domingo, 26 de dezembro de 2021

Cenas de fim de ano


 

                Ele se aproxima. Sei – ou melhor, sinto – antes de vê-lo: a fedentina chega antes. O caminhão para em frente ao prédio. Não vai levar os sacos com entulho que um certo doutor largou ali. Eu sei, os garis sabem, o doutor também: o caminhão do lixo leva lixo, entulho é outro departamento. Os garis recolhem as sacolas com papel higiênico, sobras de comida, frascos de perfume e detergente, garrafas, pacotes de biscoito, latas de sardinha... a embalagem do chocotone que ontem devorei sozinho enquanto passava a novela. Na carroceria, repousa um bebê com o vestido roto e sujo. Com o único olhinho de plástico, mira o céu ainda cinzento; a boca ligeiramente aberta parece sorrir, escancarando felicidade. O caminhão segue, levando a fedentina, os restos de nossa humanidade, o bebê que alegrará a noite de Natal de alguma menina. Os sacos com entulho do doutor ficaram, mais uma vez.

                                                    ***

                Mandou-nos cortar o cabelo para a formatura. Mas não deixa pra cortar no dia se não fica com cara de debiloide, disse enquanto nos esperava copiar a matéria do quadro. Rimos. A gente sempre ria das suas palavras. Era irônica, engraçada ao seu estilo. Não sei se haveria, nos dias de hoje, espaço para seu humor... nos longínquos anos 1990 havia.

                                                    ***

                O recesso se aproxima. Há filas no corredor do fórum. Todo ano a cena se repete, feito tradição: os doutores esperam seus alvarás. Com eles, imagino, compram os presentes das crianças, o peru pro Natal. O próximo, anuncia o estagiário. O doutor lhe entrega um papel; isso aqui é 7 ou 4, doutor, pergunta o estagiário. É 9, dígito 9, o doutor responde secando com a mão o suor da testa. O estagiário vai ao computador, pesquisa, volta com as folhas impressas. O doutor rabisca o que chama de assinatura, vai sem dizer sequer “feliz natal”.  

                                                    ***

                Armaram o presépio na praça. Todo ano são as mesmas peças, nem vale a pena descer o morro para fotografá-lo. A manjedoura, contudo, não está vazia dessa vez. Devia estar, afinal, o Menino-Deus só descerá à Terra dia 25. Mas hoje de manhã o presépio acordou diferente: um vira-lata, desses cansados de tanto abandono e tanto penar, dorme na manjedoura. Protege-se da chuva, aquece o berço para o Menino que vai chegar.  

                                                    ***

                Pedimos-lhe para ajudar na escolha das músicas para a missa de formatura. Aceitou. Só não admitiu que cantássemos Coração de Estudante. Não aguento mais: todo ano cantam essa música... não gosto, me faz lembrar o Tancredo. Rimos. A gente sempre ria. Teve quem risse sem sequer saber quem era o tal Tancredo... eu, pelo menos, sabia que era um velhinho careca que morrera antes de virar presidente. Formamos. Teve solenidade no salão da Scipião Rocha, teve missa, teve música... menos “a música do Tancredo”. D. Edith era incisiva; porreta, como diria o outro.

                                                     ***

                Próximo. A doutora se aproxima: vim ontem duas vezes e não estava pronto, será que levo hoje meu alvará? Acentuou a possessividade do pronome, largou a bolsa no balcão. O frasco com álcool em gel balançou, a caneta ficou pra lá e pra cá feito um pêndulo pendurada pelo barbante. O estagiário pegou o andamento impresso, pesquisou no computador: ainda não foi assinado, doutora. Vai ser preciso eu despachar com o juiz, gente, pra receber meu alvará antes do recesso, indagou seus pares na fila acentuando novamente o pronome.  Silêncio. Levou a bolsa ao ombro, saiu socando os sapatos pelo corredor, passou direto do gabinete, desceu a escada. Próximo!

