Sem subornar teu coração/com feitio de paixão/farei tudo pra ganhar tua confiança...
_ E aí, tá onde?
Eu voltava do escritório ouvindo minha playlist. O fim de semana ainda estava distante, contudo, o bafo da nostalgia já se fazia sentir no meu cangote.
_ Na fila da lotérica.
_Vamo antecipar o happy hour?
_ Hoje?!
_ Pra agora. Camila e eu vamos sair daqui direto pro Lamparina. O Marcondes vai passar primeiro em casa, dentro duns trinta minutos brota lá. A Deise já foi.
Normalmente nos reunimos às sextas. Mas, o mais estranho: ninguém – nem a boquirrota da Deise – comentou nada durante o dia. Quando saí, o Marcondes se queixava dos estagiários com a chefe; o Higor no telefone reclamava do inventário que não andava; o Orestes e o novo estagiário voltavam do arquivo; Deise, sentada na mesa da Camila, debochava da voz de não sei quem.
_ Te pego aí.
_ Não precisa, não. Daqui lá é um pulo.
Camila, em tom alterado, disse “ainda bem que...” Higor desligou. Paguei o boleto, recusei de novo o maldito jogo que a atendente tentava me empurrar, saí.
(...)
O tempo virava para chuva.
Sorria!/Meu bloco vem, vem/descendo a cidade/vai haver carnaval de verdade...
Na porta do clube, um garoto de short e cabelos úmidos riu.
_ Desafino, sim, e daí?
Me mostrou o dedo. Eu o chamei de viadinho. Atravessei a rua.
(...)
Deise escolhera uma mesa na calçada. É uma estúpida, mesmo: se chover, teremos que sair correndo como na semana passada... Guardei os fones no bolso da camisa, sorri. Vou aproveitar que os outros não chegaram pra saber, tintim por tintim, o porquê de anteciparem o happy hour. Braço no encosto da cadeira, perna cruzada feito um menino desengonçado, Deise fumava cigarro eletrônico.
_ Aroma de cereja.
Soltou uma baforada. Mas a fumaçada da churrasqueira e o futum do bueiro não me permitiram sequer imaginar como seria o tal aroma. Falou do tempo, que o primo perdeu tudo em Petrópolis... já, já entra no que interessa, pensei.
_ O pessoal não tá satisfeito com a chefona.
Bingo. Se eu tivesse sorte assim no jogo, teria comprado aquele bilhete.
_ A panelinha reuniu ontem no Bar da Praça. Com direito a fotinhas nos stories... Precisa ver que ridícula aquela estagiária do ladinho da chefona, arreganhando a carantonha com uma mandioca na boca... E o Orestes? No karaokê, se insinuando pro estagiário bombadinho...
Deise sempre bem informada. Por isso, dou corda.
_ Ih, deixei de seguir essa gente faz tempo.
Ela soltou a gaitada costumeira. Higor e Camila chegaram. Deise, à meia voz:
_ Repara, discutindo de novo. Um ano morando juntos e eles brigam como velhos rabugentos que se suportam há quarenta anos.
Camila me cumprimentou formalmente, sentou-se ao lado de Deise. Higor parou com dois sujeitos que riam e falavam alto.
_ Fez outra grosseria no carro. Tô sufocada...
Não estendeu o assunto: Higor se aproximou, deu tapinhas nas minhas costas, puxou a cadeira pro meu lado:
_ Aquele careca com a camisa do Vasco é o tal agiota que te falei noutro dia. Bancou a candidatura da prefeita e do atual presidente da câmara. O outro é irmão dele, foi nomeado secretário de cultura e turismo.
Deise soltou outra baforada:
_ E desde quando tem turismo nesse cu de mundo?
_ Nem cultura.
Camila alfinetou, tirando o celular da bolsa.
O Lamparina trouxe uma porção farta de torresmo, mandioquinha e linguiça. O vascaíno fez um brinde pra nós; Higor acenou. Como não me envolvo na vida política da cidade, fiquei quieto.
(...)
Marcondes tinha dificuldades para fazer a baliza. Deise aproveitou a deixa:
_ Carteira comprada dá nisso.
Camila pediu chope, Higor a acompanhou. Querendo fazer média, ela sussurrou para Deise. Marcondes, enfim, chegou à mesa.
(...)
Em casa, fiz o balanço da noite: Deise falou de Deus e o povo; Marcondes reclamou dos estagiários e da chefe; Higor contou em detalhes os esquemas do agiota; Camila não desgrudou os olhos do celular, atenta às mensagens de duplo sentido que eu lhe enviava. Eu ouvia tudo o que os colegas diziam e assentia sorrindo. Afinal, como disse Cartola: a sorrir/eu pretendo levar a vida...
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor
Excelente!
ResponderExcluirObrigado
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