domingo, 26 de setembro de 2021

Se essa rua fosse minha...

 

        Ao ler o texto de Mouzar Benedito para a Conhece-te de setembro, pensei: antigamente, as pessoas eram mais poéticas – ou tinham mais criatividade – ao nomear os logradouros. Os personagens machadianos, por exemplo, flanavam por ruas de nomes assaz interessantes: Rua da Vala, da Harmonia, da Alfândega, dos Ourives, do Comércio, dos Barbonos, de Mata-Cavalos, do Passeio, da Guarda-Velha, da Ajuda, do Parto e, principalmente, circulavam pela très chic Rua do Ouvidor. Todavia, não só por vias literárias caminha a humanidade. Aqui por estas bandas, temos exemplos da poética popular: Caminho da Vovó, Esquina do Pecado, Tia Velha, Pito Aceso, Vila Aprazível, Vila dos Amores, Capim Cheiroso, Alto da Boa Vista, Rua dos Bois, Água-limpa... Enquanto escrevo, as reminiscências sussurram-me endereços por onde zanzei na meninice: Rua dos Operários, Rua Nova, Praça dos Ferroviários, Sapecado, Xopotó, Bela Vista, Morro do Urubu, Morro do Querosene, Monte Celeste, Quebra Cabo... imaginação não faltava à gente “dos antigamente”.

Porém, veio a burocracia com a sanha de homenagear os poderosos e ilustres... Confesso: invejo aqueles que residem em endereços com nome de “flores, substantivos bons, ritmos, aves ou simplesmente palavras bonitas.” Ah, deve ser tão gracioso subscrever envelopes e lançar, sob nosso nome e do destinatário, Rua das Gardênias, das Borboletas, Alvorada, Vila dos Alfarrabistas, Beco dos Prazeres, Alameda da Sedução. Vejo-me na antessala de um consultório dizendo, com enlevo, à secretária que preenche meu cadastro: moro na Rua das Acácias, na Travessa da Felicidade, no Moro da Esperança, na Ladeira Vá em Paz... se bem que, neste caso, não deve ser muito bom, não: parece antecipar o diagnóstico médico. Na escola, que coisa linda e singela responder pra tia: minha casa fica na Rua das Mangueiras, na Praça Colibri, no Bairro dos Carvalhos, na Avenida dos Pirilampos, no Beco do Sossego, na esquina da Folgança com a Bem Aventurança.

Nestas terras antipoéticas, contudo, as autoridades preferem buscar nos anais da hipocrisia nomes pomposos para batizar os endereços. Daí a enxurrada de generais, coronéis, marechais, capitães, prefeitos, vereadores, governadores, presidentes, doutores e outros títulos piegas. Como diz Mouzar: tem cada canalha “importante”! Nas cidades pequenas – pequenas em território e mentalidade – as autoridades costumam desencavar nomes de gente que ninguém se lembra mais. E não venha o leitor dizer que o povo tem memória curta; na verdade, o povo não se lembra porque, se “tudo passa, tudo passará”, obviamente as pessoas que pouco ou nada fizeram também passarão. Se se enveredar pela História, descobre-se que os homenageados foram mandachuvas, seus parentes e asseclas, que não merecem consideração... é como naquela outra canção: procurando bem todo mundo tem pereba.

Na minha vida quase cigana, já troquei muitas vezes de endereço, mas nunca morei na Rua do Girassol ou na dos Janeleiros, na avenida do Poente, na Vila dos Literatos ou na Travessa Foliã. Ao contrário, todas as ruas onde residi foram batizadas para homenagear ilustres desconhecidos, os quais não tive/tenho o menor prazer em declinar seus nomes. Tristes trópicos onde se perdeu a sutileza até para nomear o endereço onde arrastamos o viver.

Feliz mesmo é o Alceu: em “Pelas ruas que andei” decanta os lugares que percorreu para encontrar inspiração. Infelizmente, sem vias com belos nomes e sem uma musa que valha uma caminhada, passo os dias na varanda à espera do sol. E, à noite, rogo aos santos que não me façam mudar de novo: já cansei de arrumar malas, encaixotar livros, montar e desmontar a mobília, carregar trouxa de roupas. Oxalá daqui eu saia apenas para o São João Batista; e não pense o leitor que me refiro à avenida: refiro-me ao cemitério que, por sinal, fica em uma rua cujo nome homenageia certo político... Ai ai. Se essa rua fosse minha, eu mandava rebatizar.

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor 

domingo, 12 de setembro de 2021

BORBOLETAS NO OUTONO

 

         Não sei se aparecem borboletas no outono. Sinceramente, não entendo muito de borboletas. Só sei que são, na sua maioria, bonitas. Algumas chegam a ser lindíssimas como aquela que encontrei na escada da garagem, moribunda, na véspera do Natal... Borboletas são insetos coloridos, silenciosos e voam; fora isso, não sei nadica de nada acerca das ditas cujas. Apesar de minha ignorância borboletífera, vou vivendo.