                                                      ***

                Na praça, falava alto, gesticulava muito: espírito de Natal uma pinoia, tudo hipocrisia, ninguém presta, só se aproximam dos outros por interesse. Ao seu lado, eu pensava nos presentes que, segundo a mãe, só seriam abertos após a meia-noite. Dois taxistas, encostados no carro, também o ouviam, rindo. Criticava as pessoas que iam à Missa do Galo: lambedores de saco de padre, lá dentro posam de santinhos com a boca cheia de hóstia e aqui fora traem, roubam, fazem um inferno... Não acredito em nada disso, é tudo papeata, invenção para alienar o povo e tomar o dinheiro da gente. As pessoas passavam: o palavrório de sempre, seus olhos diziam. Zezé se aproximou – um infeliz que vende o almoço pra tentar comprar a janta, eu o ouvi dizer certa vez – trazia um embrulho sob a manga puída da camisa. Pro senhor, disse, esticando o embrulho. Ele franziu o cenho, recebeu o presente. Os dedos grossos cortaram o barbante, rasgaram o papel. Os taxistas e eu olhamos sobre seu ombro: um quadro com a imagem da Padroeira e, ao fundo, a basílica. Zezé sorriu, desejou-nos “feliz Natal”, subiu a escadaria da igreja. Com o quadro na mão, ele ficou a cismar, em silêncio.

                                                      ***

                Todo final de ano íamos à casa da vó. O vô nos recebia no portão: vocês vão ficar até que dia, a voz arrastada de quem acordara com mau humor. Mas íamos mesmo assim, para comer o bolo da vó e as gelatinas que nunca endureciam, ganhar presentes e jogar rosa branca no Paraíba na virada do ano... na casa da vó não havia decoração natalina: tudo era igual, o ano todo. Até que um dia apareceu um Papai Noel que andava e brilhava os olhos... Veio do Paraguai, a vó disse, colocando as pilhas. Esse Papai Noel é gay, olha como anda rebolando, disse o pai. Rimos. A gente sempre ria. Largado na poltrona, o vô resmungou de novo. E o boneco, alheio a tudo, continuou zanzando na sala, balançando o sino, colorindo o dia.  

 

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: gentilmente cedida por Marilena Miguel

domingo, 19 de dezembro de 2021

Dezembros


 

         Dezembro: mês propício à nostalgia. Talvez por ser o derradeiro mês; ou por trazer sempre a urgência entranhada em seus dias: corre-se para compras, corre-se para concluir cursos e tarefas, corre-se para entregar balancetes e relatórios, corre-se para organizar festas, corre-se para (e das) confraternizações de trabalho, corre-se para viajar, corre-se para fazer as unhas e os cabelos, corre-se à costureira para a última prova... em dezembro, até esquecemos de viver, e amar. Talvez por tudo isso, ou sei lá por que, dezembro me deixa nostálgico.

         Pisca-piscas piscam nas árvores, lojas tocam velhas canções natalinas, pessoas falam em (re)encontrar-se. À janela, viajo em recordações... deram-me uma tarefa (valia preciosos pontos para alguma disciplina, não me lembro qual): encontrar pinhões. “Para enfeitar, junto com as bolas e as guirlandas e os festões, a nossa escola” Dalva justificou. Onde encontrar os tais pinhões, indaguei em pensamento às ruas vazias e aos trilhos esquecidos sob o sol. Como uma telepata de histórias em quadrinhos, Dalva me mandou ao horto florestal... horto, que horto? até então eu nunca ouvira falar que havia um horto na cidade... “na rua do cemitério, você quebra à esquerda, vai em frente toda a vida”, ela explicou e voltou aos seus afazeres. Contrariado, fui.

         Pedala, pedala, pedala. Cheguei. Porteira rangente, casinha decadente sem vivalma (haveria assombração entre aquelas paredes empoeiradas, a imaginação, em ebulição, questionou). Isto não é um horto nem aqui nem na China comentei para o Mickey estampado na minha camiseta. Silêncio incômodo. Lugar ideal para o esconderijo de um psicopata que, a qualquer momento, saltaria pela janela, me atacaria com uma motosserra... a mente voou, as pernas bambearam, os olhos ficaram em alerta. Larguei a Monark, o mato seco farfalhou sob meu Rider; recolhi do chão os primeiros pinhões que vi, coloquei-os na sacola, a sacola foi para o guidom, parti ligeiro. Pedala, pedala, pedala, passei pela estação - que, assim como as ruas e o horto, estava morta -, quebrei à direita.

         Dalva reclamou: os pinhões poderiam ser mais bonitos. Na garagem, sob as telhas de amianto, os colegas costuravam um Papai Noel. A princípio, achei-o esquisito, meio desengonçado; contudo, quando o rechearam com serragem, pareceu-me vivo e mais simpático. Dias depois, colocaram-no sentado numa cadeira no pátio da escola; ao seu lado, a Mamãe Noel, meio tímida, olhava o chão de cimento.

