sexta-feira, 24 de junho de 2022

A solidão de Drummond


A solidão de Drummond

à beira mar, 

à beira do caos 


sem rimas e sonhos 


é a solidão da vida 

arrastada na lama,

incinerada à sombra da noite


no silêncio dos anônimos. 




Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor 

domingo, 19 de junho de 2022

Check in e check out


Desci para o check out. Argentinos emburrados falavam e gesticulavam; debruçado no balcão, um deles debatia com o recepcionista. Olhei o relógio na parede: tempo de sobra; sentei, puxei a Veja velha largada ao lado do jarro. Os hermanos falavam em uníssono; eu pouco entendia; aliás, a julgar pelo olhar embasbacado do atendente, acho que ele tampouco. O infeliz não conseguia dizer um mísero verbo noutro idioma, apontava a tela do computador tentando se fazer entender por gestos... diacho de hotel mais fuleiro, pensei, nem pra contratar um funcionário que enrole no portunhol. Lembrei uma amiga que, noutro dia, dissera: a cada dia fica mais difícil encontrar mão de obra capacitada neste país... 

       Virei as páginas amarelas: detesto ler entrevistas. Súbito, o sujeito com pinta de líder acenou, o grupo fez silêncio. Do restaurante, vinham os versos: Daniel is travelling tonight on a plane... Pelo que entendi, o grupo pagara as reservas a uma agência, que não repassou os valores para o hotel. Os argentinos, ainda emburrados, recolheram as malas e mochilas, saíram enfileirados como escoteiros; pararam ao lado da banca de jornal - mais uma que não sobreviveu aos tempos pandêmicos, a julgar pelo #FORABOLSONARO pichado de vermelho em sua lateral e os anúncios de cartomantes, manicures, motoboys, colados de cima a baixo. 

O rapaz sentado à minha frente levantou, aproximou-se do balcão. Cabelo à escovinha, mochila pendurada no ombro esquerdo, camiseta com o rosto de Lennon, bermuda e havaianas. Coçou o rosto mal barbeado, esperou atendimento. O funcionário desligou o telefone: pois não... Nunca entendi direito esta expressão; ao me dirigir aos jurisdicionados lá na secretaria, quase sempre a uso, e quase sempre me sinto meio ridículo... O atendente gritou: trezentos e cinquenta. Será que o rapaz é surdo, pensei; interrompi a resenha de A noite da espera...  No, no entiendo, ele disse num tom tímido, como se se desculpasse. Com a mão no mouse, o atendente gritou: três-cinco-zero. No, no entiendo. 

         Outro hermano, perguntei ao jarro, embora o sotaque e o rapaz fossem bem diferentes dos argentinos que, ainda na calçada, falavam e gesticulavam. Esbelto, vinte e pouquinhos anos, seu rosto me lembrou o ator de uma série que eu assistira na Netflix, Alejandro sei-lá-das-quantas. Os argentinos, ao contrário, eram homens de meia idade, barrigudos, a maioria com bonés horrendos, mais pareciam apostadores de rinha que turistas; um deles me fez lembrar o Maradona em seus piores momentos... O atendente, num rompante de sagacidade, sacou o celular do bolso, digitou os algarismos; o rapaz encarou a tela, deve ter calculado mentalmente o câmbio, fez um joinha... Deus salve o Facebook, que globalizou o sinal de joinha. Voltei à resenha. 

       Duas horas, o atendente gritou, mostrando os dedos. No, no entiendo. Duas horas, agora é meio dia e meia, check in só duas horas... Uai, se o cara não entendeu “duas horas”, como entenderá o resto da frase, indaguei à foto do Hatoum no canto da página. Do restaurante, vinham os acordes finais de Il Mondo; dois rapazes, que há tempos trocavam afagos, se beijaram com a volúpia que só a juventude – e o fato de se estar noutras terras - permite. 

       O gringo voltou à poltrona, larguei a revista, fui ao balcão. Pois não. Fecha pra mim. O atendente clicou no mouse: teve consumo, senhor. Sim, uma água. Diária e água, 358. No crédito, estendi o cartão. Ok, senhor. Ainda bem que não gritou. No quadro pintado a óleo, um gato abstrato demais pro meu gosto mirava o Corcovado. O comprovante custou a sair. Com o pé, o rapaz acompanhava a música de Eros Ramazzotti. Novinho e de bom gosto, pensei, recolhendo minha mala. 

  Caminhei para o ponto de táxi. O vento outonal brincava nas árvores. Não vi mais os argentinos. Cose Della Vita, fiz coro à música que vinha do restaurante. 



Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

DIA DE FESTA


      "Hoje vai ser uma festa/bolo e guaraná, muito doce pra você..” Festejar o quê, indaga o leitor que, eu sei, não é dado a festas e acha que “tudo vai mal/ tudo, tudo, tudo, tudo” e não há motivos para festejos... Apesar de tudo, pessimista leitor, tenho um motivo para comemorar: meu menino faz cinco aninhos. Ah, a leitora não sabia que tenho um filho? Sim, e se chama Processinho; quer dizer, oficialmente seu nome é 00047758.2017.7.36.0912... Não se horrorize, suscetível leitora, não fomos eu e a mãe dele que o batizamos assim: foi o Sistema, esse todo poderoso Ser que nos governa a todos, submetendo-nos à sua força tirânica e nos subtraindo, dia a dia, a humanidade... Mas isso é papo pra outro momento. Hoje é dia de festa!

Meu menino é peralta, nunca fica quieto no seu cantinho: salta de mesa em mesa, passeia do gabinete pra secretaria, da secretaria – imagine só – já foi até à capital conhecer os luxuosos gabinetes da Cidade Administrativa... Certa vez, isso antes de se enveredar pelas alterosas, Processinho visitou a ilustre sala da Defensoria Pública... ih, isso causou um mal estar tremendo: a mãe dele, advogada cricri lá de Beagá, não gostou, me cobrou explicações; com as mãos na cintura, os olhos estalando  de ira: que que meu filho foi fazer no gabinete da defensora, hein? Fui colocado contra a parede; gaguejei, como de costume, tentei explicar, me embananei, não convenci: a boa de oratória e argumentação da família sempre foi ela... Aí, apelei: mas quando o Processinho ficou parado na vara de precatórias aí de Beagá, certamente no escaninho de algum gostosão bombadinho, você não deu um pio, né... Brigamos, trocamos ofensas pelo zap-zap. Tem sido assim desde que nosso bebê saiu da sala da distribuição, essa chocadeira de burocracias: ele não anda, eu reclamava; ela, vai lá e dá um jeitinho; eu, mas como se você sabe que meu santo não bate com o daquela gente; ela, se vira, dá seus pulos... Não pulei, ela também pouco fez, chegou “a hora de apagar a velinha/vamos cantar aquela musiquinha...” 

Desabafei com um amigo sobre a saga que é criar um filho nestes tempos burocráticos. Meu amigo é advogado militante há mais de vinte anos, sabe bem como é a dolce e bella vita forense. Estufou o peito, ajeitou a gravata, citou Rui Barbosa, algo sobre justiça tardia é arremedo de justiça... Meu amigo, um erudito, lê os filósofos e os clássicos da literatura e do direito, conhece citações até em latim. Na época da faculdade, todos o procurávamos para fazer trabalhos e artigos juntos: afinal, ele era o único aluno em todo o campus que lia (e compreendia) Pontes de Miranda, Caio Mário, Ihering, Beccaria, Canotilho... pena que puxaram seu tapete naquele concurso de 199*: teria sido um brilhante magistrado, melhor que muitos que estão por aí usando a toga para esconder hipocrisias e podridão, ou arrotando sapiências só porque visitaram a Índia, o Nepal, o Butão... 

     Na porta da Universal, meu amigo se empolgou; além da Águia de Haia, citou Cícero e Marco Aurélio, Platão e Aquino, Nietzsche e Kierkegaard. O pastor se aproximou, perguntou se precisávamos de alguma ajuda. Como eu, deve ter entendido lhufas daquela pregação que mais parecia anunciar o juízo final. Meu amigo encarou o pastor, me pegou pelo braço, atravessamos a rua. Na porta de um sobrado que já conheceu dias melhores, discorreu sobre a travessia de Guimarães Rosa, recordou as lições do Paulo Nader, voltou ao Rui que, segundo entendi, disse que chega um momento em que o homem desanima da justiça de tanto ver crescer a injustiça. 

   À janela, uma dona aplaudiu; meu amigo se distraiu agradecendo-a, aproveitei e segui meu caminho; bem menos erudito que ele, popular com muito orgulho como já o disse noutro texto, saí cantarolando o Parabéns da Xuxa, levando na sacola a velinha azul e os brigadeiros e moranguinhos para enfeitar a mesa do níver do meu filhão. Olhei o relógio da São João Batista: o bolo pegarei depois do expediente, pensei, e subi a ladeira. 





Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor 

domingo, 5 de junho de 2022

REPÓRTER MIRIM


— Sol ou chuva? 

— Chuva e frio. 

— Não pode, padrinho. Só sol ou só chuva. 

— Só chuva.

— Mulher bonita? 

— Sua mãe.

— Ih, o pai não vai gostar de ler isso... 

— Ele vai ler? 

— Uai, padrinho, é jornal que eu tô fazendo. Todo mundo vai ler. 

— Todo mundo, quem? 

— A tia da escola, a mãe, o pai, o vô. E todo mundo que parar pra ler as entrevistas coladas no mural da escola.  

— Então, apaga. Escreve Yoná Magalhães. 

— Quem? 

— Uma atriz já falecida.

— Ô, padrinho, tem que ser gente viva... Posso botar o nome da madrinha?

— Não. 

— Por quê?

— Tô brigado com ela. 

— Por quê? 