         Em criança, tive um livro sobre borboletas. Na capa, borboletas desenhadas em tons multicoloridos sobre o fundo verde claro. Lendo-o, aprendi que são cientificamente chamadas de lepidópteros. E que seus nomes se escrevem em latim e itálico. Com o passar do tempo, para minha decepção, descobri que todos os animais, incluindo-se os insetos e os homens, têm os nomes grafados assim: é uma convenção. Então, das borboletas continuei a saber pouco. Conhecimento superficial, ironizava a professora de História Medieval toda vez que nos entregava as avaliações corrigidas.

         Voltando ao livro que coloriu minha meninice, lembro que as páginas, em papel tipo revista, traziam ilustrações de lepidópteros de várias partes do mundo. Recordo nitidamente os desenhos, recordo a textura das páginas, a disposição dos textos sempre abaixo das gravuras, a fonte das letras, e nada mais. O tempo se encarregou de sumir com aquele livro, apagou as informações que memorizei. Ah, o tempo é como uma borracha... antes fosse como as borboletas, que revoluteiam, somem, retornam, sempre embelezam.

         Uma vez que enveredei pela seara das memórias, veio agora à mente o dia que topei com o coletivo de borboletas. Eram os tempos do primário e eu me deslumbrava com as palavras escritas em giz colorido pela tia... aquela palavra soava tão diferente, tão bonita, incrível mesmo. Decorar a lista de substantivos que era, até então, muito chato, ficou agradável depois que as borboletas, em bando, esvoaçaram diante de meus óculos. Por muitos e muitos dias o panapaná revoou, tingindo meu caderno, alegrando-me as tardes.

         Mas, como eu ia dizendo, acho que borboletas não aparecem no outono. Ou, se aparecem, certamente evitam zanzar por esta cidade desnuda de árvores e flores. Se o fazem, estão certíssimas: aqui não está mesmo muito agradável. Hoje, no entanto, apareceu uma; pousou próximo à janela. Pequitita, toda cinzenta – feinha, feinha, a pobre. Como um urutau, camuflou-se à tintura da parede; ficou paradinha ouvindo o lero-lero burocrático. Acho até que me analisava: eu comia biscoitos e esperava o sistema que, mais uma vez, estava indisponível. A feinha ficou longo tempo ali até que, provavelmente farta de tudo aquilo, bateu as asas, foi para Deus sabe onde... brincar de viver. E me deixou com minhas teorias e regras processuais, atulhado em prazos, farto de esperar o regresso do sistema.     

 

*escrito em 26/05/2021 

 


 

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

quinta-feira, 9 de setembro de 2021

Viagens


          O dia passa, abafado. Não reclamo: a brisa, vez em quando, vem pela varanda, brinca nos cactos e suculentas, bole nas páginas do livro que tenho nas mãos. Um amigo me disse outro dia: não curto livros muito volumosos, pesam-me na mão; por isso, aderi aos livros digitais. Creio, contudo, que se ele estivesse excursionando comigo pela Ilha Misteriosa do Júlio Verne, não diria isso. Ou diria, mas entenderia que o prazer da viagem compensa o peso da bagagem. Não discordo que o livro é pesado (são mais de quinhentas páginas) e que a capa dura atrapalha um pouco o manuseio... Mas ter o livro nas mãos é tão prazeroso como sorvete numa tarde de janeiro.

        Na varanda vizinha conversam sobre cifras e retração do mercado imobiliário; acho que pretendem colocar o apartamento à venda. Na rua, o trânsito continua o mesmo (nem parece que o preço dos combustíveis toca a estratosfera); os rumores da greve dos caminhoneiros feneceu como fogo de palha; um cachorrinho vai pela calçada, provavelmente foragido de algum quintal a julgar pela cara de espanto com que olha os veículos; o carro de som passa anunciando mais uma morte, é inevitável pensar: a mesma voz que convida para velórios convida para festejos na praça... A vida é extraordinária.  

Continuo viajando pelas terras da distante ilha Lincoln... Já estive em duas ilhas, mas estavam habitadas – demasiadamente habitadas – portanto, não senti o mesmo prazer que sentiram os colonos da história de Verne. Estou nas derradeiras páginas. Surpreso com a imaginação do escritor e com o aparecimento de um personagem que habitou outro de seus livros, o célebre Capitão Nemo. Se escrito nestes tempos de séries televisivas, esse episódio seria chamado de crossover... Gosto de leituras assim: rocambolescas, repletas de aventuras mirabolantes e, apesar dos finais previsíveis, me fazem embarcar, de corpo e alma, na viagem.

