segunda-feira, 25 de abril de 2022

HAPPY HOUR ANTECIPADO



Sem subornar teu coração/com feitio de paixão/farei tudo pra ganhar tua confiança...

_ E aí, tá onde? 

Eu voltava do escritório ouvindo minha playlist. O fim de semana ainda estava distante, contudo, o bafo da nostalgia já se fazia sentir no meu cangote. 

_ Na fila da lotérica. 

_Vamo antecipar o happy hour? 

_ Hoje?!

_ Pra agora. Camila e eu vamos sair daqui direto pro Lamparina. O Marcondes vai passar primeiro em casa, dentro duns trinta minutos brota lá. A Deise já foi. 

Normalmente nos reunimos às sextas. Mas, o mais estranho: ninguém – nem a boquirrota da Deise – comentou nada durante o dia. Quando saí, o Marcondes se queixava dos estagiários com a chefe; o Higor no telefone reclamava do inventário que não andava; o Orestes e o novo estagiário voltavam do arquivo; Deise, sentada na mesa da Camila, debochava da voz de não sei quem. 

_ Te pego aí.  

_ Não precisa, não. Daqui lá é um pulo. 

Camila, em tom alterado, disse “ainda bem que...” Higor desligou. Paguei o boleto, recusei de novo o maldito jogo que a atendente tentava me empurrar, saí.  

(...)

O tempo virava para chuva.  

Sorria!/Meu bloco vem, vem/descendo a cidade/vai haver carnaval de verdade... 

Na porta do clube, um garoto de short e cabelos úmidos riu. 

_ Desafino, sim, e daí? 

Me mostrou o dedo. Eu o chamei de viadinho. Atravessei a rua.  

(...)

Deise escolhera uma mesa na calçada. É uma estúpida, mesmo: se chover, teremos que sair correndo como na semana passada... Guardei os fones no bolso da camisa, sorri. Vou aproveitar que os outros não chegaram pra saber, tintim por tintim, o porquê de anteciparem o happy hour. Braço no encosto da cadeira, perna cruzada feito um menino desengonçado, Deise fumava cigarro eletrônico. 

_ Aroma de cereja. 

Soltou uma baforada. Mas a fumaçada da churrasqueira e o futum do bueiro não me permitiram sequer imaginar como seria o tal aroma. Falou do tempo, que o primo perdeu tudo em Petrópolis... já, já entra no que interessa, pensei.   

_ O pessoal não tá satisfeito com a chefona. 

Bingo. Se eu tivesse sorte assim no jogo, teria comprado aquele bilhete. 

_ A panelinha reuniu ontem no Bar da Praça. Com direito a fotinhas nos stories... Precisa ver que ridícula aquela estagiária do ladinho da chefona, arreganhando a carantonha com uma mandioca na boca... E o Orestes? No karaokê, se insinuando pro estagiário bombadinho...     

Deise sempre bem informada. Por isso, dou corda.   

_ Ih, deixei de seguir essa gente faz tempo. 

Ela soltou a gaitada costumeira. Higor e Camila chegaram. Deise, à meia voz: 

_ Repara, discutindo de novo. Um ano morando juntos e eles brigam como velhos rabugentos que se suportam há quarenta anos. 

Camila me cumprimentou formalmente, sentou-se ao lado de Deise. Higor parou com dois sujeitos que riam e falavam alto. 

_ Fez outra grosseria no carro. Tô sufocada...

Não estendeu o assunto: Higor se aproximou, deu tapinhas nas minhas costas, puxou a cadeira pro meu lado: 

_ Aquele careca com a camisa do Vasco é o tal agiota que te falei noutro dia. Bancou a candidatura da prefeita e do atual presidente da câmara. O outro é irmão dele, foi nomeado secretário de cultura e turismo. 

Deise soltou outra baforada: 

_ E desde quando tem turismo nesse cu de mundo? 

_ Nem cultura.  

Camila alfinetou, tirando o celular da bolsa. 

O Lamparina trouxe uma porção farta de torresmo, mandioquinha e linguiça. O vascaíno fez um brinde pra nós; Higor acenou. Como não me envolvo na vida política da cidade, fiquei quieto. 

(...)

Marcondes tinha dificuldades para fazer a baliza. Deise aproveitou a deixa: 

_ Carteira comprada dá nisso. 

Camila pediu chope, Higor a acompanhou. Querendo fazer média, ela sussurrou para Deise. Marcondes, enfim, chegou à mesa.   

