Domingo de Páscoa. Esta crônica poderia reclamar dos
preços do bacalhau e do ovo de chocolate, dissertar sobre fé e espiritualidade,
enveredar pela metafísica de Aristóteles ou Tomás de Aquino. Poderia também
comentar frivolidades burocráticas esbanjando, assim, “os erros do meu
português ruim”. Poderia, quiçá, errar por lembranças e sentimentalismos que, acho,
já encheram o saco do leitor.
Todavia, se escrevesse sobre quaisquer desses
assuntos, agiria como o Lula, que determinou aos seus ministros se abstivessem
de falar sobre o fatídico 31 de março de 1964. Segundo O Globo, o
presidente ‘queria evitar que a data fosse usada para “conflagrar o ambiente
político do país”.’ Discordo da decisão: vetar eventos sobre os sessenta anos
do golpe não apagarão as marcas deixadas pela ditadura.
Mas, quem sou eu para dar pitaco nos assuntos
governamentais, não é mesmo? Se o Lula, que conheceu a repressão, não quer remoer
a ditadura, porque “já faz parte da história”, deixemo-lo lá em Brasília com questões
mais prementes.
A História, esta ciência que se alimenta de restos
feito um chacal, analisa e pondera, explora e perscruta documentos. Das divinas
fontes de Clio, bebemos nós, cronistas e historiadores. Então, que minhas
palavras jorrem límpidas e serenas por este texto, tal como o arroio onde as
Musas banham sua alva beleza.
Sessenta anos do golpe. Ou da revolução vitoriosa,
como pretendem alguns. Independente do conceito, uma ferida. Ferida nacional demora
mais a cicatrizar. Basta uma voltinha nas ruas, entrar num bar ou numa repartição,
visualizar posts nas redes sociais para notar: a ferida ainda está
aberta. Bem aberta. E não necessita laudo médico para perceber que a
cicatrização vai demorar.
Dizem, efemérides não podem passar em branco. Para
o bem ou para o mal, o 31 de março precisa ser lembrado. Porque tem muito
cidadão de bem por aí negando a realidade, distorcendo os fatos, enaltecendo
figuras que não merecem um bom adjetivo.
Busquei na estante o Darcy Azambuja. Assoprei a
poeira, transcrevo ipsis litteris: “Quase sempre a ditadura surge por
meio de uma revolução: é um homem, apoiado pelas forças armadas, que depõe o
detentor do Poder Executivo, dissolve o Parlamento e governa, com um partido
que o apoia, promulgando ordens que são leis no sentido material.”
É o que ocorreu a partir de abril de 1964: destituição
de Jango, assunção dos militares ao poder (primeiro, uma junta autointitulada “Comando
Supremo da Revolução”; posteriormente, o marechal Castelo Branco, eleito
indiretamente), decretação do primeiro ato institucional, cassações de
parlamentares, suspensão de direitos políticos e garantias de estabilidade, perseguições
a líderes oposicionistas, entre outras medidas.
Segue Darcy: “a ditadura (...) é o processo
enérgico de vencer uma crise quando o governo normal não o pode fazer.” Os
historiadores relatam sucessivas crises no começo da década de 1960, que se
agravaram com a renúncia de Jânio e as reformas de Goulart, consideradas
perigosas e de inclinações comunistas. Os idos de março de 1964, ainda segundo a
História, foram turbulentos, acarretaram sucessivas perdas para o governo e
culminaram na suspensão do processo democrático no país por duas décadas.
Antônio Carlos Lemos Ferreira, poeta juiz-forano,
verseja: “saiu daqui/um personagem abestado/vestido de azeitona/um boca de
cachimbo/ressentido sem fama/parecido com o Popeye/mandado pelo civil banqueiro
Magalhães Pinto...”