— Essa pergunta está na entrevista? 

— Não. 

— Avante!

— Como?

— Próxima pergunta, menino.

— O senhor ainda não disse o nome. 

— Que nome? 

— Da mulher bonita. 

— Ah, bota aí Vera Fisher, Luíza Brunet, Maitê Proença... Qualquer nome serve. 

— Padrinho, a entrevista é séria. 

— Paola Oliveira, pronto. 

— Homem charmoso? 

— Uai, bonito não? 

— A tia disse pra falar charmoso, se não os entrevistados não vão responder. 

— Por quê? 

— Porque homem não acha homem bonito, né. 

— É... Escreve Cauã Reymond. 

— Desenho animado? 

— Papa-Léguas.

— Desenho velho não vale.

— Aquele que você fez na parede, então.

— Não fiz desenho animado, fiz arte. A tia mandou a gente imitar o Kobra. 

— E por que não fizeram arte na parede dela? 

— Porque ela mora longe. 

— Ah, e os “artistas” não podem andar? 

— Vou escrever o quê, hein? 

— Ah, bota Pica-Pau. 

— Cantor preferido? 

— O rei Roberto Carlos.

— Posso colocar essa resposta na outra pergunta? 

— Por quê? 

— Porque a outra pergunta é: se você fosse morar num reino encantado, seria o reino de quem?

— Esse rei que falei é rei da música, não de um reino...

— Ih, padrinho, não complica. É papo reto, sacou?

— Como?

— Super-herói preferido? 

— Superhomem. 

— Ô, padrinho, é Superman. Mania de velho falar errado.  Livro preferido? 

— Não sou muito de ler, não. 

— Fala qualquer um, menos a Bíblia. 

— Por quê? 

— Porque todos os entrevistados responderam esse. 

— Quem você já entrevistou? 

— Não digo. 

— Ora, por quê? 

— Porque um repórter guarda o segredo das fontes. 

— Quem te disse isso, menino? 

— A tia da escola. 

— Essa tia não tem nada melhor pra ensinar, não? 

— Por quê? 

— No meu tempo, a gente tinha tarefa de aritmética, fazia conta no ábaco, decorava as capitais, copiava texto no caderno brochurão...

— O velho de novo.

— Olha aqui, seu moleque...

— Calma, padrinho, é só o nome dum livro que lembrei agora. 

— Quem escreveu essa marmota? 

— Pedro Paulo Pereira do Prado Penteado. 

— Por isso não gosto de ler. 

— Artista? 

— Pintor, escultor, compositor?

— Qualquer um. 

— Da Vinci. 

— Vinte, não. É um nome só.  

— Leonardo da Vinci. 

— Ator preferido? 

— Vivo ou morto? 

— Vivo, padrinho, vivo. Se não ninguém da escola vai saber quem é. 

— Tony Ramos. 

— É estrangeiro? 

— Não.

— Quero estrangeiro. 

— Por quê? 

— Porque é chique escrever nome estrangeiro. 

— E você sabe escrever estrangeiro?  

— E-s-t-r-a-n... hum, é com g ou j? 

— Te peguei. Eu quis dizer escrever o nome do ator estrangeiro. 

— O padrinho também tem dúvida? 

— Arnold Schwarzenegger. 

— Não... Estrangeiro é com g ou j? 

— Próxima pergunta, vai. 

— Não sabe, não sabe.

— Isso é trabalho de Português, por acaso? 

— Já foi em Portugal? 

— Não, por quê? 

— Tem uma pergunta aqui que é: qual país já visitou? 

— Paraguai. 

— Foi fazer o quê lá? 

— A tia quer saber isso também? 

— O repórter vai além da pauta do editor.

— Sei... Essa entrevista não tem fim? 

— Tem, tá acabando. Foi fazer o quê, lá? 

— Lá onde, menino? 

— No Paraguai. 

— Fui comprar cigarro, aparelho de som, televisão e videocassete. 

— Video o quê? 

— Um aparelho que a gente usava pra ver filme. 

— Não tinha dessas coisas aqui na cidade? 

— Eu revendia no consórcio.

— Como assim? 

— Próxima pergunta. 

— Atriz preferida? 

— Julia Roberts. 

— Pode ser brasileira mesmo. 

— Ô, menino, decide. 

— Escritor? 

— Paulo Coelho. 

— O padrinho já leu ele? 

— Não, mas minha filha vive lendo. 

— Música preferida? 

— Tente outra vez. 

— É sério, padrinho. Música?  

— Falando sério. 

— Ô, mãe, o padrinho tá me trolando! 

— Vamo embora, filho. 

— Falta só uma pergunta, mãe.

— Anda, seu padrinho quer ver a novela.  

— Se um ET descesse no quintal e dissesse: faça-me um pedido, o que você pediria?

— Que levasse todos os meninos perguntadores pro espaço. 

— Ô, mãe, o padrinho tá copiando a resposta do vô! 




Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor


Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...