(...)

Em casa, fiz o balanço da noite: Deise falou de Deus e o povo; Marcondes reclamou dos estagiários e da chefe; Higor contou em detalhes os esquemas do agiota; Camila não desgrudou os olhos do celular, atenta às mensagens de duplo sentido que eu lhe enviava. Eu ouvia tudo o que os colegas diziam e assentia sorrindo. Afinal, como disse Cartola: a sorrir/eu pretendo levar a vida...  



Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor

domingo, 17 de abril de 2022

PROCURA-SE: MÁQUINA DO TEMPO

Na crônica de hoje, eu poderia discorrer sobre a Páscoa e seu significado, citar passagens bíblicas, comentar sobre o sermão desta manhã... poderia, contudo, não o farei. Afinal, o leitor conhece tudo isso de cor e salteado e, se ainda não conhece, certamente é porque não se interessa por tais assuntos. Por outro lado, poderia me queixar das barras de chocolate (cada vez menores e mais caras), lamentar que os bombons estão mais açucarados e com menos chocolate; poderia também me lamuriar acerca dos preços da cenoura, do bacalhau, dos ovos de chocolate, do tomate, do azeite que anda caro e com gosto de óleo... mas isso a leitora também sabe pois, assim como eu, vai ao mercado diariamente.  Enfim, motivos não faltam para dar um ar queixoso à minha crônica. Todavia, a Páscoa não merece ser maculada com as reclamações de um cronista/consumidor.

Escrever é preciso, principalmente quando nos propomos o desafio de escrever semanalmente uma crônica. Às vezes, não é fácil encontrar um assunto; mas, tal como os paleontólogos e os arqueólogos que não desistem e cavam mais fundo, vou escarafunchando assuntos.... ainda que sejam os preços dos pescados ou dos chocolates. Quem para de procurar não se renova, disse Ivan Ângelo. Uma vez que hoje é domingo e preciso cumprir minha missão... mãos à obra.

Páscoa. As manhãs de Páscoa trazem sempre a lembrança dos meus sete anos. Oh idade linda, de ingenuidades e fantasias, época em que os sonhos povoam nosso cotidiano e ainda somos capazes de enxergar nas nuvens castelos e unicórnios e balões e dinossauros... Na escola, escolheram algumas crianças para participar do teatrinho sobre a Páscoa; da classe da tia Rosa, se não me decepciona a memória, fui o único escolhido. O figurino, simples: a meninada em traje de banho, um pompom branco colado no traseiro, dentões de plástico, orelhas de coelho feitas à cartolina. Rosto e nariz pintados, as tias nos fizeram sentar no comprido banco de madeira atrás da cantina; impacientes, esperávamos para entrar em cena.

Quando a diretora, finalmente, deu a deixa, caminhamos enfileirados sob o sol e, saltitantes como coelhinhos felizes, nos apresentamos no palco improvisado. Não recordo se decoramos alguma fala, acho que não: éramos muito pequenos, alunos ainda em alfabetização... Na plateia, crianças, pais, professoras, cantineiras, o pessoal da secretaria.

Depois da apresentação, cestinha de vime à mão, voltamos às nossas respectivas salas; como bons coelhinhos, fomos distribuir nossos ovos de chocolate. Os coleguinhas, ansiosos, esperavam nas carteiras; um ou outo bestalhão fez piadinhas igualmente bestas... no fundo, no fundo, morrendo de inveja por não participar da brincadeira.

Naquela tarde festiva e ensolarada, tias e merendeiras também ganharam seu quinhão: um ovinho embrulhado em papel celofane colorido. E, assim, a tarde passou, no ritmo da brisa que relava a bandeira no mastro, no ritmo do trem que executava a última manobra do dia, no ritmo das rodas da carroça que rangia na rua levando leite, queijo ou doce.

A criança que ainda se esconde em algum cômodo do meu ser corre e grita e reina neste domingo de Páscoa; suas peraltices atiçam minha memória, dão trabalho à caneta: a sunga marrom-claro que a mãe encomendou à costureira especialmente para o teatrinho, o gramado retomando as cores no outono, minha sandália, os trabalhinhos colados no mural, os coleguinhas recortando orelhas de coelho nas cartolinas e pintando cartõezinhos de “feliz Páscoa”, as folhas mimeografadas ainda cheirando a álcool, o coqueiro na porta da farmacinha indiferente ao vaivém escolar...

