domingo, 24 de dezembro de 2023

Noite de teatro

 

 

        A decoração ilumina árvores, bancos, meus passos. Ilumina, sobretudo, minhas esperanças. Apesar da chuva que, incansável, despenca desde as quatro da tarde. Vou pelo parque, desvencilhando-me das poças, encantado com as lampadazinhas que anunciam a proximidade do Natal.   

Em frente à igreja, um grupo conversa. São jovens: nota-se pela descontração. Seguram mochilas, sacolas, bolsas; parecem indiferentes aos pingos que tombam como se quisessem varar os poliésteres das sombrinhas. A conversa segue animada. E eu sigo adiante. Sorrateira feito uma espiã soviética, a chuva penetra meus Asic, infiltrando-se nas meias.  

        Alojado na fachada do Paço Municipal, um Papai Noel sorri para as poças que se avolumam, para os veículos que rasgam o asfalto e cospem água pútrida na calçada. Ou, talvez, sorri da minha metáfora um tanto quanto anacrônica: afinal quem, nos estertores de 2023, e debaixo de um toró desses, ainda se lembra de espiões soviéticos... No meio de tanto neoclassicismo, o sorriso plástico e condescendente parece anunciar: trarei boas novas, aguardem ho ho ho!

        Aguardo o sinal abrir, mantenho o devido distanciamento da pista: não quero chegar molhado e, pior, imundo. Apresados, ônibus, táxis, entregadores do Ifood continuam a passar. “Eu ando pelo mundo/E os automóveis correm para quê?”

A mulherzinha ao meu lado me olha com rabo de olho. Penso mandá-la ouvir Adriana Calcanhoto, contudo, continuo a cantarolar: deve ser tão tapada quanto minha estagiária que, ao ver minhas fotos no show, soltou esta pérola: nunca ouvi falar dessa mulher... Ignoro a criatura, como ignorei a estagiária naquele dia. E continuo a cantar: “Exponho o meu modo, me mostro/Eu canto para quem?” 

        Protegido pelo guarda-chuva que me emprestaram no hotel, encaro o bonequinho vermelho do outro lado da avenida. Não vejo mais o Bom Velhinho; mas, eu sei, ainda sorri. Assim como sei que não desperta qualquer sentimento nessa gente azafamada que passa por aqui, nos automóveis ou a pé.

        Súbito, um Siena ignora o bonequinho que mudou de cor, avança escarrando grosseria e imundície... Não canto mais. A vontade é mandá-lo pra ponte que caiu. Mas, me contenho: sinto uma coisa incendiar o peito. Não é raiva, ao contrário, é algo bom. Apesar da sujidade que escorre pelas barras da calça e macula meus tênis, sinto uma energia diferente aflorar em mim. Se fosse dado a superstições, como minha ex-estagiária, diria que são bons fluidos emanados pelo Papai Noel do Paço.

 No meio da avenida, tenho ímpeto de proclamar: tô vendo uma esperança! Todavia, como essas pessoas que atravessam junto comigo não devem se lembrar da Graúna, mantenho o silêncio: receio ser chamado de biruta. 

A mulherzinha passa à frente. Paro no calçadão. Olho novamente o Papai Noel. Tímido, ensaio um adeus com a mão livre. O vento, insensível, tenta me arrancar o guarda-chuva.

Sob marquises, gente enrolada em trapos e desamparo. Algumas tentam engambelar a fome com restos de qualquer coisa, outras fumam desilusões cercadas de lonas e papelão encharcados. Uma mulher acalenta o bebê. Há espaço para a esperança entre tanto descaso e abandono, questiono aos pisca-piscas que compõem uma passarela dourada no calçadão.

Piso as poças iluminadas: inútil evitá-las. Um vira-lata persegue uma ratazana vinda não sei de onde. Mais astuta, a bicha se escafede pelas grades da galeria. Longe, a sirene do SAMU estrangula a noite.

        Outra morada improvisada. Alguém, envolto numa manta suja, dorme diante do Banco do Brasil. As luzes amarelas e azuis do letreiro velam seu sono. Porém, com tanta umidade, barulho e claridade, consegue dormir?

        Adiante, lixeiras abarrotadas com restos de capitalismo, outras poças. O pipoqueiro tenta garantir o pão na porta do teatro, onde um grupo se aglomera. Comentam as expectativas para o espetáculo, os ingressos já adquiridos para os próximos eventos... entremeadas de gestos e risos, as palavras, tal como a sirene do SAMU, ocupam a noite. Esquecidos da chuva, e de um mendigo que jaz aos pés da bilheteria, fazem planos para a resenha de amanhã, o réveillon. Parafraseando Lulu Santos: gente fina, elegante e, talvez, sincera.        

        Pergunto à atendente o valor do ingresso. Ela aponta o cartaz pregado à parede com durex. Varia conforme o setor: plateia A, plateia B e balcão nobre. Pagamento com PIX ou cartão, me informa, estendendo um mapa mal impresso dos assentos. Como a diferença entre os preços é ínfima, opto pela plateia A. Pode ser a fila IV, cadeira 5. Pétreo, o homem continua largado no degrau. Vivo, indago à maquininha. Digito a senha. Transação efetuada.

        “Como pode acontecer o que aconteceu e eu continuar normalmente minha vida medíocre?” A frase, lida no café da manhã, ressurge implacável para martelar minha consciência. É o questionamento que José Castello se faz ao ver um garoto esfarrapado adentrar o restaurante onde comia seu contrafilé com arroz negro. Defronte a bilheteria, me lanço a mesma pergunta enquanto a moça deseja ‘bom show’.

        Guardo o ticket no bolso. Por um triz, não tropeço na peleja que esconde quase nada do infeliz. Sinto-me incomodado: o valor que paguei para curtir o entretenimento de duas horas daria para alimentar este sujeito por uns dias. C’est la vie, alguém dirá em tom blasé. São as mazelas do sistema, o pragmático argumentará. Deus quis, sentenciará o crente. Betinho, certamente, o consideraria “um problema ético”. E essas pessoas aí na porta do teatro, o que pensam? Simplesmente acreditam que não há o que fazer ou, se há, está além de sua alçada? Aliás, será que pensam sobre?

 Olho para o céu: a chuva aperta. Mesmo de costas para o teatro, ainda tenho entranhado na retina o corpo enrolado na peleja encardida. Perdemos, mesmo, a capacidade de nos indignar, questiono ao guarda-chuva que emperrou e se recusa a abrir. 

         

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 




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