domingo, 28 de março de 2021

O PAPA ESTÁ SÓ

Só, o papa reza.

Na praça, chuva e silêncio.

Criaturas inquietas repensam

tantos projetos, outros sonhos

sob a cama.

Ouçamos o vento outonal:

traz súplicas e esperança.

 

Em 27 de março de 2020, o Papa Francisco rezou sozinho na Praça São Pedro em razão da pandemia da COVID-19. Segundo os sites e jornais, foi um ato inédito na história da Igreja.

Quando a pandemia oficialmente começou por aqui, dias antes do ato papal, me propus a escrever um poema por dia enquanto ela durasse... Tolo, pensei que a peste seria abatida em poucos meses... na minha ingenuidade, duraria uns cem dias. Todo dia, então, eu escrevia um poema. “O Papa está só” foi o oitavo.  

Porém, à medida que o tempo passava, minguava a inspiração. Contabilizei pouco mais de noventa poemas no contexto de isolamento. Para não me tornar repetitivo e enfadonho, me refugiei na prosa. A crônica foi a forma que encontrei para falar sobre a peste, a pandemia, o home-office, o isolamento, as (des)informações, as indecisões das autoridades... Às vezes surgia um verso aqui, outro ali, mas foram lumes que se apagaram rapidamente.

Toda noite, ao deitar, eu tinha (e ainda tenho) a impressão que haviam soltado no mundo o grande Leviatã. E, inexplicavelmente, o monstro se fortalecia a cada dia, arrasando vidas e sonhos, angustiando e deprimindo... assim, atravessamos o ano navegando em águas turvas, desolados como as almas na barca de Caronte.

Escrevo este texto em 28 de março de 2021, Domingo de Ramos. Ainda não há o mínimo indício de luz no fim desse túnel. Faltam-me versos. Por outro lado, abundam tristezas e angústias mundo afora. Segundo o Dr. Dráuzio Varela (Folha de SP de hoje), à deriva, “só podemos contar com nós mesmos”. Resta-nos, assim, rezar. Como o Papa, no frio da solidão.





Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

Domingo de Ramos

 

   A caminhada, curta, tradicionalmente começava cedo. Pessoas apressadas passavam por minha porta: vinham do morro, das ruas sem calçamento. Nas fervorosas mãos, ramos de coqueiros e palmeiras,  terços e velas. Alguns levavam o "Deus Conosco".
   Concentrado na pracinha, o grupo disputava as poucas sombras enquanto meninos levados corriam no gramado e se penduravam no busto do Dr.Oswaldo. Por volta das oito da manhã, lentamente, os fiéis iniciaram a caminhada.
 Paralelas aos vagões da ferrovia, domingueiramente vazios e ociosos, vozes uníssonas ecoavam cânticos de fé entremeados com pais-nossos e ave-marias.
     A marcha seguia rumo para a matriz, àquela hora já adornada de ramos. Na escadaria, o pároco e  seus acólitos aguardavam a procissão.
   A caminhada seguia, preenchendo de fé e devoção a rua. Conhecida e afinada voz puxava o coro: hosanas e vivas ao Senhor. Impassível, o lume das velas resistia à brisa matutina que, em vão, tentava amenizar o calor.
     As crianças queriam andar mais rápido: já se viam sentadas no frescor da igreja, abrigadas do sol forte, entretendo-se com as palmas bentas afixadas nos bancos e no altar.
  Quase não se via a serra, ainda ontem verdejante: nuvens baixas a encobriram, anunciando chuva. "Também pudera, com o calor fora do normal desta santa manhã", a mulher de coque comentou em voz baixa para a comadre que, a sua frente, apenas meneou a cabeça para não se perder no salve-rainha.
 Súbito, o vento passou pela procissão, apagando velas, derrubando ramos, assustando os pequenos. Inabalável, a fé manteve as orações.
 O séquito passou em frente à sede do sindicato da RFFSA, ao bar do Hebinho (onde eu sempre me deliciava com o pastel de queijo e a Coca geladinha), dobrou à esquerda passando diante do antigo cinema, subiu a escadaria da igreja saudado pelos sinos e os primeiros pingos da chuva.
     Em instantes, a missa de Ramos começou.