O vento sussurra na fresta da janela: recordar é viver... sei lá; só sei que às vezes dá vontade de regressar à Prof. Ormindo. Mas, enquanto não inventam a máquina do tempo, fico com minhas doces e chocolatíferas lembranças de Páscoa. E encerro esta crônica, que começou resmungona e rapidamente enveredou para o saudosismo, com o ensinamento de Paulo Coelho: se escutamos a criança que temos na alma, nossos olhos voltarão a brilhar.

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

sexta-feira, 8 de abril de 2022

RESIGNADO

 _____Tenho cabelos brancos. Muitos cabelos brancos. Faz tempo que os tenho. E a cada dia surgem mais, por todos os lados. Não gosto deles; contudo, não vou pintá-los: acho ridículo cabelo pintado. Quando os homens pintam de preto, parece que carregam um corvo; ficam como Johnny Depp em O Cavaleiro Solitário... Ou seria gralha aquele bicho emplumado que vivia na cabeça dele? Não importa: corvo, gralha ou anu é ridículo do mesmo jeito.

_____Por outro lado, se tingir meus cabelos de acaju, como faz certo doutor que passa todo dia na minha porta, dirão: ó, um urutau está ninhando na cabeça do cronista... porque eu penso isso sempre que vejo o doutor (não digo, porque temo ser processado, mas penso). Nem a sua pasta velha, seu terno amarrotado e sua cara de boi cansado me chamam tanto a atenção quanto seus cabelos. Enfim, preto ou acaju, o cabelo fica igualmente ridículo.

_____Resigno-me, então, aos cabelos brancos. Deve ser melhor tê-los que levar a cabeça pelada como os habitantes de Tatipirun. Afinal, o que tem de careca sonhando com cabelos, ainda que brancos... as perucas e os implantes que o digam. Pensando bem, eu não deveria escrever sobre questões capilares: vai que algum deus zombeteiro lê e arranque-me todos os cabelos, brancos e não-brancos... “Certa manhã, depois de despertar de sonhos conturbados (...) encontrou-se em sua cama metamorfoseado” num tristíssimo velhinho, sem um fio sequer de cabelo. Parece que ouço as gargalhadas divinas, insensíveis ao meu dilema quase kafkiano.

_____Suporto, então, meus cabelos brancos. Homessa, o que se há de fazer, indago ao espelho. Sem resposta, observo a brancura capilar. Como o servo ante o senhor, a caça ao caçador, o desejo ao amor curvo-me, sem jeito e resignado.

_____Tenho cabelos brancos. Cabelos brancos que me açoitam toda manhã: o tempo passou, meu caro, agora és o tio da Sukita, em pouco serás como o Painho da novela Renascer, daí para virar o Mestre dos Magos será um pulo, um reles piscar de olhos. Meus cabelos brancos lutam e vencem e esfregam na minha cara o que o corpo diz há certo tempo: já não tens mais vinte e poucos anos. “O que que há, velhinho?” Agora entendo como o Pernalonga era maldoso...

_____Outro dia, em um fim de tarde burocrático, uma senhora que atravessa os trinta me disse: cabelo grisalho em homem é charme. Olhei a rua, os adolescentes saindo da escola, pensei: as pessoas e seus eufemismos, talvez trocando branco por grisalho achem que suavizam nosso outono. Sorvi as últimas gotas do chá, vesti a máscara, resmunguei – de uns tempos para cá dei pra resmungar como o Detetive Rabugento. A burocrata continuou o assunto, falando nos artistas grisalhos... tive ganas de dizer-lhe algo indecoroso, uma palavrinha atrevida quase saltou de minha garganta feito um refluxo, mas me contive, em respeito à sua idade, e aos seus cabelos pintados.

_____Na cabeça do Édson Celulari, do George Clooney, do Hugh Grant, do Fábio Assunção, do Richard Gere ou do Brad Pitt cabelos brancos podem ter lá seu charme. Mas como estou anos luz de ser galã, passo os dias olhando a branquitude que se espraia em minha cabeça. Sem opção e resignado, “toco a vida pra frente/fingindo não sofrer”.



Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor 


sexta-feira, 1 de abril de 2022

As viagens de Umberto

 

          Mais uma vez Umberto colocou os livros na mala, decorou meia dúzia de poemas e frases que, supôs, causariam efeito na plateia, copiou versos de Adélia Prado. Vai ser bom ler algo de uma conterrânea, afinal, a gente tem que puxar a sardinha pro nosso estado. Achou que o trocadilho agradaria ao público, anotou-o. Na manhã seguinte, conferiu a quantidade de exemplares na mala – 48 –, a escova e a pasta de dentes, as roupas emboladas entre eles. Empurrou o pão murcho com Doriana, colocou um livro na jaqueta, saiu.

