Invariavelmente,
as más notícias chegam pela manhã. Pelo menos, à minha porta sempre batem quando
os primeiros raios do sol se adonam da sacada. Bem, ‘bater à porta’ é modo de
dizer: as más notícias vêm assim que ligo o Wi-Fi. Talvez brotem com a alvorada
porque a maioria das dores - e das mortes - ocorrem sob o pálio da noite. Então, amanhece e as tristezas precisam ser
levadas a quem possa interessar.
Hoje, não foi diferente. Eu arrumava a cama quando a mensagem
saltou pelo celular. Uma colega de labuta – a única que me escreve regularmente
ou, noutras palavras, a única que tolera minha casmurrice crônica – me enviou
esta mensagem: Soube que o Wagner Inácio faleceu. Poucas, diretas, e tristes
palavras.
Estendi o lençol, troquei a fronha, não com a atenção de
antes. O bem-te-vi que tentava impor seu canto à desarmonia dos pardais se calou;
e estes, respeitosos, debandaram. Olhei os reflexos do sol nas vidraças do
prédio vizinho, fiquei a recordar:
Wagner Inácio foi meu professor. Assumiu a cátedra quando eu
cursava o segundo ano. Confesso, o Direito Civil não me seduzia muito e, por
isso, não fui um dos melhores da classe. Naquele tempo, eu preferia os
historicismos do Constitucional e as teorias do Penal... Contudo, o Professor
Wagner, apesar da juventude ou talvez por isso - regulava idade com a maioria de
nós – conseguia imprimir dinamismo e frescor às aulas. Didática inconfundível, laçava
minha atenção mesmo quando o tópico era, para mim, enfadonho ou confuso. Espirituoso,
um senso de humor acurado e uma autoironia com a qual eu me identificava, me
ensinou: é preciso saber rir de si mesmo. Repetindo o gesto do Jô Soares, deixava
um “beijo do gordo”, e saía corredor afora. Apressado, corria à sala da coordenação,
onde outras responsabilidades acadêmicas o aguardavam.
Lecionava, muitas vezes, sentado no tampo da carteira dos
alunos. Nessas horas, dizia chistes sobre a caneta de uma – “olha, a caneta
dela é toda delicada” -, folheava o caderno do outro – “pra eu ver se tá anotando
direitinho o que falei”. Ou, simplesmente, remexia nossos estojos. Certa noite,
enquanto discorria sobre a teoria concepcionista no Código Civil de 2002, tirou
o Passatempo da minha pochete. Sem cerimônia, abriu o pacote já pela metade e,
com o biscoito à boca, comentou: tá meio murcho. Mesmo assim, se serviu de mais
um. Espalmou as mãos afastando as migalhas, fechou o zíper da pochete, e prosseguiu
com a aula. Eu, que desde o primário nunca fui de dividir lanche com ninguém,
tive que engolir aquilo calado. O Wagner Inácio era assim, tinha dessas
idiossincrasias... Acho, era adepto da máxima: perco o aluno, mas não perco a
piada. Não me perdeu, contudo, passei a guardar meu lanche na pasta.
Tempos depois, um sorteio: Wagner estava empolgado com a
publicação de seu livro sobre o erro médico e suas consequências jurídicas. Largado
na minha carteira, perguntou: se você ganhar esse livro, vai ler. Sorri, e retruquei
que nunca ganhara nada num sorteio. E emendei: se eu passar no meio duma briga
onde as pessoas estão jogando pedras, é capaz de eu não levar uma pedrada sequer...
Ele riu, e disse: você vai ganhar, e vai ler. Feito o sorteio, fui contemplado.
E li o livro, que está guardado nalgum canto deste apartamento na companhia do
Sílvio Rodrigues, Humberto Theodoro, Damásio e outros... Com a leitura, aprendi,
entre tantas coisas, que nosocômio é sinônimo para hospital. Engraçado, passei meses
encasquetado com essa simpática palavra... mas, até hoje, nunca a usei.
Nos já saudosos tempos das audiências presenciais, em que
partes e advogados precisavam comparecer ao fórum, encontrei o Dr. Wagner
muitas vezes. (Hoje, com o processo eletrônico e as audiências por
videoconferência, a gente não vê ninguém, o fórum quase fica às moscas... nos
dias nublados e chuvosos, aqueles corredores parecem casas mal-assombradas de filme
B).
Mas,
como eu dizia, o Dr. Wagner comparecia às varas para consultar os autos, protocolar
documentos, participar de audiências. Em um desses encontros, pedi-lhe para
prefaciar um livro de poemas que pretendia publicar. Ele topou, mesmo a
literatura não sendo muito a sua praia. Dias depois, enviei-lhe o arquivo.
Todavia, por questões contratuais, não fechei com as editoras: uma me exigiu o
livro com menos páginas, ou seja, eu teria que mutilar minha obra; a outra propôs
que eu bancasse os custos da publicação... Não topei, o livro está engavetado.
Contudo, sem o prefácio do Wagner: inexperiente nesses assuntos e frustrado,
lhe enviei e-mail dizendo que não havia previsão do livro ser publicado, e se
seria, e que, portanto, não precisaria se preocupar com o prefácio...
A
Indesejada das Gentes, nesta semana que antecede o Natal, fez mais uma visita. Todavia,
não levará as memórias e os ensinamentos que o mestre nos legou.
Ao Wagner
Inácio, esta crônica.
Nenhum comentário:
Postar um comentário