Texro: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor (São Geraldo, MG) 





domingo, 21 de março de 2021

De volta ao passado


        Ainda outro dia vimos manifestações verde-amarelas nas ruas, praças e janelas. Saudosistas pseudopatriotas pediam, contrariando as diretrizes da Razão e da História, o regresso da nação ao decantado paraíso perdido das décadas de 1960/1970... esse oásis tão, tão remoto que no mercado não se encontram mapas, bússolas, radares e GPS que nos conduza até lá. Felizmente. Graças ao Deus Tempo ficou para trás. Que pena! suspiram aqueles manifestantes (em geral, cidadãos de bem; gente de escol como se dizia no tempo deles).

        Mais recentemente, começaram a zanzar por aí pessoas esclarecidas, seguidoras de um ex-astrólogo (hoje filósofo), bradando contra a vacinação. Inevitável, pois, recordar os versos de Nando Reis: o que está acontecendo?/o mundo está ao contrário e ninguém reparou. Tudo ficou de ponta-cabeça, os absurdos tornaram-se aceitáveis. E não há como dialogar com essa gente de bem, afinal, como naquela canção do Roberto, todos estão surdos. Ensurdecidos e ensandecidos, prostram-se ante o Twitter e o Facebook, esses irresistíveis titãs da nossa era.

        Vão-se os anos... voltamos no tempo. Parece que regressamos a 1904, época de pestes, desordens e incompetências administrativas regadas a café-com-leite. De repente, fomos expelidos por uma invenção mequetrefe do Professor Pardal no centro do Rio de Janeiro. A capital desta republiqueta vive em polvorosa contra a vacinação obrigatória promovida por Oswaldo Cruz. Cruz-credo! nos persignamos enquanto erramos por ruas esburacadas, entre cortiços em ruínas e bondes incendiados. Quero regressar a 2021! grita o camarada ao meu lado.

Mas será mesmo um bom negócio? Afinal, aqui temos também nossas pestes: COVID-19, manifestantes pró-ditadura, terraplanistas, fake news, lockdown, toque de recolher, um certo mito megalomaníaco... Alô, alô, Doutor Brown, me empresta o De Lorean para eu voltar à barriga da minha mãe? 








Texto: Raphael Cerqueira Silva 
foto: Forte de Copacabana (acervo do autor) 

 

domingo, 14 de março de 2021

Aos nove anos

 

Ontem comecei a ler na internet uma entrevista com K., jovem poeta que lançou neste mês seu primeiro livro. À primeira pergunta, disse que seu contato com a literatura ocorreu muito cedo; que em sua casa livros abundavam na sala e na copa, na estante do corredor, nos quartos... enfim, em todo canto; que aos nove anos já mergulhara nos livros de Machado, Hesse, Jorge Amado, Bilac, Hemingway; que não conheceu os livros da Vaga-lume e os super-heróis das revistinhas que os coleguinhas tanto comentavam a caminho da escola... Parei de ler na primeira resposta.

Eu, que iniciei na leitura através dos contos de fadas e dos gibis do Zé Carioca e que só conheci os clássicos a partir dos quinze anos por imposição escolar, achei pouco provável a trajetória do entrevistado. Sobretudo porque ele é quase uma geração depois de mim: segundo o entrevistador, K. nasceu quando o Muro de Berlim ruía, Madonna estourava com “Like a Prayer”, Spielberg lançava “Indiana Jones e a última cruzada”, Faustão estreava na Globo, Collor vencia as eleições e, na China, ocorriam os protestos na Praça da Paz Celestial. Desliguei o celular, fui ler meu jornal.

Mas, entre um artigo e outro, fiquei a matutar: como, aos nove anos, um menino consegue ler – e compreender – Machado, Bilac, Hesse... Eu conheci Machado no primeiro ano do ensino médio; “Contos” foi meu primeiro contato com seu universo. Lembro o quanto foi custoso vencer alguns trechos, seu vocabulário, sua ironia (que eu sabia ser ironia porque o professor me alertara para seu estilo). Depois veio “O Alienista”: a leitura fluiu melhor, mas ainda derrapei em algumas passagens... Quanto a Bilac, tomei trauma desde que a professora mandou decorar aquele soneto do “ora (direis), ouvi estrelas!”... não as ouvi, porém tomei um pito da mestra que jamais esqueci. Hesse conheci aos trinta e poucos. Em uma livraria de Diamantina vi uma bonita edição de “Demian”; comprei-a para me acompanhar na viagem de volta. Gostei. Contudo, acho que se tivesse caído em minhas mãos mais cedo, talvez não me interessasse.

