domingo, 21 de novembro de 2021

As crianças na sala

As crianças jogam na sala, cada uma com seu celular. O tempo ainda não está firme; a brisa brinca na janela, acho que, de novo, não caminharei na rua. Maritacas na copa da mangueira azucrinam a manhã.

As crianças jogam jogos de guerra, de “lutinha” como chamavam no meu tempo de menino. Há pombos zanzando na laje: ouço-os desde ontem. Olho a pilha de revistinhas ao lado da mesa; comprei-as durante a semana, ainda não li nenhuma. Quando tinha a idade das crianças que jogam na sala, eu devorava todas as revistinhas em um só dia, e relia-as várias vezes até ganhar novas. Naquele tempo, tenho certeza, meus dias tinham bem mais que vinte e quatro horas...

Na sala, as crianças jogam e “tão nem aí” para o Fantasma, o Superman, os Novos Titãs, o Chico Bento, o Mickey, o Tex que, largados na mesa, me encaram. O Superpato já até me deu o ultimato: larga esse palavrório besta aí ou te lanço um raio paralisante com esta nova invenção do Professor Pardal. Eu rio sem, contudo, largar o lápis; penso nas crianças sentadas no sofá: certamente desconhecem o herói patopolense – aliás, sequer desconfiam onde se localiza Patópolis... na idade delas, era para lá que eu viajava.

As crianças jogam, eu garatujo bobagens nesta manhã de domingo. Quando eu tinha a idade das crianças que jogam na sala, aguardava os domingos para ler as tirinhas d’O Globinho. Sentado na calçada ou de pé à janela, eu esperava ansiosamente pelo Washington da Banca. Ele vinha pela rua silenciosa, os jornais sempre empilhados na garupa da bicicleta, trazendo para mim as novas aventuras do Calvin e do Hagar... As crianças que jogam na sala também devem desconhecer quem são estes personagens. Quando menino, eu dizia: não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Será que as crianças ainda falam assim, pergunto para a pilha de revistinhas. Emudecidos, meus heróis apenas me encaram.

Sentadas no sofá, imersas nos jogos eletrônicos, as crianças, acho, sequer deram conta que o tempo ainda não firmou, que maritacas na copa da mangueira azucrinam a manhã, que os pombos passeiam na laje. E que, nostálgico, eu as observo, e recordo minha meninice.    


 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor  

 

domingo, 14 de novembro de 2021

CHUVA, FRIO, OS NOVOS IMORTAIS E A NOVA NOVELA

 

         A semana passou, úmida e fria. Novembro, como um macaco de imitação, está copiando o irmão outubro. Resultado: atravesso sua primeira quinzena com blusa, capuz, guarda-chuva, jeans fedendo a cachorro molhado.

         Enquanto a chuva lava janelas e os planos para o feriado, aqui e acolá já começaram a falar nas confraternizações de dezembro. Acho linda a empolgação com que, todo ano, as pessoas debatem onde será o evento, quanto custará, quem cantará, o que se comerá, se terá ou não amigo oculto... Linda e hipócrita empolgação. As mesmas pessoas que agora se preocupam com os festejos parecem se esquecer das brigas e fofocas, dos desaforos ditos e engolidos, dos arranca-rabos que protagonizaram, das invejas e maledicências que encenaram – e viram encenar - ao longo do ano. