quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Ficam memórias e ensinamentos


Invariavelmente, as más notícias chegam pela manhã. Pelo menos, à minha porta sempre batem quando os primeiros raios do sol se adonam da sacada. Bem, ‘bater à porta’ é modo de dizer: as más notícias vêm assim que ligo o Wi-Fi. Talvez brotem com a alvorada porque a maioria das dores - e das mortes - ocorrem sob o pálio da noite.  Então, amanhece e as tristezas precisam ser levadas a quem possa interessar.

        Hoje, não foi diferente. Eu arrumava a cama quando a mensagem saltou pelo celular. Uma colega de labuta – a única que me escreve regularmente ou, noutras palavras, a única que tolera minha casmurrice crônica – me enviou esta mensagem: Soube que o Wagner Inácio faleceu. Poucas, diretas, e tristes palavras.

        Estendi o lençol, troquei a fronha, não com a atenção de antes. O bem-te-vi que tentava impor seu canto à desarmonia dos pardais se calou; e estes, respeitosos, debandaram. Olhei os reflexos do sol nas vidraças do prédio vizinho, fiquei a recordar:

        Wagner Inácio foi meu professor. Assumiu a cátedra quando eu cursava o segundo ano. Confesso, o Direito Civil não me seduzia muito e, por isso, não fui um dos melhores da classe. Naquele tempo, eu preferia os historicismos do Constitucional e as teorias do Penal... Contudo, o Professor Wagner, apesar da juventude ou talvez por isso - regulava idade com a maioria de nós – conseguia imprimir dinamismo e frescor às aulas. Didática inconfundível, laçava minha atenção mesmo quando o tópico era, para mim, enfadonho ou confuso. Espirituoso, um senso de humor acurado e uma autoironia com a qual eu me identificava, me ensinou: é preciso saber rir de si mesmo. Repetindo o gesto do Jô Soares, deixava um “beijo do gordo”, e saía corredor afora. Apressado, corria à sala da coordenação, onde outras responsabilidades acadêmicas o aguardavam.

        Lecionava, muitas vezes, sentado no tampo da carteira dos alunos. Nessas horas, dizia chistes sobre a caneta de uma – “olha, a caneta dela é toda delicada” -, folheava o caderno do outro – “pra eu ver se tá anotando direitinho o que falei”. Ou, simplesmente, remexia nossos estojos. Certa noite, enquanto discorria sobre a teoria concepcionista no Código Civil de 2002, tirou o Passatempo da minha pochete. Sem cerimônia, abriu o pacote já pela metade e, com o biscoito à boca, comentou: tá meio murcho. Mesmo assim, se serviu de mais um. Espalmou as mãos afastando as migalhas, fechou o zíper da pochete, e prosseguiu com a aula. Eu, que desde o primário nunca fui de dividir lanche com ninguém, tive que engolir aquilo calado. O Wagner Inácio era assim, tinha dessas idiossincrasias... Acho, era adepto da máxima: perco o aluno, mas não perco a piada. Não me perdeu, contudo, passei a guardar meu lanche na pasta.

        Tempos depois, um sorteio: Wagner estava empolgado com a publicação de seu livro sobre o erro médico e suas consequências jurídicas. Largado na minha carteira, perguntou: se você ganhar esse livro, vai ler. Sorri, e retruquei que nunca ganhara nada num sorteio. E emendei: se eu passar no meio duma briga onde as pessoas estão jogando pedras, é capaz de eu não levar uma pedrada sequer... Ele riu, e disse: você vai ganhar, e vai ler. Feito o sorteio, fui contemplado. E li o livro, que está guardado nalgum canto deste apartamento na companhia do Sílvio Rodrigues, Humberto Theodoro, Damásio e outros... Com a leitura, aprendi, entre tantas coisas, que nosocômio é sinônimo para hospital. Engraçado, passei meses encasquetado com essa simpática palavra... mas, até hoje, nunca a usei.

        Nos já saudosos tempos das audiências presenciais, em que partes e advogados precisavam comparecer ao fórum, encontrei o Dr. Wagner muitas vezes. (Hoje, com o processo eletrônico e as audiências por videoconferência, a gente não vê ninguém, o fórum quase fica às moscas... nos dias nublados e chuvosos, aqueles corredores parecem casas mal-assombradas de filme B).

Mas, como eu dizia, o Dr. Wagner comparecia às varas para consultar os autos, protocolar documentos, participar de audiências. Em um desses encontros, pedi-lhe para prefaciar um livro de poemas que pretendia publicar. Ele topou, mesmo a literatura não sendo muito a sua praia. Dias depois, enviei-lhe o arquivo. Todavia, por questões contratuais, não fechei com as editoras: uma me exigiu o livro com menos páginas, ou seja, eu teria que mutilar minha obra; a outra propôs que eu bancasse os custos da publicação... Não topei, o livro está engavetado. Contudo, sem o prefácio do Wagner: inexperiente nesses assuntos e frustrado, lhe enviei e-mail dizendo que não havia previsão do livro ser publicado, e se seria, e que, portanto, não precisaria se preocupar com o prefácio...

A Indesejada das Gentes, nesta semana que antecede o Natal, fez mais uma visita. Todavia, não levará as memórias e os ensinamentos que o mestre nos legou.

Ao Wagner Inácio, esta crônica.

 



 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 
Foto: acervo do autor 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...