sábado, 29 de outubro de 2022

A ira de Sandovalino

         Vou pela avenida, fones nos ouvidos, cantando em dueto com Cássia Eller. (Depois da pandemia, larguei mão de ser bobo, passei a cantar na rua, no trabalho, em qualquer canto... sem me importar com o que pensam de mim, e sem medo de ser feliz). Mas, como eu dizia, lá vou eu pela avenida; passos firmes, sinto o frescor da manhã primaveril roçar-me o rosto. Súbito, alguém grita: “Ei, ei, coisinha!”

A princípio, não olho, afinal, não sou “coisinha”. A pessoa insiste, parece irritada: “Coisinha, ei, peraí!” Digo aos meus botões (pensando bem, não há botões no meu traje de academia mas, para fins literários, deixo a expressão): deve ser comigo. Olho.

Sandovalino me acena, esperando uma brecha para atravessar. Como não reconheci sua voz? Essa música deve estar muito alta, resmungo, baixando o volume. Encostado na mureta da ponte, eu o aguardo. O short jeans, justo e curto, deixa seus gambitos à mostra; na camiseta verde-amarela, sob a carantonha do Imbrochável, o asqueroso lema: Deus, Pátria, Família.

O ônibus passa, Sandovalino atravessa; no rosto, um misto de fúria e desencanto. Mais uma vez seu namorado saiu de casa, comento para meus botões imaginários.

Sandovalino se aproxima, dedo em riste, a outra mão na cintura fina. O que será que esse cara chato quer comigo?, me pergunto, baixando ainda mais o volume do celular.

- Olha aqui, tô achando RI-DÌ-CU-LAS suas postagens no Insta. Que decepção, menino, que decepção! Eu fazia outra imagem de você: um bofe culto, que vive lendo e fez não sei quantas faculdades, que publicou livro... eu até comprei seu livro... agora vem declarar voto naquele ladrão condenado pela justiça. Nossa, vi suas postagens e fiquei chocado. Ainda ontem comentei lá no meu serviço: tô passado, decepcionado mesmo.

Sandovalino fala sem tomar fôlego. A saraivada de palavras, no entanto, não me impede de recordar algumas declarações atribuídas pela mídia ao seu candidato: “O filho começa a ficar assim meio gayzinho, leva um coro, ele muda o comportamento dele”, “Moro num condomínio, de repente vai um casal homossexual morar do meu lado. Isso vai desvalorizar minha casa!”... Sandovalino continua falando, lembro-me outras frases, inclusive aquela famosa: “menino veste azul e menina veste rosa” dita pela ministra-que-vê-Jesus-na- goiabeira. Sandovalino fala cuspindo feito o Frajola, olho a foto estampada em sua camiseta, me pergunto: não lê jornal, não vê televisão? Decido não discutir: como dizia minha professora de História Antiga, é cegueira mental.

- My God, eu não sabia que você era petralha... eu tenho ranço dessa gente. Por isso, eu peguei seu livro e rasguei em mil pedacinhos; fiz que nem a Sandra de Sá: joguei fora no lixo! E depois taquei fogo, pra não restar nem uma vírgula, nem um ponto daquele lero-lero comunista.

Sorrio com sarcasmo. Sandovalino bufa e, antes que me empurre pela mureta, sigo meu caminho. Ele grita, me acusa de não ter argumentos, retruco: “Minhas postagens falam por mim. Tchau, querido!” Ele nota, claro, a ironia.

- CAN-CE-LEI você! Tá amarrado que eu vou continuar te seguindo. Não sigo comunistas, apoiadores de ex presidiário. Meu presidente será reeleito no domingo e, em nome de Jesus, vai mandar vocês todos pra Cuba, pro paredão, pro diabo que os parta.

Com o indicador e o polegar, faço-lhe o “L”; aumento o volume, vou caminhando e cantando: “O que está acontecendo?/O mundo está ao contrário e ninguém reparou/O que está acontecendo? Eu estava em paz quando você chegou”.

Em casa, tiro a roupa suada. Antes de procurar o chuveiro, checo as redes sociais: perdi mais alguns seguidores. Leio os novos comentários: ataques de direitistas radicais, mais ofensas e, entre tantas baboseiras, um comentário de Sandovalino na minha postagem mais recente: um 22 seguido de um monte de bandeirinhas do Brasil.

Apago ou não apago, eis a questão. Olho as maritacas que me olham dependuradas nas telhas, decido: apago. Faço como aquela santarrona lá da repartição, que anteontem deletou meu link no grupo do WhatsApp. Faxina feita, posso tomar meu banho sossegado. 

