domingo, 31 de março de 2024

O ontem ainda lateja

Domingo de Páscoa. Esta crônica poderia reclamar dos preços do bacalhau e do ovo de chocolate, dissertar sobre fé e espiritualidade, enveredar pela metafísica de Aristóteles ou de Tomás de Aquino. Poderia, ainda, perder-se em frivolidades burocráticas — esbanjando, assim, “os erros do meu português ruim”. Poderia, quiçá, resvalar em lembranças e sentimentalismos que, imagino, já encheram o saco do leitor.

Todavia, se escrevesse sobre quaisquer desses assuntos, agiria como Lula, ao determinar que seus ministros se abstivessem de falar sobre o fatídico 31 de março de 1964. Segundo O Globo, o presidente ‘queria evitar que a data fosse usada para “conflagrar o ambiente político do país”.’ Discordo da decisão: vetar eventos sobre os sessenta anos do golpe não apaga as marcas deixadas pela ditadura.

Mas, quem sou eu para dar pitacos nos assuntos governamentais, não é mesmo? Se Lula — que conheceu a repressão — não quer remoer a ditadura, porque “já faz parte da história”, deixemo-lo em Brasília com questões mais prementes.

A História, essa ciência que se alimenta de restos feito um chacal, analisa e pondera, explora e perscruta documentos. Das fontes de Clio, bebemos nós, cronistas e historiadores. Então, que minhas palavras jorrem serenas por este texto, como o arroio onde as Musas banham sua alva beleza.  

Sessenta anos do golpe. Ou da “revolução vitoriosa”, como pretendem alguns. Independente do conceito, trata-se de uma ferida. E ferida nacional demora mais a cicatrizar. Basta uma voltinha pelas ruas, entrar num bar ou numa repartição, visualizar posts nas redes sociais: a ferida ainda está aberta. Bem aberta. E não necessita laudo médico para perceber que a cicatrização vai demorar.

Dizem que efemérides não podem passar em branco. Para o bem ou para o mal, o 31 de março precisa ser lembrado. Até porque há muito cidadão de bem por aí negando a realidade, distorcendo fatos, enaltecendo figuras que não merecem um bom adjetivo.

Busquei na estante o Darcy Azambuja. Assoprei a poeira e transcrevo ipsis litteris:

“Quase sempre a ditadura surge por meio de uma revolução: é um homem, apoiado pelas forças armadas, que depõe o detentor do Poder Executivo, dissolve o Parlamento e governa, com um partido que o apoia, promulgando ordens que são leis no sentido material.”

Foi o que ocorreu em abril de 1964: destituição de Jango, assunção dos militares ao poder (primeiro, uma junta autointitulada “Comando Supremo da Revolução”; posteriormente, Castelo Branco, eleito indiretamente), decretação do primeiro Ato Institucional, cassações de parlamentares, suspensão de direitos políticos e garantias de estabilidade, perseguições a líderes oposicionistas, entre outras medidas.  

Segue Darcy: “a ditadura (...) é o processo enérgico de vencer uma crise quando o governo normal não o pode fazer.” Os historiadores relatam sucessivas crises no começo da década de 1960, que se agravaram com a renúncia de Jânio e pelas reformas de Goulart, consideradas perigosas e de inclinações comunistas. Março de 1964, ainda segundo a História, foi turbulento, acarretou sucessivas perdas ao governo e culminou na suspensão democrática por duas décadas.

Antônio Carlos Lemos Ferreira, poeta juiz-forano, verseja:

“saiu daqui/um personagem abestado/vestido de azeitona/um boca de cachimbo/ressentido sem fama/parecido com o Popeye/mandado pelo civil banqueiro Magalhães Pinto...”

É notório: o golpe de 64 não pode ser atribuído apenas às Forças Armadas. Empreiteiros, intelectuais, empresários, políticos de direita, religiosos contribuíram ativamente para a ruptura constitucional. Queriam afastar um governo que, segundo eles, “se dispunha a bolchevizar o País”. Assim, a revolução viria “drenar o bolsão comunista”. Balela. Mero pretexto para incutir medo na patuleia e justificar os atos antidemocráticos. Por isso, estudos mais recentes falam em “ditadura civil-militar”.

