Acordo antes do galo cantar, olho o céu: “é, parece que não vai chover”. Visto-me, vou à rodoviária.
Uns gatos pingados esperam ônibus. Os passageiros desembarcam, alguns sonolentos; abraços e cumprimentos, malas e bolsas, olhares perscrutadores: a vida se repete na plataforma. Encostado na pilastra, observo o vai e vem: uma mulher leva a criança no colo, senhoras com sacola, um homem com o cigarro no canto da boca, um jovem desengonçado com a mochila no ombro, o velho televisor ligado sempre no mesmo canal... É a vida desse lugar, é a vida.
Espero o trocador entregar as bagagens. Entre os que desembarcam, Carmô, bolsa e jaqueta penduradas no braço. Desce com dificuldade, um senhor a ajuda. Cumprimenta-me com seu sorriso de alvorecer – é daquelas que nunca acordam de mau humor, uma espécie de Maria que mistura a dor e a alegria, sempre driblando as vicissitudes da vida com um sorriso. Ela bota a bolsa na cadeira, pega o celular “vou ligar pro Osvandir que, na certa, perdeu a hora de vir me apanhar”.
Os passageiros retiram as malas no bagageiro, eu aguardo.
“Estou vindo de BH, fui assistir o show do Bituca”, ela me diz. Rapidamente me vem à memória aquela época em que trabalhamos juntos: Carmô chegava ao expediente, sempre sorridente, cantarolando canções do Milton. E, mesmo depois da tragédia que vitimou seu filho e parte de seus sonhos, Carmô continuou cantarolando na repartição.
“Assisti pelo Globoplay, foi muito bom” digo.
“Muito bom, maninho? Foi MA-RA-VI-LHO-SO! Mineirão lotado, o pessoal numa energia incrível. Quando as cortinas se abriram, me senti transportada para o céu... chama, chama e ninguém atende”. Carmô tenta outra vez, peço licença.
O trocador me entrega a caixa. Carmô ainda tenta falar com o marido. “Não posso te dar carona. Tô a pé, como sempre” justifico-me, ela sorri: “Maninho, tô extasiada até agora, nem consegui pregar o olho na viagem. Fiquei lá na frente... apareci na televisão?” Nego com a cabeça, coloco a caixa no chão (puxa, mais pesada que imaginei, penso).
“Me emocionei pra caramba. E pensar que não veremos mais o Bituca nos palcos da vida, dá uma dó! Ontem, quando ouvi Cuitelinho, ah maninho, não aguentei e chorei: lembrei os tempos em que eu morava na roça, meu menino ainda pequeno correndo no terreiro com as galinhas...”
“Ele dedicou o show à Gal, né. Achei tão bonito isso.”
“Tudo foi lindo. Não acredito que participei desse momento histórico... Alô, Osvandir, onde você tá? Como assim onde eu tô... Na rodoviária, uai, o ônibus já chegou... Que adiantou o quê, já viu ônibus adiantar, Osvandir! Você é que perdeu a hora... Tá, vou esperar.” Carmô guarda o celular, comenta: “Desde que saiu do coma que o Osvandir ficou assim, meio esquecido... bem que o médico avisou: nada será como antes. O que se há de fazer, né? É a vida, maninho, é a vida... mas, voltando pro show: na hora que reabriram as cortinas e o Wagner Tiso tocou os primeiros acordes de ‘Coração de Estudante’... ah, não aguentei. Mas não foi só eu que desandou a chorar não: perto de mim um monte de gente foi às lágrimas...essa música é forte, né, e muito significativa, ainda mais em um momento como esse... Peraí, o celular tá tocando. Oi, Osvandir. Hein, o portão enguiçou? Não, vai amolar vizinho a essa hora, não... hoje é emenda do feriado, esqueceu? O povo vai dormir até mais tarde. Eu pego o táxi, pode deixar. Tchau.”
Carmô desliga e, apesar do contratempo, mantém a ternura ao falar: “De novo o portão eletrônico deu defeito. E o Osvandir não consegue levantá-lo, sabe. Desde que fez aquela cirurgia no braço, por conta do acidente, não consegue levantar nada pesado... e aquele portão parece de chumbo. Enfim, meu caminho é de pedra, maninho, mas... é a vida”.
Pego minha caixa, ela, a bolsa e a jaqueta; vamos pela rampa. “Sei muito bem o que o Bituca tá passando; quando fui forçada a parar com minha carreira... você sabe, o acidente estúpido com o ônibus quando voltávamos dum show, a perda do meu menino, o coma do Osvandir... Nossa, foi duro. A gente começava a ampliar nosso público, a se apresentar em outras cidades, aí, de repente, acontece tudo aquilo... Enfim, seguimos a vida, porém, nada mais foi como antes: Osvandir aposentou por invalidez, eu continuei na repartição. Mas, como eu simplesmente não consigo parar, em casa solto a voz para tentar sufocar a tristeza e, na repartição, canto para suportar a burocracia... No violão, porém, nunca mais mexi: me entristece, lembro do meu menino, ele aprendeu a tocar de ouvido, diziam que tinha um futuro promissor... Osvandir, coitado, não consegue tocar mais nada.”
Carmô me oferta mais um pouco de seu sorriso de alvorecer, tenta conter uma lágrima: “E você, que notícias me dá de você?”
“Caí da cama cedo para buscar esta caixa. São livros que um amigo de Belo Horizonte me enviou. Ele está de mudança para Lisboa, me presenteou com um monte de livros.” Carmô segue manquitolando ao meu lado. Digo-lhe que estou finalizando um livro de crônicas, “já em fase de revisão”, ela comenta que o pessoal da repartição “sente muito sua falta, gostavam de você”. Assinto em silêncio, embora eu não possa dizer o mesmo deles, penso.
“Qualquer dia a gente se vê”, diz, acenando do táxi. Apesar da caixa pesada, sigo a pé pela avenida, pensando: quanta disposição! Encarar mais de sete horas de viagem, ter que cruzar a Rodovia dos Inconfidentes onde tudo aconteceu... claro que ela relembrou o acidente com a banda, a morte do filho: essas lembranças são inevitáveis. Puxa, que travessia! Sem contar que passou o dia inteiro na capital, pegando táxi para ir e voltar do estádio, varou a noite nesse ônibus desconfortável... é cansativo para mim, imagino para ela que, depois da tragédia, ficou com aquele problema na perna. Enfim, é preciso ter gana, não é assim que diz aquele verso do Milton? Se fosse comigo, não teria essa força toda, não.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor
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