O dia passa, abafado. Não reclamo: a brisa, vez em quando, vem pela varanda, brinca nos cactos e suculentas, bole nas páginas do livro que tenho nas mãos. Um amigo me disse outro dia: não curto livros muito volumosos, pesam-me na mão; por isso, aderi aos livros digitais. Creio, contudo, que se ele estivesse excursionando comigo pela Ilha Misteriosa do Júlio Verne, não diria isso. Ou diria, mas entenderia que o prazer da viagem compensa o peso da bagagem. Não discordo que o livro é pesado (são mais de quinhentas páginas) e que a capa dura atrapalha um pouco o manuseio... Mas ter o livro nas mãos é tão prazeroso como sorvete numa tarde de janeiro.
Na varanda vizinha conversam sobre cifras e retração do mercado imobiliário; acho que pretendem colocar o apartamento à venda. Na rua, o trânsito continua o mesmo (nem parece que o preço dos combustíveis toca a estratosfera); os rumores da greve dos caminhoneiros feneceu como fogo de palha; um cachorrinho vai pela calçada, provavelmente foragido de algum quintal a julgar pela cara de espanto com que olha os veículos; o carro de som passa anunciando mais uma morte, é inevitável pensar: a mesma voz que convida para velórios convida para festejos na praça... A vida é extraordinária.
Continuo viajando pelas terras da distante ilha Lincoln... Já estive em duas ilhas, mas estavam habitadas – demasiadamente habitadas – portanto, não senti o mesmo prazer que sentiram os colonos da história de Verne. Estou nas derradeiras páginas. Surpreso com a imaginação do escritor e com o aparecimento de um personagem que habitou outro de seus livros, o célebre Capitão Nemo. Se escrito nestes tempos de séries televisivas, esse episódio seria chamado de crossover... Gosto de leituras assim: rocambolescas, repletas de aventuras mirabolantes e, apesar dos finais previsíveis, me fazem embarcar, de corpo e alma, na viagem.
Um professor, a pouco tempo, me disse: Verne é leitura infanto-juvenil, superada pelas grandes obras literárias, sobretudo, pelos russos. Acho que a grande frustração desse professor é não ter nascido na Rússia do século XIX... Se eu fosse sutil e educado, lhe diria: sem problema, curto esse tipo de livro, mas seguirei seu conselho e lerei Tchekov e seus pares russos; se eu fosse romântico como o Rei Roberto, cantaria um verso para ele: não me importa, eu gosto mesmo assim... Mas, como não sou nada disso, brado: e daí, o tempo é meu, o dinheiro que pagou o livro é meu, leio o que quero, ninguém tem nada a ver com isso e, para seu governo, professor, vou reler pela quinta vez O Alquimista... certamente o nobre mestre, ao meu ouvir, arrancaria os últimos fios de cabelo da cabeça porque ele odeia, sim a palavra é essa, odeia o Paulo Coelho. Acho que meu professor tem inveja do Paulo, cujos livros são lidos e relidos ao redor do globo, enquanto ele não consegue vender seus romances.
Ah, quem dera viver em uma ilha - nem precisava ser misteriosa como a do Verne, não. Poderia ser como aquela de Robinson Crusoé. Ou aquela que o Stevenson disse que continha tesouros... se bem que, nesse caso, tinha piratas também e aí fica perigoso “demais da conta”. Viver em uma ilha, longe de pseudo-intelectuais, de rumores de greve, de desgovernos e do falatório geral da urbe deve ser muito bom. Atento à brisa que remexe as folhas das palmeiras raphis e também bole com meus pés, enveredo pela última página do livro. Feliz como o menino que ganhou dez em matemática.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
foto: acervo do autor
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