         Ao longo da semana, tive também que recortar e pintar caixas de papelão. A tarefa: montar casinhas; dentro de cada casinha ficaria um boneco vestido com gorro e roupa vermelhos; aos seus pés, os pinhões que recolhi. Caixas e potes de tinta espalhados na mesa, cada um se esmerou em fazer a sua casinha. Eu, no entanto, pintava e reclamava achando tudo um saco: queria, na verdade, voltar para casa e assistir televisão... uma caminhonete passou a caminho do abatedouro. O guincho dos porcos rasgou o silêncio da tarde. Comentei para ninguém em particular: gente ruim e assassina. Sempre de butuca, Dalva quis saber: você come carne. Achei a pergunta óbvia pois, até então, eu pensava que todos comiam carne; respondi com naturalidade: sim. “Então, não fale o que não deve”, ela disse e caminhou para os fundos da garagem. Risos debochados espalharam-se na mesa; uma voz irritantemente grave disse “bem feito”. Calado, peguei meu pincel, voltei à minha obrigação.

         As casinhas ficaram penduradas no corredor da escola. Tive a ideia de colocar na minha casinha o boneco do Chico Bento (o último brinquedo que ganhei de presente); colei algodão em seu rosto para simular a barba, joguei talco em seus cabelos, pedi à madrinha que costurasse uma roupinha e um gorro para vesti-lo... passei a noite revirando na cama, temendo que sumissem com ele. Na minha imaginação, um ladrão pularia o muro da escola só para roubar os bonecos fantasiados de Papai Noel, as casinhas de papelão e os pinhões.

         O horto não existe mais: virou um bairro residencial (mais um); meu Chico Bento se perdeu no tempo assim como os bonecos que a turma costurou – aliás, por onde andam meus colegas de escola, questiono ao vento que adentra meu quarto anunciando chuva. A escola ainda está lá, mas diferente: me parece menor, não tem os sons e as cores daquele tempo... também mudei – antes fosse apenas uma mudança geográfica.

         Da janela, observo o ano descerrar-se. Mais um dezembro se vai; apressado, como as pessoas e os veículos lá embaixo. Enquanto a chuva não chega, recordo uma antiga canção: e à tardinha o sol poente/deixa sempre uma saudade na gente.    

 

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: gentilmente cedida por Aparecida Tavares 

domingo, 12 de dezembro de 2021

Regresso a Juiz de Fora

 

      Há mais de dois anos não vinha a Juiz de Fora. Da última vez em que estive aqui, as coisas estavam diferentes; por exemplo, havia sol e andávamos sem máscara pelas ruas. As máscaras, na verdade, eram outras, mas isso é papo para outra crônica... Quando estive aqui, o sol de quase dezembro ensopou minha camiseta de suor; nas bancas, acho, havia mais jornais e revistas. Como diria o outro: o tempo passa, as coisas mudam. Mudam tanto – e tão rápido - que não encontrei na Santa Rita aquele self service simpático onde me fartei de lasanha e salpicão.  

      Regresso a Juiz de Fora trazendo na mala o pó da viagem e algumas expectativas. A brisa da manhã antecipa o calor do dia. Parado no Riachuelo, espero o motorista do Uber. A vida é um eterno esperar: espera-se na fila do guichê, o ônibus, o semáforo... após onze minutos de espera, o sujeito cancelou minha corrida. Restam-me duas opções - feliz do homem que tem duas opções, diria meu ex-professor - caminhar até o hotel ou tentar novo carro. As pessoas passam apressadas pela calçada, olham-me como se eu fosse um alienígena. Plantado entre a farmácia e o banco, mochila nas costas, a mala pesada entre as pernas e o celular na mão, observo o trânsito. Os minutos escoam. Caminhar não me fará mal, decido.

      Aprendi com aquela canção do Milton que todo artista tem de ir aonde o povo está... apesar de não me considerar um artista, talvez mero aspirante, retorno à Manchester Mineira em busca de público. Os palhaços na rua, os escritores nos estandes e os poetas no sarau todos buscamos algo. Esse algo pode ser um lugar ao sol, a fama, o reconhecimento, o prazer, a experiência, o saber, o viver... ou, de repente, pode ser nada pois, como diria um conhecido: o que é pode também não ser.