Voltemos ao poema: infelizmente, Minas carrega nos ombros a mácula de ter capitaneado o movimento golpista. De Juiz de Fora partiram as forças destrutivas da ordem e da democracia, comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho. E marchavam, ironicamente, “em defesa da ordem e da democracia”! Paradoxos que a História tenta explicar às novas gerações, apesar dos sucessivos ataques e desqualificações promovidas por pseudointelectuais e reaças de plantão.

Com o tempo, os tentáculos ditatoriais fortaleceram e se alastram pelo país. Em Juiz de Fora, para ficarmos com um exemplo, deixaram marcas fatais nas celas da Penitenciária de Linhares, como revelou Daniela Arbex em Cova 312.

 Em A Ditadura Envergonhada, Elio Gaspari analisa:

 “A repressão política, porém, emanava do coração do regime e tinha uma nova qualidade. Não se tratava mais de espancar o notório dirigente comunista capturado no fragor do golpe. A tortura passava a ser praticada como forma de interrogatório em diversas guarnições. Instalado como meio eficaz para combater a “corrupção e a subversão”, o governo atribuía-se a megalomaníaca tarefa de acabar com ambas.” 

Para tanto, instauravam-se os temíveis IPMs (inquéritos policiais militares). E muita gente penou com eles. A tortura, que já existia antes, com a ditadura civil-militar se embrenhou de tal forma no cotidiano das prisões, que a historiografia a considera uma ferramenta institucionalizada pelo Estado.

Por outro lado, a maior parte da população sequer tomava conhecimento de tudo isso. O povo vivia “alienado”, diziam os militantes de esquerda. Na verdade, a censura, outra ferramenta institucional, amordaçava qualquer possível tentativa de denúncia feita por uns poucos veículos de imprensa que resistiam à revolução.

Antônio Maria, no dia seguinte ao golpe, dá conta da dimensão dos fatos:

“Eles estão brigando, mas sabem por quê. E nós, que não temos causa? Faremos parte de uma pequena classe média, ao sabor dos mais humilhantes receios. O ordenado irá atrasar? Será que eles vão nos botar na rua? São essas as perguntas que nós faremos, diariamente. É por isso que estamos assim: porque não temos nada a ganhar, depois dessa briga (...) Temos a máquina de escrever, onde somos levados a escrever, quase sempre o “mais conveniente” e, mesmo assim, com o risco de perdê-la.” Para o cronista, tudo era previsível, inclusive “o que iria acontecer hoje, 31 de março, e amanhã, e depois e depois de depois”. Assim, restaria ao povo se perguntar: “E se o ordenado atrasar? E se não houver mais ordenado?.” 

Escrever, (re)ler, analisar documentos, ouvir versões, buscar esclarecimentos é a tarefa daqueles que buscam compreender as engrenagens político-sociais do país. Compete a governantes, sociedade e, sobretudo, às Forças Armadas não obstaculizar as pesquisas. Uma sociedade bem informada é capaz de formar cidadãos melhores.  É preciso transparência para que todos possamos conhecer a verdade ou, ao menos, vislumbrar o passado.

Talvez, se tivéssemos sido mais transparentes e menos complacentes com anistias, não teríamos assistido às cenas absurdas e patéticas que tomaram o noticiário nos últimos anos — culminando no dantesco espetáculo de 8 de janeiro de 2023. 


Texto: Raphael Cerqueira Silva 
Foto: acervo do autor 

3 comentários:

  1. Antônio Carlos Lemos Ferreira31 de março de 2024 às 17:41

    Uauuu...
    Que belo texto. Conciso, bem escrito, direto ao ponto e com um lado muito bem definido. Obrigado pela citação. Parabéns!

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  2. Antônio Carlos Lemos Ferreira31 de março de 2024 às 17:44

    Uauuuu...
    Que texto bem redigido.
    Conciso, direto ao ponto, comprometido, com um lado bem definido e equilibrado.
    Obrigado peça citação.
    Parabéns!

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    Respostas
    1. Eu que agradeço pela leitura e pelas palavras 😊 Gostei muito de seu poema desde que assisti o reels no Instagram 👏👏

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