalmente minha vida medíocre?” A frase, lida no café da manhã,
ressurge implacável para martelar minha consciência. É o questionamento que
José Castello se faz ao ver um garoto esfarrapado adentrar o restaurante onde
comia seu contrafilé com arroz negro. Defronte a bilheteria, me lanço a mesma
pergunta enquanto a moça deseja ‘bom show’.
Guardo o ticket no bolso. Por um triz,
não tropeço na peleja que esconde quase nada do infeliz. Sinto-me incomodado: o
valor que paguei para curtir o entretenimento de duas horas daria para
alimentar este sujeito por uns dias. C’est la vie, alguém dirá em tom
blasé. São as mazelas do sistema, o pragmático argumentará. Deus quis,
sentenciará o crente. Betinho, certamente, o consideraria “um problema ético”.
E essas pessoas aí na porta do teatro, o que pensam? Simplesmente acreditam que
não há o que fazer ou, se há, está além de sua alçada? Aliás, será que pensam
sobre?
Olho para o céu: a chuva aperta. Mesmo de
costas para o teatro, ainda tenho entranhado na retina o corpo enrolado na
peleja encardida. Perdemos, mesmo, a capacidade de nos indignar, questiono ao
guarda-chuva que emperrou e se recusa a abrir.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor
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