terça-feira, 22 de novembro de 2022

Adeus, Erasmo Carlos

 


Abro minha caixa de e-mail. São 14:08 horas, de uma tarde ordinária, dessas bem burocráticas que nos arrasta junto com ofícios, alvarás e mandados. Mas, como eu dizia, abro minha caixa de e-mail: preciso solicitar qualquer coisa no portal da informática.

Chegou um desses e-mails que recebo aos montes, enviados por jornais e sites de entretenimento. Normalmente, não os abro; mas este aqui preciso abrir: MORRE O CANTOR E COMPOSITOR ERASMO CARLOS. Assim está grafada a matéria. Um soco em caixa alta, bem no meio do estômago, certeiro como aqueles que o Stallone dá nos filmes.

Aqui, no computador da repartição, não consigo abrir sites de noticiários, portanto, sou impedido de saber o que se passa no mundo. Isso pode ser bom ou ruim, depende do que está a acontecer; se eclodir uma guerra, por exemplo, só saberei quando chegar em casa, lá pelas seis e tanta (isso se eu chegar vivo, porque posso ser alvo de uma bomba qualquer enquanto caminho, vá saber). Assim, só fico sabendo das novidades quando abro algum desses e-mails que me chegam como mariposas no verão e leio suas manchetes. É o que faço agora. 


Mesmo sem acesso ao conteúdo integral, a manchete por si só já me abala. Ainda há pouco, coisa de uns trinta minutos, eu ouvi uma canção do Tremendão - uma das muitas que estão dispersas em minhas playlists. Erasmo é parte de minha trilha sonora diária, e isso faz tempo.


Corro a vista pelo Google Notícias. Infelizmente, não é fake news: aos 81 anos, o Gigante Gentil sai de cena. Parte para o andar de cima, fará companhia à Gal Costa (cuja passagem ainda não superei). Ícones da música estão partindo... é triste ver gente que eu ouço todo dia, desde os tempos dos vinis, indo embora. É da vida, alguém pode argumentar. Sim, é, mas não deixa de me entristecer.  


Inevitavelmente meu lado nostálgico dispara - eu tenho um lado nostálgico que é, tipo, o lado B dos velhos discos: vive tocando e me levando a outras eras. A memória auditiva mais antiga que trago do Erasmo é a canção que ele gravou com a Turma do Balão Mágico: "barato bom barato bom é o da barata dona girafa que gravata..." esses versos tocaram tanto na vitrolinha lá de casa. Trilha sonora de infância marca, desperta-me a nostalgia.  Outra canção me vem à mente: Papo de Esquina, que o Tremendão gravou em 1988 com seu irmão de fé Roberto Carlos, e que ouvíamos muito no toca-fitas do Chevette do pai.
 

 Lá em casa também rodava bastante o "Erasmo... Convida", com duetos de velhas canções de sua autoria. Anos e anos depois, quando lançado o segundo volume (já nos tempos do CD) fiz questão de comprá-lo na pré-venda da internet. E eu o ouvi muito no meu discman, indo e voltando da faculdade...  está guardadinho nalgum canto do meu quarto, junto com outros discos e dvds do Erasmo.


Essas memórias musicais são disparadas enquanto já nem me lembro mais por que abri a caixa de e-mail. Deixa pra lá, é de somenos importância. Decidido, volto a redigir os ofícios e as cartas, enquanto o Spotify, aleatoriamente, executa "Abra seus olhos". E os meus olhos, bem abertos, represam uma lágrima de despedida: "aqui não é lugar para sentimentalismos", sentencio a mim mesmo, antes que outros o façam.  





Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: internet 

segunda-feira, 14 de novembro de 2022

A última sessão de música

 

        Acordo antes do galo cantar, olho o céu: “é, parece que não vai chover”. Visto-me, vou à rodoviária.

        Uns gatos pingados esperam ônibus. Os passageiros desembarcam, alguns sonolentos; abraços e cumprimentos, malas e bolsas, olhares perscrutadores: a vida se repete na plataforma.  Encostado na pilastra, observo o vai e vem: uma mulher leva a criança no colo, senhoras com sacola, um homem com o cigarro no canto da boca, um jovem desengonçado com a mochila no ombro, o velho televisor ligado sempre no mesmo canal... É a vida desse lugar, é a vida.

        Espero o trocador entregar as bagagens. Entre os que desembarcam, Carmô, bolsa e jaqueta penduradas no braço. Desce com dificuldade, um senhor a ajuda. Cumprimenta-me com seu sorriso de alvorecer – é daquelas que nunca acordam de mau humor, uma espécie de Maria que mistura a dor e a alegria, sempre driblando as vicissitudes da vida com um sorriso. Ela bota a bolsa na cadeira, pega o celular “vou ligar pro Osvandir que, na certa, perdeu a hora de vir me apanhar”.