         Canarinhos e pardais brincavam na rua. Desde menino, Umberto admirava a elegância das aves, sobretudo, a liberdade das aves. Arrastando a mala pela calçada, desejou estar em um desenho de Walt Disney: provavelmente os passarinhos o ajudariam a levar a mala... Versos e esperança pesam pra caramba, pensou.

         O ônibus atrasou, como sempre. Não bastasse isso, ficou quarenta e cinco minutos parado na cidade vizinha: para fazer conexão, explicara o trocador. Essa empresa copia o que há de pior nas companhias aéreas, ouviu de uma passageira. Como nunca voara, Umberto sorriu, sem saber o que dizer. Embarcaram novamente. Poltrona dura, ônibus mais fodido que o outro, resmungou.

A estrada tá tão esburacada quanto as calçadas da cidade, alguém comentou. Umberto tentou focar na leitura, apesar dos solavancos. Lá pelas tantas, largou o livro; arrependeu não ter trazido o Jorge Amado: ele, sim, é excelente companheiro de viagem. Recostou a cabeça: disgreta de livro, quase nenhum enredo, esse portuga escreveu um monte de descrições cansativas e desnecessárias... único ponto positivo: chama o sono.

         Acordou horas depois, com o barulho da cidade. Essa chuva vai esticar pelo resto do dia, afastar o público do evento, previu. Não deu outra: pouquíssimas pessoas compareceram. Umberto declamou seus versos e as frases sem, contudo, causar o efeito esperado; ao ler os poemas de Adélia (na última hora o bom senso imperou, não fez o trocadilho), aplaudiram-no.

Uma escritora lhe pediu que lesse a crônica mais recente dela: sua voz me lembra o Lombardi, vou filmar pra postar no meu canal. Umberto riu, recordando a infância: nos domingos frios e chuvosos passava o dia inteiro assistindo o Sílvio Santos com a mãe...

Após o sarau, um homem corpulento, de chapéu e botas de couro, rosto curtido de sol e fartos bigodes se aproximou, pegou o livro, perguntou se podia pagar com PIX.

         _ Me chamo Arizona. Arizona Stone.

Umberto, lembrando os filmes de bang bang que via com o pai nas tardes de sábado, pensou em escrever: para o gatilho mais rápido do oeste, estes versos, árduos como o sol e o solo texanos, com um empoeirado abraço do xerife... Arizona, mãos na cintura, esperava a dedicatória com jeito nada amistoso. Umberto garatujou: um abraço do autor, e datou. O homem recebeu o livro, sacou o celular para mostrar o comprovante de transferência, atravessou o salão. Sorrindo, Umberto recordou o que pretendera escrever: até hoje não saí da quinta série, falou para os livros espalhados na mesa.

A romancista que lançava seu quinquagésimo quarto livro o encarou. Maldoso como só um moleque da quinta série sabe ser, Umberto comentou:

_ Pelo visto, não sou o único que vende pouco...

Furiosa, a mulher foi conversar com os organizadores. Ele riu. A tarde se arrastava, a enxurrada levava folhas e sacolas. À janela, Umberto contabilizava: sonhos e livros nos estandes; nos bolsos, caraminguás. Como no ano passado, suspirou, embaçando o vidro.

No final do dia, muitos escritores trocaram livros e afagos.

_ Parecem meninos trocando figurinhas; falta bater bafinho.

 Os contistas olharam-no com espanto, os poetas com desdém, os romancistas sorriram condescendentes. Os cronistas convidaram-no para um chopinho. Umberto recusou: encerraria o dia no hotel, rascunhando bobagens e assistindo à novela.

A chuva varou a noite, deixando-o melancólico. Ele sabia que a acusação fora injusta: ainda que fizesse sol, o público não compareceria; “isso aqui é um pouquinho de Brasil”, concluiu, encarando o livro. Portuga duma figa, você não volta comigo pra casa, não. Abriu a gaveta, jogou-o sobre a bíblia. O próximo hóspede talvez goste dessa porcaria. Deitou, para cair nos braços de Morfeu, como o pai lhe dizia todas as noites.   

          

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...