quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

MENSAGEM DE ANO NOVO

 Ainda que você não compartilhe

toda a histeria das pessoas

pela chegada do novo ano; 


ainda que você não tenha

motivos para estar alegre

pela chegada do novo ano; 


ainda que neste momento 

existam mais motivos

para chorar que sorrir; 


ainda que você esteja sozinho,

longe de todos por algum motivo,

ou que não tenha mais ninguém; 


ainda que você tenha perdido seu amor,

mesmo tendo se entregado

inteiramente, nesse ano que se finda;


ainda que você não acredite 

ser capaz de amar novamente,

pois se desencantou com a humanidade; 


ainda que você não vá festejar,

comer e beber muito na virada do ano

porque a saúde lhe impede


(ou lhe faltem recursos financeiros); 


ainda que você vá passar 

o réveillon vendo, pela TV, 

a transmissão do foguetório; 


pelo menos um motivo 

você tem para comemorar essa data: 

ainda há vida em você. 


E enquanto ela existir, comemore

do jeito que for, mas comemore 

porque a vida...


a vida vale, sem dúvidas, ser festejada.




Texto: Raphael Cerqueira Silva 

foto: acervo do autor 

domingo, 27 de dezembro de 2020

O SOL BRILHA A PROXIMIDADE DO VERÃO

 

       O sol brilha a proximidade do verão. Sexta-feira, 19 de dezembro: para mim, o derradeiro dia útil do ano. A partir de segunda estarei em recesso e, felizmente, não trabalharei no plantão. O sol brilha a proximidade do verão. Uma crônica do Otto Lara para começar o dia. Agradeço à internet que me permite ler, em 2020, este texto escrito há quase trinta anos.  Em 1991, o cronista se preocupava com os “graffiti” e os grafiteiros “que picharam a parede do meu escritório”. Ah, Otto, quem me dera ter hoje problemas dessa ordem... Mas em meio à pandemia, o que me inquieta é a COVID-19, esse mal que abalroou conceitos, modos de viver, trouxe demasiados desassossegos. E mortes. Os telejornais noticiam: passam de 184.000 as vidas ceifadas. Só no Brasil. Os dados mundiais eu nem quis ouvir. Perdemos a batalha para aquele que já é considerado o maior inimigo do século.  

        O sol continua a bailar no céu de parcas nuvens. Alguém comenta na GloboNews: estão vacinando grupos de pessoas na Europa. O sol brilha a proximidade do verão. Cá dentro, a esperança ressurge. Meio apática, reconheço. Ainda teme sair de casa, dobrar a esquina, descer a ladeira. Todavia, volta e meia aparece na janelinha do sótão. O sol brilha a proximidade do verão. E a esperança, em libras, parece anunciar: a vacina chegará.

    Há palavras demais nos jornais, nas redes sociais. Angustiados, os brasileiros percorremos os dias quentes de dezembro.  O sol brilha a proximidade do verão. E espero que o dia passe rápido. Que o recesso seja tranquilo. Que o Natal seja frugal. Que as pessoas não lotem meu WhatsApp com mensagens de boas festas e felicidades. Que o bom senso modere suas comemorações no réveillon (de preferência, que não comemorem). Que os grafiteiros continuem a pichar mensagens de gentileza e espalhem cor nos muros e nas paredes dos cronistas.

    E viva o sol que, apesar de tudo, ainda brilha a proximidade do verão.




Texto: Raphael Cerqueira Silva 

foto: Cabo Frio/RJ (acervo do autor) 

quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O VERÃO COMEÇOU CHUVOSO


        A serra branquejava no meio da tarde. Sem entender o que se passava, o menino ajeitou os óculos e perguntou: cadê a serra. Quando criança também fiz tal pergunta. Me disseram: toda vez que chove lá na serra, ela fica branquinha e a chuva chega aqui pouco depois. Repeti essa explicação ao menino. Mas acho que não o convenci, a julgar pela sua cara. Incrédulo – ou me achando um bobalhão – foi jogar no celular.

          A chuva chegou precedida da brisa úmida. Lembrei os tempos de escola: quando as nuvens se avolumavam e o vento balançava as palmeiras do pátio, o sino batia. Todo mundo era, então, liberado. Saíamos correndo, feito mulas desembestadas, pelas ruas, atravessando os trilhos da Rede, a pracinha, a ponte, torcendo para chegar a casa antes do toró desabar.