Os passageiros retiram as malas no bagageiro, eu aguardo.

        “Estou vindo de BH, fui assistir o show do Bituca”, ela me diz. Rapidamente me vem à memória aquela época em que trabalhamos juntos: Carmô chegava ao expediente, sempre sorridente, cantarolando canções do Milton. E, mesmo depois da tragédia que vitimou seu filho e parte de seus sonhos, Carmô continuou cantarolando na repartição.   

        “Assisti pelo Globoplay, foi muito bom” digo.

        “Muito bom, maninho? Foi MA-RA-VI-LHO-SO! Mineirão lotado, o pessoal numa energia incrível. Quando as cortinas se abriram, me senti transportada para o céu... chama, chama e ninguém atende”. Carmô tenta outra vez, peço licença.

        O trocador me entrega a caixa. Carmô ainda tenta falar com o marido. “Não posso te dar carona. Tô a pé, como sempre” justifico-me, ela sorri: “Maninho, tô extasiada até agora, nem consegui pregar o olho na viagem. Fiquei lá na frente... apareci na televisão?” Nego com a cabeça, coloco a caixa no chão (puxa, mais pesada que imaginei, penso).

“Me emocionei pra caramba. E pensar que não veremos mais o Bituca nos palcos da vida, dá uma dó! Ontem, quando ouvi Cuitelinho, ah maninho, não aguentei e chorei: lembrei os tempos em que eu morava na roça, meu menino ainda pequeno correndo no terreiro com as galinhas...”

“Ele dedicou o show à Gal, né. Achei tão bonito isso.”

“Tudo foi lindo. Não acredito que participei desse momento histórico... Alô, Osvandir, onde você tá? Como assim onde eu tô... Na rodoviária, uai, o ônibus já chegou... Que adiantou o quê, já viu ônibus adiantar, Osvandir! Você é que perdeu a hora... Tá, vou esperar.” Carmô guarda o celular, comenta: “Desde que saiu do coma que o Osvandir ficou assim, meio esquecido... bem que o médico avisou: nada será como antes. O que se há de fazer, né? É a vida, maninho, é a vida... mas, voltando pro show: na hora que reabriram as cortinas e o Wagner Tiso tocou os primeiros acordes de ‘Coração de Estudante’... ah, não aguentei. Mas não foi só eu que desandou a chorar não: perto de mim um monte de gente foi às lágrimas...essa música é forte, né, e muito significativa, ainda mais em um momento como esse... Peraí, o celular tá tocando. Oi, Osvandir. Hein, o portão enguiçou? Não, vai amolar vizinho a essa hora, não... hoje é emenda do feriado, esqueceu? O povo vai dormir até mais tarde. Eu pego o táxi, pode deixar. Tchau.”

Carmô desliga e, apesar do contratempo, mantém a ternura ao falar: “De novo o portão eletrônico deu defeito. E o Osvandir não consegue levantá-lo, sabe. Desde que fez aquela cirurgia no braço, por conta do acidente, não consegue levantar nada pesado... e aquele portão parece de chumbo. Enfim, meu caminho é de pedra, maninho, mas... é a vida”.

Pego minha caixa, ela, a bolsa e a jaqueta; vamos pela rampa. “Sei muito bem o que o Bituca tá passando; quando fui forçada a parar com minha carreira... você sabe, o acidente estúpido com o ônibus quando voltávamos dum show, a perda do meu menino, o coma do Osvandir... Nossa, foi duro. A gente começava a ampliar nosso público, a se apresentar em outras cidades, aí, de repente, acontece tudo aquilo... Enfim, seguimos a vida, porém, nada mais foi como antes: Osvandir aposentou por invalidez, eu continuei na repartição. Mas, como eu simplesmente não consigo parar, em casa solto a voz para tentar sufocar a tristeza e, na repartição, canto para suportar a burocracia... No violão, porém, nunca mais mexi: me entristece, lembro do meu menino, ele aprendeu a tocar de ouvido, diziam que tinha um futuro promissor... Osvandir, coitado, não consegue tocar mais nada.”

Carmô me oferta mais um pouco de seu sorriso de alvorecer, tenta conter uma lágrima: “E você, que notícias me dá de você?”

“Caí da cama cedo para buscar esta caixa. São livros que um amigo de Belo Horizonte me enviou. Ele está de mudança para Lisboa, me presenteou com um monte de livros.” Carmô segue manquitolando ao meu lado. Digo-lhe que estou finalizando um livro de crônicas, “já em fase de revisão”, ela comenta que o pessoal da repartição “sente muito sua falta, gostavam de você”. Assinto em silêncio, embora eu não possa dizer o mesmo deles, penso.

