domingo, 14 de março de 2021

Aos nove anos

 

Ontem comecei a ler na internet uma entrevista com K., jovem poeta que lançou neste mês seu primeiro livro. À primeira pergunta, disse que seu contato com a literatura ocorreu muito cedo; que em sua casa livros abundavam na sala e na copa, na estante do corredor, nos quartos... enfim, em todo canto; que aos nove anos já mergulhara nos livros de Machado, Hesse, Jorge Amado, Bilac, Hemingway; que não conheceu os livros da Vaga-lume e os super-heróis das revistinhas que os coleguinhas tanto comentavam a caminho da escola... Parei de ler na primeira resposta.

Eu, que iniciei na leitura através dos contos de fadas e dos gibis do Zé Carioca e que só conheci os clássicos a partir dos quinze anos por imposição escolar, achei pouco provável a trajetória do entrevistado. Sobretudo porque ele é quase uma geração depois de mim: segundo o entrevistador, K. nasceu quando o Muro de Berlim ruía, Madonna estourava com “Like a Prayer”, Spielberg lançava “Indiana Jones e a última cruzada”, Faustão estreava na Globo, Collor vencia as eleições e, na China, ocorriam os protestos na Praça da Paz Celestial. Desliguei o celular, fui ler meu jornal.

Mas, entre um artigo e outro, fiquei a matutar: como, aos nove anos, um menino consegue ler – e compreender – Machado, Bilac, Hesse... Eu conheci Machado no primeiro ano do ensino médio; “Contos” foi meu primeiro contato com seu universo. Lembro o quanto foi custoso vencer alguns trechos, seu vocabulário, sua ironia (que eu sabia ser ironia porque o professor me alertara para seu estilo). Depois veio “O Alienista”: a leitura fluiu melhor, mas ainda derrapei em algumas passagens... Quanto a Bilac, tomei trauma desde que a professora mandou decorar aquele soneto do “ora (direis), ouvi estrelas!”... não as ouvi, porém tomei um pito da mestra que jamais esqueci. Hesse conheci aos trinta e poucos. Em uma livraria de Diamantina vi uma bonita edição de “Demian”; comprei-a para me acompanhar na viagem de volta. Gostei. Contudo, acho que se tivesse caído em minhas mãos mais cedo, talvez não me interessasse.

Aos nove anos eu queria jogar Atari, ler Almanaque Disney, Luluzinha e Bolinha, ver desenhos na televisão. Enquanto isso, as enciclopédias da Abril e o “Moça deitada na grama” empoeiravam na estante. Sobre este livro, lembro da capa: no fundo branco, o desenho de uma mulher nua deitada no chão ; na contracapa, a foto em preto e branco do Drummond. Aos nove anos não tive a curiosidade de ler sequer um parágrafo... só encarei, pra valer, um livro dele às vésperas do vestibular.

Minhas referências literárias aos nove anos eram o Pinóquio da Silva (livro do Cony publicado na Coleção Fantasminha) e os livros do Rei Canequinho traduzidos pelo Sabino. Mas só fui saber mesmo quem eram Fernando Sabino e Carlos Heitor Cony tempos depois: aquele, através de um trecho de “O homem nu” que a professora Edith leu e releu na sexta série, nas aulas de interpretação de texto, mostrando que ler também era divertido; e este quando comecei a ler sua coluna na Folha, no começo dos anos 2000.

Dobrei o jornal, pensei: um menino aos nove anos que lê todos aqueles clássicos é, para mim, como ver a USS Enterprise pousando no meu quintal. Todavia, como tudo é possível neste mundo se se tiver imaginação, vou crer no que disse K. Ao menos, sua entrevista serviu-me de mote para esta crônica. 





 Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor 

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