 


Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

domingo, 23 de outubro de 2022

Ainda não sei

 

Ainda não sei

No banco da praça, o Professor Gê está sentado como O Pensador do Rodin. Cumprimento-o, não me responde. Estranho, não é de ficar acabrunhado assim... dou meia-volta, sento-me ao seu lado: afinal, ele me ajudou tantas vezes, não só quando fui seu aluno mas, e principalmente, quando comecei a lecionar. A fim de lhe desanuviar o cenho, pergunto: que se passa. Era desse jeito que nos abordava em sala de aula ao notar que algo nos incomodava.

O Professor Gê aponta a bandeira do outro lado da rua:

“É um absurdo, para não dizer uma afronta, o dono dessa padaria hastear a bandeira em uma conjuntura dessas... vê-se, claramente: também debandou para o lado de lá.”

“Professor”, digo-lhe, “a bandeira é um símbolo nacional, pode – e, penso eu, deve - ser hasteada sempre, em qualquer ocasião.”

“Meu caro, você é um rapaz inteligente, portanto, não venha com esse discursinho hipócrita, fingindo uma neutralidade que, eu sei, não é do seu feitio.”

O Professor Gê assume a postura anterior. Insisto:

“Também não dá para dizer que a bandeira foi colocada ali pelo dono da padaria. Olha, o mastro está fixado no muro e, ali do lado, funciona uma repartição pública.”

“Suponhamos, meu caro, que a bandeira foi hasteada por alguém do funcionalismo: ainda assim me incomoda. Sabemos que, neste momento, os fascistóides que nos desgovernam se apropriaram da nossa bandeira para vender a falsa imagem de que são patriotas... Você sabe disso.”

“Sim, eu sei, professor, e me sinto igualmente incomodado. Mas, não me surpreendo com essa bandeira aí há uma semana das eleições, afinal, sabemos de que lado a política local está... Lá no meu prédio está a maior quizumba: o síndico não aceita bandeiras nas sacadas e janelas, os condôminos penduram assim mesmo... Agora, me explica uma coisa: outro dia você comentou que não estava mais engajado na política, que se afastou das redes sociais...”

O Professor Gê empertiga-se; no estilo catedrático e aguerrido de sempre, me diz:

“Até o primeiro turno eu estava quieto, sim. A princípio, prometera não me manifestar porque, você sabe, os tempos estão cascudos e vem chumbo grosso por aí. En passant, comentei com alguns amigos que não votaria mais no Ciro, afinal, era preciso derrotar o Imbrochável já no primeiro turno e só o Lula tinha condições políticas para isso... Mas não externei publicamente meu voto. Aí entramos na campanha do segundo turno: avalanches de fake news, discursos de falsos crentes e conservadores, baixaria em cima de baixaria, tanta canalhice... fui forçado a me manifestar nas redes. Mesmo assim, estou postando pouco: uma reportagem aqui, uma entrevista ali, um resultado de pesquisas, evito responder comentários... os senhores algoritmos deixam você ver?”

Assinto, atento ao menino que se aproxima.

“Francamente, não me reconheço: nunca fui contido assim, você sabe... serão estes cabelos brancos? Lembra o quanto fui engajado, militante mesmo, nas eleições anteriores? Na época do golpe contra a Dilma, travei discussões infindáveis na escola particular onde eu lecionava. Conclusão: perdi o contrato. Mas, feito Carlota Joaquina, saí descalço daquela choldra para dali não levar sequer o pó. Olhando pelo retrovisor, meu caro, noto: reduzi muito a marcha... Mesmo assim, ontem fui a Juiz de Fora ver o comício do Lula... bonito, bonito mesmo todo aquele mundaréu de gente na Praça da Estação.”

O menino oferece chocolates, diz que não vendeu nada e que precisa ajudar a mãe doente. “Quantos chocolates tem aí na caixa?”, o Professor Gê indaga. Com o dedo, o menino conta. O Professor tira da carteira duas notas de vinte. “Me dá todos”. Os olhinhos do menino brilham e, saltitando feito um antílope, ele atravessa a praça.

Ah, o bom e velho Professor Gê. Lembro-me dele, de pé na mesa da cantina da escola, bradando contra os professores e funcionários que devoravam a carne da merenda e deixavam para nós, os alunos, a sopa rala de macarrão.

“Não é comprando estas porcarias açucaradas e cheias de química que mudaremos o país, mas é o que dá para fazer, por ora... Escuta, estou possesso com a diretora lá do colégio.”

“Ainda é a Rivanilda, professor?”

