domingo, 19 de junho de 2022

Check in e check out


Desci para o check out. Argentinos emburrados falavam e gesticulavam; debruçado no balcão, um deles debatia com o recepcionista. Olhei o relógio na parede: tempo de sobra; sentei, puxei a Veja velha largada ao lado do jarro. Os hermanos falavam em uníssono; eu pouco entendia; aliás, a julgar pelo olhar embasbacado do atendente, acho que ele tampouco. O infeliz não conseguia dizer um mísero verbo noutro idioma, apontava a tela do computador tentando se fazer entender por gestos... diacho de hotel mais fuleiro, pensei, nem pra contratar um funcionário que enrole no portunhol. Lembrei uma amiga que, noutro dia, dissera: a cada dia fica mais difícil encontrar mão de obra capacitada neste país... 

       Virei as páginas amarelas: detesto ler entrevistas. Súbito, o sujeito com pinta de líder acenou, o grupo fez silêncio. Do restaurante, vinham os versos: Daniel is travelling tonight on a plane... Pelo que entendi, o grupo pagara as reservas a uma agência, que não repassou os valores para o hotel. Os argentinos, ainda emburrados, recolheram as malas e mochilas, saíram enfileirados como escoteiros; pararam ao lado da banca de jornal - mais uma que não sobreviveu aos tempos pandêmicos, a julgar pelo #FORABOLSONARO pichado de vermelho em sua lateral e os anúncios de cartomantes, manicures, motoboys, colados de cima a baixo. 

O rapaz sentado à minha frente levantou, aproximou-se do balcão. Cabelo à escovinha, mochila pendurada no ombro esquerdo, camiseta com o rosto de Lennon, bermuda e havaianas. Coçou o rosto mal barbeado, esperou atendimento. O funcionário desligou o telefone: pois não... Nunca entendi direito esta expressão; ao me dirigir aos jurisdicionados lá na secretaria, quase sempre a uso, e quase sempre me sinto meio ridículo... O atendente gritou: trezentos e cinquenta. Será que o rapaz é surdo, pensei; interrompi a resenha de A noite da espera...  No, no entiendo, ele disse num tom tímido, como se se desculpasse. Com a mão no mouse, o atendente gritou: três-cinco-zero. No, no entiendo. 

         Outro hermano, perguntei ao jarro, embora o sotaque e o rapaz fossem bem diferentes dos argentinos que, ainda na calçada, falavam e gesticulavam. Esbelto, vinte e pouquinhos anos, seu rosto me lembrou o ator de uma série que eu assistira na Netflix, Alejandro sei-lá-das-quantas. Os argentinos, ao contrário, eram homens de meia idade, barrigudos, a maioria com bonés horrendos, mais pareciam apostadores de rinha que turistas; um deles me fez lembrar o Maradona em seus piores momentos... O atendente, num rompante de sagacidade, sacou o celular do bolso, digitou os algarismos; o rapaz encarou a tela, deve ter calculado mentalmente o câmbio, fez um joinha... Deus salve o Facebook, que globalizou o sinal de joinha. Voltei à resenha. 

       Duas horas, o atendente gritou, mostrando os dedos. No, no entiendo. Duas horas, agora é meio dia e meia, check in só duas horas... Uai, se o cara não entendeu “duas horas”, como entenderá o resto da frase, indaguei à foto do Hatoum no canto da página. Do restaurante, vinham os acordes finais de Il Mondo; dois rapazes, que há tempos trocavam afagos, se beijaram com a volúpia que só a juventude – e o fato de se estar noutras terras - permite. 

       O gringo voltou à poltrona, larguei a revista, fui ao balcão. Pois não. Fecha pra mim. O atendente clicou no mouse: teve consumo, senhor. Sim, uma água. Diária e água, 358. No crédito, estendi o cartão. Ok, senhor. Ainda bem que não gritou. No quadro pintado a óleo, um gato abstrato demais pro meu gosto mirava o Corcovado. O comprovante custou a sair. Com o pé, o rapaz acompanhava a música de Eros Ramazzotti. Novinho e de bom gosto, pensei, recolhendo minha mala. 

  Caminhei para o ponto de táxi. O vento outonal brincava nas árvores. Não vi mais os argentinos. Cose Della Vita, fiz coro à música que vinha do restaurante. 



Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor 

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