         Toró. Há quanto tempo não ouço essa palavra. “Vai cair o maior toró”, assim dizia a vizinha do 92 que vivia sentada à porta. Quando os primeiros pingos caíam na rua de terra batida, ela corria para recolher as roupas do varal. Na calçada a cadeira, esquecida, suportava o toró.

           Quando a chuva chegou, eu estava sentado na varanda. Rápida e furiosa, molhou minhas pernas, respingou as folhas do livro que eu lia. Tive que correr para recolher as roupas no varal. Ironia do destino, hoje sou eu quem se preocupa com as roupas no varal. Também me apressei para fechar as janelas. Finda a missão doméstica, fui para o quarto concluir a leitura de “A águia de quinze dólares”. Pela fresta da janela, vi as nuvens carregadas: hoje não vou caminhar na Dr. Lelé. Pensei também na tatuagem que o personagem do conto da Sylvia Plath mandou fazer no braço. Nunca tive vontade de me tatuar. A vida deixa marcas demais, não preciso tatuar águias, nomes e corações ingênuos.

          O tempo fechou. Pela fresta da janela, eu filosofava. Filosofia de alcova, literalmente.  A chuva forte atrapalhou os feirantes que armaram barracas na praça. Coitados, na quarta passada também choveu... se criaram expectativas de impulsionar as vendas para a ceia do Natal, se frustraram.

           Chove muito forte. Sinto fome. Na cozinha, me arrependo de não ter comprado um chocotone maior. O que comprei ontem à tarde já se transmutou em calorias e saudade. O estômago ronca querendo aparecer para os trovões. Competição vã, tento lhe explicar. Mas meu estômago não se alimenta de palavras tolas. Uma banana, então, para enganá-lo.  Pela fresta da janela, observo a enxurrada cobrindo as ruas, a praça, passando sob as barracas. O verão começou chuvoso esse ano.

 



Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: Bento Gonçalves (acervo do autor) 

domingo, 20 de dezembro de 2020

Diálogo inusitado

 A Sociedade perguntou ao Poeta: 

_ Poesia enche barriga?

A resposta:

_ O que enche barriga são gases presos. 

A Sociedade insistiu: 

_ Poesia faz dinheiro?

A resposta do poeta:

_ Quem faz dinheiro é a Casa da Moeda. 

A Sociedade, teimosa, perguntou mais uma vez:

_ Poesia serve pra quê, mesmo?

A resposta do poeta: 

_ Pra evitar perguntas desse tipo. 

A Sociedade virou as costas e ligou a tevê. 

O poeta, agora em silêncio, voltou a escrever.







Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

quinta-feira, 17 de dezembro de 2020

Ângulo

    Estreio a coluna "Ângulo". Todas as quintas-feiras a coluna propõe comentar um pouco de tudo, sem preocupação se será crônica, poesia, redação. "Ângulo" é espaço livre, aberto, plural.

    O Aurélio registra diversas acepções para a palavra "ângulo". A primeira delas: esquina, canto, aresta. Essa coluna, portanto, pretende ser um cantinho para exercitar a escrita. Uma esquina. Onde me encontrarei com o(s) leitor(es) em dia marcado.

    Outro sentido para a palavra: ponto de vista. A coluna propõe registrar um ponto de vista sobre determinado assunto. Pode ser literatura, história, memória, poesia, música, cultura pop... enfim, não há um tema definido. Tudo e nada servem para discussão em "Ângulo". Um professor dos tempos do ensino médio dizia: leiam de tudo: bula de remédio, revista Ti ti ti, Caras, jornal, quadrinhos, livros... mas leiam. Leitura é exercício, dizia o mestre, quanto mais se lê, mais se aprende.

    A palavra ângulo também me recorda os tempos de escola: as aulas de matemática que me esquentavam a cabeça. Nunca gostei dos ângulos. Retos, obtusos, adjacentes, agudos... pelejei para aprender esses ângulos, desenhando no caderno triângulos, quadrados e retângulos. Õ sofrimento! para quem vivia com a cabeça em prosa e versos.