Um professor, a pouco tempo, me disse: Verne é leitura infanto-juvenil, superada pelas grandes obras literárias, sobretudo, pelos russos. Acho que a grande frustração desse professor é não ter nascido na Rússia do século XIX... Se eu fosse sutil e educado, lhe diria: sem problema, curto esse tipo de livro, mas seguirei seu conselho e lerei Tchekov e seus pares russos; se eu fosse romântico como o Rei Roberto, cantaria um verso para ele: não me importa, eu gosto mesmo assim... Mas, como não sou nada disso, brado: e daí, o tempo é meu, o dinheiro que pagou o livro é meu, leio o que quero, ninguém tem nada a ver com isso e, para seu governo, professor, vou reler pela quinta vez O Alquimista... certamente o nobre mestre, ao meu ouvir, arrancaria os últimos fios de cabelo da cabeça porque ele odeia, sim a palavra é essa, odeia o Paulo Coelho. Acho que meu professor tem inveja do Paulo, cujos livros são lidos e relidos ao redor do globo, enquanto ele não consegue vender seus romances.

Ah, quem dera viver em uma ilha - nem precisava ser misteriosa como a do Verne, não. Poderia ser como aquela de Robinson Crusoé. Ou aquela que o Stevenson disse que continha tesouros... se bem que, nesse caso, tinha piratas também e aí fica perigoso “demais da conta”. Viver em uma ilha, longe de pseudo-intelectuais, de rumores de greve, de desgovernos e do falatório geral da urbe deve ser muito bom. Atento à brisa que remexe as folhas das palmeiras raphis e também bole com meus pés, enveredo pela última página do livro. Feliz como o menino que ganhou dez em matemática.

Texto: Raphael Cerqueira Silva

foto: acervo do autor
 

sábado, 4 de setembro de 2021

1996

 

 

Partiu o trem

em 96.

Pensei: não o verei

outra vez.

Partiu o trem

viagem anunciada:

na plataforma

tempo de debandada.

Partiu o trem

para onde?

O vento responde

onde onde onde 

 


 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: internet (grupo fotos antigas de São Geraldo, no Facebook) 

sexta-feira, 3 de setembro de 2021

Crônica dos tempos do Castelo


Um ventinho frio entra no quarto, me obriga a pausar a leitura, levantar, fechar a janela. O som ritmado da panela de pressão percorre a casa, cruza com as velhas fotografias emolduradas no corredor e, agora que a janela está fechada, chega-me mais nítido. O celular na cama, sedutor como a nudez de uma ninfeta, me chama – aliás, me intima. Quem sou eu para não acatar os rogos da Senhora Dona Internet… nessas horas é justo, é muito justo que o livro espere um pouco mais.

Passeio pelo feed do Instagram, essa cornucópia de cores e jovialidades e sensações e desejos da contemporaneidade que, às vezes, traz notícias tristes. Como a que vejo agora: faleceu Sérgio Mamberti. Seu rosto estampado na tela imediatamente me evoca meus tempos de menino; mais precisamente as tardes em que eu suspendia as brincadeiras na rua para assistir Castelo Rá-Tim-Bum. E esperava, ansioso, o relógio anunciar: o Dr. Victor vai chegar, o Dr. Victor está chegando, o Dr. Victor chegou… as portas, então, se abriam e adentrava o bonachão tio Victor, de óculos, terno, gravata borboleta e chapéu inconfundíveis. Contudo, bom mesmo era quando ele despia o sorriso e invocava “raios e trovões!”; seu brado ecoava nos corredores do castelo, silenciando até os passarinhos na velha árvore. Saudosos tempos…

Lembro-me que, antes da antena parabólica chegar lá em casa, eu conhecia o programa da tevê e seus personagens apenas através dos colegas que, no recreio, comentavam o episódio do dia anterior. E eu ficava imaginando… naquele tempo se imaginava muito - muito mais que hoje – e sonhava que um dia teria uma antena capaz de captar os sinais da Cultura. Anos depois, em Ubá, no antigo cinema do calçadão da São José, assisti ao filme do Castelo… recordo que tio Victor aparecia diferente, com os cabelos longos, transitando por cenários sombrios que em nada lembravam o programa da televisão... Eram outros tempos.

O interfone rompe minhas reminiscências matutinas. Arrasto-me à sala, carregado de nostalgia. Na cozinha, a panela ainda chia; da escola vem um “parabéns pra você” cantado por vozes femininas; e, da rua, um vrum vrum irritante de carros e motos que não me deixa ouvir o homem no interfone. 

 




 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: internet (Cassio Scapin e Sérgio Mamberti em cena do Castelo Rá-Tim-Bum) 

Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...