quarta-feira, 9 de novembro de 2022

INTENSA E FORTE

 


Nuvens cinza-chumbo fizeram da manhã, noite. Pelas frestas da janela, penetra um ventinho frio; meus pés pedem meias, meus olhos querem palavras. Em dias assim, recordo os versos de Djavan: “um dia frio/um bom lugar pra ler um livro”... abro o armário: ainda embalados, alguns livros adquiridos em minha penúltima viagem a Juiz de Fora cobram-me leitura (eu e minha velha mania de comprar mais livros que dou conta de ler). Desembrulho o Verissimo... crônicas ajudarão a levar esta manhã.

A chuva volta a cair, o quarto escurece ainda mais. Vejo-me obrigado a puxar a poltrona mais para perto da janela... Ontem, no fim da tarde, choveu granizo - cada pedra de amedrontar, pensei que ia furar as telhas da cobertura. Mais tarde, enquanto assistia Travessia, mais chuva despencou, exigindo-me moletom e cobertor.

Atipicamente, o novembro vai se entristecendo com chuva e frio. Viro uma página, outra, mais outra... as cenas e situações bem humoradas acalentam. Todavia, não afastam a vontade de roer alguma coisa: uma, duas castanhas talvez sejam suficientes para engambelar o estômago até o almoço ficar pronto.

No quarto ao lado, a criança assiste desenho; na rua, alunos e carros e motos apressam-se para fugir dos grossos pingos. Indiferentes, as maritacas cantam sua estridente e, aparentemente, desarmônica sinfonia. Ontem, antes do toró, pausei a leitura do Batman, observei-as: duas – talvez um casalzinho – há dias tentam fazer um buraquinho entre a parede e o caibro do telhado. Todavia, ariscas como só elas o são, futricavam o buraco, paravam, me olhavam... e, de repente, num tremendo alarido, voaram até a árvore da escola.

***

Findo o almoço, e com a chuva rareando, deito-me na cama. (Nesses dias de férias, é possível fazer a sesta.) Deslizo os dedos fatigados pelo feed do Instagram. Súbito, um daqueles posts que não se quer ver: morre Gal Costa, aos 77 anos. Não é uma notícia fácil de se digerir... infelizmente, mais uma voz – e que voz, senhores! – silencia-se.

Assisti a um único show de Gal, há alguns anos, em Juiz de Fora. Numa noite de muito frio, sua voz inigualável me aqueceu e enterneceu. Um show intimista, voz e violão. Daqueles momentos que a gente guarda na memória, para sempre.

Meus dedos continuam a deslizar no smartphone, fotos e vídeos de Gal se revezam na tela. Uma grande perda...

***

Lembrei-me daquela vez que o vendedor da loja de CDs me telefonou (faz tempo isso, bicho, eu ainda comprava CDs e ainda tinha telefone fixo em casa).

“Alô.”

“Alô, tudo bem? A Gal chegou!”

Por um instante, não captei a mensagem. Eu assistia a um filme no quarto, irritado porque o vento não deixava as cortinas paradas e a claridade dava no televisor e, súbito, o telefone tocou; corri para atender e alguém, sem se identificar, exclama: “A Gal chegou!”. Achei que era trote, ri. Do outro lado da linha, a criatura, enfim, se identificou. E só aí me dei conta: era o cara da loja ligando para me avisar que o disco que eu encomendara chegou.

***

“Estratosférica” foi, se não me engano, um dos últimos CD’s que comprei. Da Gal, foi o último: tempos depois migrei, definitivamente, para o universo digital... estas linhas, por exemplo, são escritas enquanto uma de minhas playlists no Spotify está tocando.

Enquanto finalizo esta crônica, e os acordes iniciais de “Lágrimas Negras” se insinua entre os livros e a luminária forçosamente acesa às duas e pouca da tarde, lá fora a chuva cai novamente, intensa e forte, como o canto de Gal Costa. 

 


      Texto: Raphael Cerqueira Silva 

foto: acervo do autor 

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Outra vez no cinema

            Viu nas redes sociais que está em cartaz o novo longa dos Caça-Fantasmas. Nessas horas servem pra alguma coisa útil, essas redes...