    Enfim, "Ângulo" é isso: liberdade. Até a próxima quinta. 😉



  



Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: Visconde do Rio Branco, MG (acervo do autor) 

domingo, 13 de dezembro de 2020

Noventa anos do Homem do Baú

 

Ontem (12/12) foi dia de apagar noventa velinhas. Sim, noventa. Senor Abravanel, o nosso Silvio Santos, comemorou noventa primaveras. Sílvio atravessou gerações. Do rádio, migrou para a televisão ainda nos tempos do preto e branco. Disse, certa vez: perdera a vaga de locutor para Chico Anysio, felizmente. Chico foi desenvolver seu humor no rádio e Sílvio levou seus programas à televisão. Ganhamos nós, que o acompanhamos ao longo de décadas.

Quem foi criança nos anos 1980 e 1990 passou boas e divertidas horas na frente do televisor. Que menino não sonhou abrir as portas da esperança ou pegar um aviãozinho de dinheiro no Topa Tudo?  Que não quis sentar no auditório do Seu Sílvio, rir das câmeras escondidas e tentar ver o rosto do Lombardi? E quem não sonhou rodar o pião do Baú da felicidade? Esses desejos – que não eram apenas infantis – encantavam as tardes e noites dos domingos.

Começava assim: por volta do meio-dia, as colegas de auditório balançavam seus pompons coloridos e entoavam o cântico (trilha sonora de muitas gerações) “Sílvio Santos vem aí, Silvio Santos vem aí, lá rá lá rá”. Nos tempos do carnaval, a garotada corríamos para a frente da TV para cantar junto com o patrão: a pipa do vovô não sobe mais, ai bruxa vem aí, doutor eu não engano, meu coração é corintiano...  As marchinhas do Seu Sílvio embalaram nossa folia.

Através do canal do Sílvio, a TVS - futuro SBT -, conhecemos as novelas mexicanas. Lembro que a primeira dessas novelas que eu assisti foi Rosa Selvagem, com Verônica Castro. Depois, vieram Carrossel (marcou a geração anos 1990; ah que saudade da professora Helena!), Chispita, Vovô e Eu (ah, como eu quis voar no balão com o vovô e o Daniel) e as Marias de Thalia, sendo a Maria do Bairro minha preferida. Impossível esquecer o Chaves e o Chapolin. Nosso Chavinho e sua vila, mais brasileiro impossível.  Sílvio trouxe também para o Brasil o palhaço Bozo, alegria das manhãs e tardes dos anos 80 e 90.

Domingo no Parque, Qual é a Música, Hot Hot Hot, Tentação, Em Nome do Amor, Show de Calouros, Troféu Imprensa... horas e horas de diversão e alegria diante do televisor. Na sala, sozinho ou rodeado da família, em silêncio esperando o Sílvio. Bordões como “vai pra lá, vai pra lá”, “ma oe”, “e o Silvio Santos fala ou não fala”, “quem quer dinheiro”, “você topa ou não topa”, “ai ai ui ui”  que repetíamos na escola, na rua, em casa. As perguntas do Show do Milhão aguçava nossa curiosidade e a vontade de pesquisar (numa época que consultar o Google era coisa de ficção científica, para nós dos tempos da internet discada).

Impossível esquecer as tardes alegres diante da TV vendo o Show de Calouros. Silvio e sua trupe me marcaram. Quem não se lembra da clássica música que anunciava a entrada dos jurados. O hilariante Sérgio Mallandro, o sisudo Pedro de Lara, a estonteante Sônia Lima, a beleza loira da Flor, Décio Piccinini, Leão Lobo, Wagner Montes... ah, tanta gente passou pelo tribunal do Show de Calouros e fez parte de minha vida.

Seu Sisi, nos últimos tempos, fez escolhas políticas que me desagradaram. Aliou-se ao temeroso Temer, ao inominável Mito. Mas isso não ofuscou o brilho do homem do baú.  Perdeu pontinhos comigo. Deixei de vê-lo com regularidade. Meus domingos ficaram vazios. Um vazio que a Netflix não preencheu. Voltei a sintonizar o SBT.

Domingo é sinônimo de diversão. Domingo é sinônimo de Sílvio Santos. “Agora é hora, de alegria, vamos sorrir e cantar, do mundo não se leva nada, vamos sorrir e cantar...”