“A própria. Aquela fascistinha de merda, adoradora de falsos mitos se adonou do colégio como um césar romano: ninguém consegue tirá-la da diretoria... Na pandemia, criou um grupo de whatsapp “para facilitar nossa comunicação”, ela justificou. A principio, relutei em participar daquilo: muita bajulação, muita hipocrisia... mas acabei ficando no grupo, embora deixe as notificações silenciadas... Imagina o nome do grupo?”

Minha vez de franzir o cenho. Ele sorri:

 “Colégio Altruístico. Por Júpiter, que título mais besta. Por que esse nome? Não sei e, se bobear, nem ela sabe, porque o espírito da solidariedade ou da fraternidade passa longe daquele coliseu, você conhece aquilo lá... A não ser que se possa considerar altruísmo ficar enviando mensagens pretensamente religiosas, versículos, orações e essa presepada de igreja... Rivanilda posta todo dia essas papeatas; acha que, sendo administradora do grupo, precisa dar o exemplo. “Deus, Pátria e Família”, ela vive escrevendo sem saber donde vem esse lema.”

“Saí de todos os grupos do zap.”

“Este babaca que vos fala devia ter feito o mesmo. Mas, não: fiquei no grupo e, volta e meia, me pego discutindo com alguns beócios. Outro dia tentei explicar ao professor de matemática, por A + B, o que foi o Integralismo e por que o lema surrupiado pelo Inominável me incomoda tanto... quase fui linchado. Meu caro, tento levar a luz da racionalidade, recebo em troca pedradas de gente medieva e tacanha.”

Ele me oferece um chocolate.

“Sabe, às vezes me sinto como naquela alegoria do Platão: sou o prisioneiro da caverna que vê a luminosidade, volta para contar e toma uma coça por blasfemar contra a escuridão. Por isso, desde que começou a campanha, fiquei mais quieto. Porém, hoje não aguentei: postei no grupo um link falando do absurdo que o governo quer fazer com os aposentados... você deve ter lido essa proposta abjeta do Guedes de desvincular o salário mínimo e os benefícios da previdência do INPC.”

O chocolate está meio mole, lambuza-me os dedos. Assinto.

“Na hora do almoço, Rivanilda me enviou mensagem no privado. Olha o que aquela ditadora de merda me escreveu...” - o Professor Gê saca o celular do bolso, mostra-me a mensagem que printou – “printei, sim, porque Rivanilda é mestra em apagar as mensagens e depois diz que suas palavras foram deturpadas.”

Ele me entrega seu celular. Pego-o com cuidado para não lambuzá-lo, leio:

“Bom dia, professor!!! Por favor, nada de política no grupo Colégio Altruístico. Veja que ninguém postou nada de política aqui, aí vem o professor com essa postagem! Fica com Deus!!!”

Devolvo-lhe o celular. O professor Gê pergunta se li sua resposta, faço que não com a cabeça. Ele, então, a resume: não se trata de politica e sim de uma matéria publicada por uma revista explicando as consequências para os trabalhadores e aposentados brasileiros, se aprovado o projeto do governo.

“Agora escuta a resposta da fascistinha: Desculpa, professor, mas no atual momento é politicagem sim! Todas as postagens servem para nortear a decisão dos eleitores! A postagem deve ser excluída!!... Ah, como esses pontos de exclamação me irritam: me lembram aquelas revistinhas onde os personagens só falam com exclamações...”

“E o que você fez?”

“Não respondi, também não excluí. Isso é censura, e eu sou veementemente contra a censura, sempre fui... Lembra aquela vez em que fui à Superintendência porque queriam proibir a leitura em sala de aula dos livros do Dalton Trevisan, sob pretexto que seus textos ofendiam a moral? “Censura, censura” bradei na Superintendência... Venci a peleja, trabalhei os textos com os alunos. E da outra vez em que vieram com papinho: Monteiro Lobato é racista, é preconceituoso, os alunos não devem ler mais suas obras... “Censura!” bradei. Ameacei procurar um jornal na capital, armei um salseiro na Superintendência... Venci de novo: não só lemos as Caçadas de Pedrinho, como encenamos uma peça baseada no livro. Mais recentemente, Rivanilda me procurou, disse que alguns pais se sentiram incomodados porque eu lecionei sobre religiões de matriz africana e levei para a classe imagens de orixás. Ah, ameacei oficiar o governador, chamar a imprensa... morreu o assunto, pude trabalhar o conteúdo em paz.”

“E a postagem lá no grupo, ficou por isso mesmo?”

“O quê, e aquela Lucrécia Bórgia ia deixar? Ela apagou o link.”

“E você vai fazer o quê?”

Professor Gê mira a bandeira, assume novamente a postura meditativa:

“Ainda não sei, meu caro, ainda não sei...”

 


Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Imagem: acervo do autor 

 

 

 

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