 “Qualquer dia a gente se vê”, diz, acenando do táxi. Apesar da caixa pesada, sigo a pé pela avenida, pensando: quanta disposição! Encarar mais de sete horas de viagem, ter que cruzar a Rodovia dos Inconfidentes onde tudo aconteceu... claro que ela relembrou o acidente com a banda, a morte do filho: essas lembranças são inevitáveis. Puxa, que travessia! Sem contar que passou o dia inteiro na capital, pegando táxi para ir e voltar do estádio, varou a noite nesse ônibus desconfortável... é cansativo para mim, imagino para ela que, depois da tragédia, ficou com aquele problema na perna. Enfim, é preciso ter gana, não é assim que diz aquele verso do Milton? Se fosse comigo, não teria essa força toda, não.

 

       

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

quarta-feira, 9 de novembro de 2022

INTENSA E FORTE

 


Nuvens cinza-chumbo fizeram da manhã, noite. Pelas frestas da janela, penetra um ventinho frio; meus pés pedem meias, meus olhos querem palavras. Em dias assim, recordo os versos de Djavan: “um dia frio/um bom lugar pra ler um livro”... abro o armário: ainda embalados, alguns livros adquiridos em minha penúltima viagem a Juiz de Fora cobram-me leitura (eu e minha velha mania de comprar mais livros que dou conta de ler). Desembrulho o Verissimo... crônicas ajudarão a levar esta manhã.

A chuva volta a cair, o quarto escurece ainda mais. Vejo-me obrigado a puxar a poltrona mais para perto da janela... Ontem, no fim da tarde, choveu granizo - cada pedra de amedrontar, pensei que ia furar as telhas da cobertura. Mais tarde, enquanto assistia Travessia, mais chuva despencou, exigindo-me moletom e cobertor.

Atipicamente, o novembro vai se entristecendo com chuva e frio. Viro uma página, outra, mais outra... as cenas e situações bem humoradas acalentam. Todavia, não afastam a vontade de roer alguma coisa: uma, duas castanhas talvez sejam suficientes para engambelar o estômago até o almoço ficar pronto.

No quarto ao lado, a criança assiste desenho; na rua, alunos e carros e motos apressam-se para fugir dos grossos pingos. Indiferentes, as maritacas cantam sua estridente e, aparentemente, desarmônica sinfonia. Ontem, antes do toró, pausei a leitura do Batman, observei-as: duas – talvez um casalzinho – há dias tentam fazer um buraquinho entre a parede e o caibro do telhado. Todavia, ariscas como só elas o são, futricavam o buraco, paravam, me olhavam... e, de repente, num tremendo alarido, voaram até a árvore da escola.

***

Findo o almoço, e com a chuva rareando, deito-me na cama. (Nesses dias de férias, é possível fazer a sesta.) Deslizo os dedos fatigados pelo feed do Instagram. Súbito, um daqueles posts que não se quer ver: morre Gal Costa, aos 77 anos. Não é uma notícia fácil de se digerir... infelizmente, mais uma voz – e que voz, senhores! – silencia-se.

Assisti a um único show de Gal, há alguns anos, em Juiz de Fora. Numa noite de muito frio, sua voz inigualável me aqueceu e enterneceu. Um show intimista, voz e violão. Daqueles momentos que a gente guarda na memória, para sempre.

Meus dedos continuam a deslizar no smartphone, fotos e vídeos de Gal se revezam na tela. Uma grande perda...

***

Lembrei-me daquela vez que o vendedor da loja de CDs me telefonou (faz tempo isso, bicho, eu ainda comprava CDs e ainda tinha telefone fixo em casa).

“Alô.”

“Alô, tudo bem? A Gal chegou!”

Por um instante, não captei a mensagem. Eu assistia a um filme no quarto, irritado porque o vento não deixava as cortinas paradas e a claridade dava no televisor e, súbito, o telefone tocou; corri para atender e alguém, sem se identificar, exclama: “A Gal chegou!”. Achei que era trote, ri. Do outro lado da linha, a criatura, enfim, se identificou. E só aí me dei conta: era o cara da loja ligando para me avisar que o disco que eu encomendara chegou.

***

“Estratosférica” foi, se não me engano, um dos últimos CD’s que comprei. Da Gal, foi o último: tempos depois migrei, definitivamente, para o universo digital... estas linhas, por exemplo, são escritas enquanto uma de minhas playlists no Spotify está tocando.

Enquanto finalizo esta crônica, e os acordes iniciais de “Lágrimas Negras” se insinua entre os livros e a luminária forçosamente acesa às duas e pouca da tarde, lá fora a chuva cai novamente, intensa e forte, como o canto de Gal Costa. 

 


      Texto: Raphael Cerqueira Silva 

foto: acervo do autor 

Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...