Parabéns ao Sílvio Santos! E que essa turbulência passe logo para voltarmos a vê-lo com programas inéditos no ar.  




Texto: Raphael Cerqueira Silva 

 Foto: fonte Google Imagens 

quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Clarice e eu

 

         A Folha trouxe na Ilustrada de 05/12 série de artigos sobre o centenário de Clarice Lispector. Escrevo esta crônica para não deixar a efeméride passar em brancas nuvens. E, de antemão, advirto: fãs e idólatras de Clarice, não leiam este texto.

       A primeira vez que ouvi falar em Clarice eu tinha por volta de dezesseis anos. Para a geração que cresceu dentro das redes virtuais, isso pode soar estranho. Afinal, Clarice é a escritora mais citada nas redes, sobretudo, no Facebook. Claro que, muitas vezes, atribuem-lhe frases que não são de sua lavra. Mas em tempos de fake news, convenhamos, isso é insignificante. Dito isto, regresso ao meu longínquo ensino médio quando a professora nos obrigava a decorar escolas literárias, datas, ler e reler fragmentos de romances e poemas. Para apresentar trabalho sobre Clarice, fiz cartaz em cartolina, caprichei na caligrafia - escrevi palavras-chave para explicar o pensamento lispectoriano -, decorei frases da apostila. Tudo para explicar aos colegas os pontos importantes da matéria e, principalmente, ganhar pontos no bimestre. Eu não lera sequer um livro da Clarice, mas tinha que explicá-la... coisas de escola.  

        No ano seguinte, às vésperas do vestibular, me meti a ler Laços de Família. Naquela época as universidades exigiam a leitura de alguns livros literários. Não tenho certeza se foi a UFV ou a UFJF que adotou o livro da Clarice. Lembro que o li, por três motivos: primeiro, porque gostava de literatura e pensei: será a oportunidade para conhecer uma obra sua. Segundo motivo: rebeldia. Rebelde, eu recusava a ler os resumos dos livros, como os colegas faziam. Rebeldia às avessas, bem meu estilo mesmo... O terceiro motivo foi, digamos assim, mais novelístico. Na época, a Globo exibia Laços de Família, novela com a estonteante Vera Fisher como protagonista. Achei que se tratava de adaptação da obra de Clarice. Daí, curioso para conhecer os destinos de Helena, Edu, Camila e companhia me aferrei ao livro. Ah, dupla decepção! Do livro, a novela só tinha o título. E os contos eram tão incompreensíveis para mim – tão introspectivos, como dissera a professora – que me decepcionei. Recordo um conto que narrava o aniversário de uma velha; sentada à mesa a infeliz encarava a hipocrisia familiar ao seu redor. Lembro também da narrativa meio filosófica sobre uma galinha. O que a velha e a galinha faziam, não me recordo. Vinte anos se passaram... o tempo ruge, como diria Giovanni Improtta. E a memória se fragmenta, eu digo.

       O tempo rugiu. Muitas memórias se fragmentaram. Não voltei aos textos de Clarice. Tomei ranço, como a moçada diz hoje em dia. Certa noite, assisti no canal Brasil A hora da Estrela. Que xaropada! Não fui acostumado a ver esses “filmes cabeça”, como diz um colega. Curto filmes de ação com Stallone, Bruce Willis, Steve Segall, do Indiana Jones, de super-heróis e os faroestes com o Clint Eastwood. Mas filmes cult não são minha praia: tenho que pensar muito para entender. E, para mim, filme bom é aquele que se assiste anestesiado, comendo pipoca, bebendo guaraná e torcendo para o herói socar a cara do vilão. No entanto, insone, assisti ao filme da Clarice até o fim. E continuei com ranço. Coitada, e agora a culpa nem era dela.

Há cerca de quatro anos, fazendo hora para pegar o Unida, entrei na Nobel. Passeei os olhos pela estante de literatura. Em destaque, uma edição bonitinha, tons suaves na ilustração da capa. Lá estava Clarice com seu A hora da Estrela. A obra estava na lista de leituras obrigatórias para o exame do COLUNI, ou do PASES, não lembro bem. A história de Macabea, que a professora falara tanto e que me entediara na televisão, estava ali ao alcance de meus dedos. Trouxe para casa, como resultado de minha incursão na livraria: O Crocodilo (livro chatérrimo do Dostoievski), Tarzan (numa edição capa dura e fascinante da Zahar) e A hora da Estrela. Chegara, enfim, a hora de reencontrar Clarice. Li, depois do Tarzan. Não digo que gostei, também não desgostei. Não me tocou o espírito. Mas, pelo menos, fui até o fim.