É notório: o golpe de 64 não pode ser atribuído apenas
às Forças Armadas. Empreiteiros, intelectuais, empresários, políticos de
direita, religiosos contribuíram ativamente para a ruptura constitucional. Queriam
afastar o governo que, segundo eles, “se dispunha a bolchevizar o País”. Assim,
a revolução viria “drenar o bolsão comunista”. Porém, isso era bobagem, mero
pretexto para incutir medo na patuleia e justificar, dessa forma, os atos
antidemocráticos. Por isso, estudos mais recentes denominam de ditadura
civil-militar o período compreendido entre 1964 e 1985.
Voltemos ao poema: infelizmente, Minas carrega
sobre os ombros a mácula de ter capitaneado o movimento golpista. De Juiz de
Fora, partiram as forças destrutivas da ordem e da democracia, comandadas pelo
general Olímpio Mourão Filho. Embora apregoassem que marchavam em defesa da
ordem e da democracia! Paradoxos que a História tenta examinar e explicar às
novas gerações, apesar dos sucessivos ataques e desqualificações promovidas por
pseudointelectuais e reaças de plantão.
À medida que o tempo passava, os tentáculos
ditatoriais fortaleciam e se alastravam por vários cantos do país. Em Juiz de
Fora, para ficarmos com um exemplo, deixou marcas fatais nas celas da
Penitenciária de Linhares, como revelado por Daniela Arbex no livro “Cova 312”.
Em “A
Ditadura Envergonhada”, Elio Gaspari analisa: “A repressão política, porém,
emanava do coração do regime e tinha uma nova qualidade. Não se tratava mais de
espancar o notório dirigente comunista capturado no fragor do golpe. A tortura
passava a ser praticada como forma de interrogatório em diversas guarnições.
Instalado como meio eficaz para combater a “corrupção e a subversão”, o governo
atribuía-se a megalomaníaca tarefa de acabar com ambas.”
Para tanto, instauravam-se os temíveis IPMs (inquéritos
policiais militares). E muita gente penou com eles. A tortura, que já existia
antes, com a ditadura civil-militar se embrenhou de tal forma no cotidiano das
prisões, que a historiografia a considera uma ferramenta institucionalizada
pelo Estado.
Por outro lado, a maior parte da população sequer
tomava conhecimento de tudo isso. O povo vivia alienado, diziam os militantes
de esquerda. Na verdade, a censura, outra ferramenta institucional, amordaçava
qualquer possível tentativa de denúncia feita por uns poucos veículos de
imprensa que resistiam à revolução.
Antônio Maria, no dia seguinte ao golpe, dá conta
da dimensão dos fatos: “Eles estão brigando, mas sabem por quê. E nós, que não
temos causa? Faremos parte de uma pequena classe média, ao sabor dos mais
humilhantes receios. O ordenado irá atrasar? Será que eles vão nos botar na
rua? São essas as perguntas que nós faremos, diariamente. É por isso que
estamos assim: porque não temos nada a ganhar, depois dessa briga (...) Temos a
máquina de escrever, onde somos levados a escrever, quase sempre o “mais
conveniente” e, mesmo assim, com o risco de perdê-la.” Para o cronista, tudo
era previsível, inclusive “o que iria acontecer hoje, 31 de março, e amanhã, e
depois e depois de depois”. Assim, restaria ao povo se perguntar: “E se o
ordenado atrasar? E se não houver mais ordenado?.”
Escrever, (re)ler, analisar documentos, ouvir
versões, buscar esclarecimentos é tarefa constante daqueles que buscam compreender
as engrenagens político-sociais de seu país. Compete, pois, aos governantes, à
sociedade e, sobretudo, às Forças Armadas não obstaculizar as pesquisas. Porque
uma sociedade bem informada, esclarecida, será capaz de formar cidadãos
melhores. É preciso transparência para
que todos possamos conhecer a verdade ou, pelo menos, vislumbrarmos o que
ocorreu no passado.
Talvez, se tivéssemos sido mais transparentes e menos complacentes com anistias, não teríamos visto as cenas absurdas e patéticas que tomaram o noticiário nos últimos anos. E que culminaram no dantesco espetáculo do 08 de janeiro de 2023.