Aos nove anos eu queria jogar Atari, ler Almanaque Disney, Luluzinha e Bolinha, ver desenhos na televisão. Enquanto isso, as enciclopédias da Abril e o “Moça deitada na grama” empoeiravam na estante. Sobre este livro, lembro da capa: no fundo branco, o desenho de uma mulher nua deitada no chão ; na contracapa, a foto em preto e branco do Drummond. Aos nove anos não tive a curiosidade de ler sequer um parágrafo... só encarei, pra valer, um livro dele às vésperas do vestibular.

Minhas referências literárias aos nove anos eram o Pinóquio da Silva (livro do Cony publicado na Coleção Fantasminha) e os livros do Rei Canequinho traduzidos pelo Sabino. Mas só fui saber mesmo quem eram Fernando Sabino e Carlos Heitor Cony tempos depois: aquele, através de um trecho de “O homem nu” que a professora Edith leu e releu na sexta série, nas aulas de interpretação de texto, mostrando que ler também era divertido; e este quando comecei a ler sua coluna na Folha, no começo dos anos 2000.

Dobrei o jornal, pensei: um menino aos nove anos que lê todos aqueles clássicos é, para mim, como ver a USS Enterprise pousando no meu quintal. Todavia, como tudo é possível neste mundo se se tiver imaginação, vou crer no que disse K. Ao menos, sua entrevista serviu-me de mote para esta crônica. 





 Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor 

domingo, 7 de março de 2021

Alvorecendo

o dia vai alvorecendo

tenho um poema se formando

em minhas entranhas inquietas

como uma ereção matutina

avoluma-se, robusto, 

o poema ao alvorecer

contudo eu queria, apenas,

dormir mais um pouco. 




Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor 


quinta-feira, 4 de março de 2021

Uso obrigatório de máscara

 _____Espero minha vez na fila da lanchonete. À frente, o garoto de boné compra Fandangos e Galak; paga em dinheiro trocado. O baixinho do caixa separa as moedas de dez e cinco centavos em um montinho à parte. Reconta, diz: obrigado, volte sempre. Maquinalmente. Sem expressão, como Dolph Lundgren em Mestres do Universo.

_____Há quase quinze anos compro nesta lanchonete. O baixinho é o proprietário. Recebe a clientela com “bom dia, tudo bem” sem sequer levantar os olhos. O garoto sai, abrindo ruidosamente a embalagem de biscoitos. A fila anda. Não mantemos o distanciamento protocolar exigido na tevê: falta espaço para isso no estabelecimento.

_____Agora é a vez da loira de jeans coladinho. A máscara rosa cobre-lhe o queixo. Com uma nota de vinte paga a lata de Coca e o quibe já pela metade. O baixinho passa-lhe o troco, diz: obrigado, volte sempre. A moça guarda as cédulas e as moedas no bolso de trás da calça; desce rebolando para a calçada. Na parede da lanchonete, os ponteiros do relógio requebram para mim como odaliscas travessas.

_____A velhota de máscara preta paga o cigarro com cartão. De crédito, diz. Sai capengando enquanto o “obrigado, volte sempre” se perde entre os ruídos do trânsito. Enfim, minha vez. “Bom dia, tudo bem” repete o baixinho. Apresento-lhe a comanda: uma esfirra, um guaraná e um sanduíche natural (este comerei à tarde: estou farto dos sequilhos que a chefe compartilha na repartição). Peço um Halls de menta. No débito, digo, mostrando o cartão. Demoro a digitar a senha: os óculos embaçam com a máscara, justifico.

_____– Eu não uso máscara. O baixinho proclama, esfíngico. Podem vir os fiscais do prefeito, os homens, o juiz, o escambau que eu não uso máscara. Pago multa, mas não uso esse troço, conclui. Só faltou dizer que o vírus é fruto de um conluio entre a China, a Globo e o PT.

_____Em silêncio, digito a senha. Espero a emissão da via; leio o cartaz afixado com durex ao lado do caixa: USO OBRIGATÓRIO DE MÁSCARA. O baixinho me entrega a via com o indefectível obrigado, volte sempre. Na calçada, resmungo: nessa lanchonete não piso mais.



Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor 


Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...