2020, o anno horribilis. COVID, cloroquina, vermífugo-mata-vírus, inflação, desemprego, incêndio no Pantanal, Jair & Filhos, Moro e a reunião nos idos de abril, Queiroz, o vai e vem de Regina na Cultura, o circo eleitoral... enfim, avalanche de pragas. Piores que as bíblicas. Nas horas vagas - e foram muitas - li. Nas esquinas da casa, encontrei Clarice. Cruzei com Perto do Coração Selvagem. Não passei da quinta página. Sentado na varanda, sob o silêncio imposto pela pandemia, entendi patavina do que estava escrito. Reli mais atento. Continuei sem entender. Como a vida é curta demais para tanto esforço, larguei Clarice de lado. Fui viajar com Júlio Verne pela África em um balão.

Um dia, talvez, me reconcilie com Clarice. Por enquanto, não dá. Estamos de mal, rompidos. No seu centenário, continuarei a lê-la no Facebook (ainda que a maioria das frases não seja sua). É o mais perto que o meu coração selvagem consegue chegar da Clarice.   

 






       Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto:  Casa dos Contos, Ouro Preto (acervo do autor) 


domingo, 6 de dezembro de 2020

Coleções

          Somos todos colecionadores. Colecionamos selos, borboletas, cartas e papéis de cartas, fotografias e cartões postais, actions figures, recortes de jornais, experiências, paixões. Sobretudo, lembranças.

_____Em criança, assisti na televisão uma entrevista com o bibliófilo José Mindlin. À noite, a palavra bibliófilo não saía do meu pensamento. Da cama, olhei para a estante: algumas revistinhas, a coleção do Rei Canequinho e dois volumes do Monteiro Lobato. Heróis japoneses tentavam protegê-los das traças e do tempo. Invejei o “Seu” Mindlin... Mas inveja de menino Deus perdoa, como diz o outro.  

***

_____Quando Dona Lurdinha comentou que colecionava pedras, eu ri. Achei ridículo. Imaginei sua casa lotada daquelas pedras cinzentas que ficavam entre os dormentes e os trilhos da ferrovia. Ou de pedra britada que caía das carroças e usávamos para marcar o jogo da amarelinha. Dias depois, a professora levou para a aula um estojo de madeira. Dentro, parte de seu acervo. Constatei: o ridículo era eu. Protegidos pela tampa de vidro, entre divisórias de igual tamanho, pedras e minerais variados: quartzo rosa, ametista, opala, amazonita, jaspe vermelho, ágata, turmalina negra, topázio, feldspato, obsidiana azul e outros que não recordo mais. Lembro, todavia, que as pedras da Dona Lurdinha colocaram no chinelo as pedrinhas brancas do parquinho da escola. Naquela manhã, a aula sobre minerais e rochas fez mais sentido.

***

_____Vovó partiu quando em mim mudavam o humor, o corpo, a voz. Mudava-me, afinal, o jeito de olhar o mundo. “Foi descansar na eternidade”, disseram. Deixou, a título de herança, um Papai Noel do Paraguai que piscava luzinhas vermelhas nos olhos (alegria de minha meninice) e um monte de dinheiro antigo. Guardara em uma caixa de sabonetes, durante muitos anos, dezenas de cédulas e moedas. Ninguém brigou pela herança. Os réis, cruzeiros, cruzados e cruzados novos estão, desde aquele dia, no cantinho do meu armário, entre os livros e CDs. A caixa de sabonetes, contudo, não resistiu ao tempo. E o Papai Noel não funciona mais, mas adorna com nostalgia, todos os anos, minha mesa na ceia natalina.

***

_____Na infância, também fui colecionador. Tive a fase de colecionar figurinhas de chiclete. Todo dia, depois da aula, passava nas vendas e bares para comprar Ping Pong. Trocando as repetidas com os colegas e ganhando muitas no bafinho, completei vários álbuns. Naquele tempo, apenas duas preocupações: completar os álbuns e não engolir o chiclete (grudava nas tripas, diziam). Passei tardes incríveis memorizando a fauna do Pantanal e da Amazônia, as bandeiras e mascotes das seleções que disputavam as copas mundiais de 1990 e 1994, as curiosidades dos Records Guinnes, os nomes de cidades e capitais mundiais.