      Filosofias à parte, estou em Juiz de Fora. Após um longo período pandêmico, retorno à cidade. Da janela do Paço Municipal, observo: a chuva vem apressada, tal como os ônibus e carros e caminhões. Ao meu lado, confrários poetizam. Há utopias em cada olhar, doçura e aconchego em cada gesto. Versos e inspiração chovem aqui dentro, desafiam a sisudez centenária das paredes e portas; lá fora, a chuva cai. É passageira, veja como o céu já está se abrindo, diz-me um poeta que ainda a pouco me presenteou com seu livro.

A chuva lava o asfalto, molha os cabelos da madame, o uniforme das colegiais, a pasta do doutor, os All-Stars dos garotos. Às pressas, a madame, as colegiais, o doutor e os garotos cruzam a Rio Branco em direção às marquises da Halfeld. Eles não sabem, mas nós sabemos: a chuva não tardará. Da janela, enquanto esperamos nossa vez de declamar, observamos o cotidiano: poemas e crônicas costumam nascer assim.  

      A tarde vai entre buzinas, versos e sirenes do SAMU. Na mala restam-me ainda exemplares do meu “Confissões”. De uns tempos para cá parece que virei mascate, ou um daqueles antigos vendedores de enciclopédia: aonde vou, carrego meu livro. O que fazer, pergunto ao céu que, aos poucos, se despe como aquele corpo jovial no meu sonho de ontem...  Não tenho resposta; mas sei que não estou só... Mais cedo alguém lembrou: sonho que se sonha junto é realidade.  A chuva ainda brinca na copa das árvores, nós sonhamos; juntos, como profetizou Raul.  

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo da Confraria dos Poetas

 


segunda-feira, 6 de dezembro de 2021

Em Monte Verde


                No último final de semana, este cronista flanou pelas simpáticas ruas de Monte Verde. Se o leitor não conhece o distrito, vá visitá-lo. Apesar da distância (estará Monte Verde longe do cronista ou o cronista está longe de Monte Verde, eis a questão) sugiro a viagem.

                Cerração caindo no final da tarde, silêncio e brisa. Da sacada com vista para o que restou da Serra da Mantiqueira, o cronista escrevia. Há viajantes que têm por companhia um cão, ou a solidão, ou o caloroso peito da amada... o cronista sempre faz-se acompanhar de um caderno e uma caneta. Quando esquece o caderno, xinga e esbraveja, acaba escrevendo em pedaços de papel higiênico. A caneta nunca esquece, pois em cada mala já fica guardada uma Bic... mas o leitor não quer saber desse papo de bastidores quer, na verdade, saber por quê o cronista empregou o verbo “restou” no início deste parágrafo.

      Satisfaça, então, vossa curiosidade, ó inquieto leitor: nota-se das sacadas e janelas que ali também a vegetação original deu lugar à mata de eucaliptos... ah, e como é silencioso o batalhão de eucaliptos que vela Monte Verde. Apesar disso, o cronista se encantou com os papagaios que vieram tomar o desjejum na sacada: dispersas sobre o parapeito, lascas de mamão e sementes fizeram a alegria das avezinhas. Enquanto isso, o cronista se empanturrava de bolo... ah, como havia bolos nas manhãs: de laranja, coco, maçã, cenoura, chocolate, limão. O cronista, ao escrever, revela suas virtudes e seus – muitos – pecados; um desses é comer bolo. Não engorda de ruim, como já ouviu dizer...

                Os papagaios comiam ruidosamente; não diferiam do povo no refeitório. Longe, dois esquilos subiam e desciam a árvore. O cronista não é botânico, anotou no caderno que se trata de uma conífera... circulou a palavra, ficou de pesquisar porque pareceu-lhe também um pinheiro, mas pode ser também uma araucária... Os esquilos continuaram a brincadeira, o cronista observou e fotografou-os. O sussurro do riacho e a brisa nas pétalas das hortênsias fizeram-no recordar as aulas de geografia.

            Esta crônica deveria ter saído ontem. Contudo, falhas na conexão com a internet não permitiram. Aliás, não houve falhas; na verdade, faltou conexão no hotel. O cronista teve que rebolar para conseguir um mísero sinal para xeretar as redes sociais. Sem acesso à internet, escreveu suas bobajadas sentimentais no fiel caderninho. Aos poucos, vai postá-las.   


 Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...