***

_____Na juventude, o pai colecionava chaveiros. Guardou-os em uma caixinha de madeira. Na tampa, escrito dentro de dois corações: EU e ELA. Vez em quando a abria e me deixava mexer nas suas relíquias. Passei a contribuir para o acervo: todo chaveiro que eu ganhava de brinde no comércio ou nas festas de escola guardava na caixinha. Exceto os chaveiros de bonequinhos. Desses arrancava a argola e a correntinha, rapidamente os levava para se enturmar com outros bonecos. Muitos viraram aliados de aventuras dos Comandos em Ação. Pequenos, cabiam perfeitamente na boleia dos caminhõezinhos e nos carrinhos de plástico. Alguns resistiram ao tempo, como o Mickey e o Garfield que, nesse momento, me observam da estante. Certamente zombam dessa minha mania de escrever tolices melancólicas. Quanto à coleção do pai, está perdida em um canto qualquer da casa. Como a nossa juventude.

*crônica publicada originalmente em: revistavicejar.blogspot.com






Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Minas 300 anos

 

Minas Gerais completa 300 anos. A História registra: em 02 de dezembro de 1720, através do Alvará Régio de Dom João V, houve o desmembramento das capitanias de São Paulo e Minas. Era a época do descobrimento do ouro e o monarca, atendendo às recomendações do Conselho Ultramarino, autorizou a instalação da organização administrativa no território mineiro. Para não passar em branco a data, um poema de minha lavra. Não tão rico quanto as “Minhas” Gerais, sequer tão faustoso quanto suas igrejas e cidades históricas. Contudo, um poema. Pode não estar à altura do “estado diamante”, mas foi feito de coração, uai.  

 

Minas do ouro e das ladeiras históricas.

Minas das cachoeiras, dos vales

das serras cortadas pela estrada de ferro:

trem a levar gente, mercadoria

nossas riquezas minerais.

Minas do leite, café, gado, da cana.

Minas, infelizmente, da Vale e suas barragens:

muitos mortos no Bento, em Brumadinho

nas veredas e sertões esquecidos.

Minas do Paraíba do Sul, Doce e Xopotó

também esquecidos pelas autoridades, por nós.

Minas do povo hospitaleiro e pacato

- às vezes pacato demais da conta, sô.

Minas das vendas a vender Abacatinho, broa

pão de queijo, caldo de cana, docin de leite

pinguinha da boa, adonde se bate papo

sem às horas se atentar.

Minas do Skank e Jota Quest

do Clube da Esquina, do Lô.

Minas do Milton “Bituca” Nascimento:

musicalidade entranhada n’alma.

Saravá, Clara guerreira Nunes!

Minas de Ari Barroso, Nelson Ned e Pelé

do trapalhão Zacarias, a alegrar minha meninice.

Minas dos arraiás e festas de São João.

Minas da modas boa de viola e violão.

Salvem o Menino da Porteira, o arcadismo

o barroco dos Mestres Aleijadinho e Ataíde.

Minas é a poesia de Drummond, Conceição Evaristo,

da minha conterrânea Vanete de Barros.

Minas é a prosa de Guimarães Rosa, Luiz Ruffato

Zuenir Ventura, Bernardo Guimarães.

Minas são as crônicas do Sabino, do Afonso Romano

as travessuras do Ziraldo, nosso eterno Maluquinho.

Minas das bandas de música e filarmônicas

- um saudoso viva ao Maestro Altamir da Rocha –

Minas do Conservatório Prof. Theodolindo José Soares

         deixando sempre meus dias mais melódicos.

Minas dos anjinhos a coroar a Virgem

nas noites frias de maio.

Minas do trem bão, do uai.

Minas de Santos Dumont, Chica da Silva,

Tiradentes, Dona Beja, Itamar, JK.

Minas, meu berço, minha estação.  

Minas celebra 300 anos de luta,

gana, tradição, glória

muita história.  

               



Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: Praça Minas Gerais, Mariana (acervo do autor) 


Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...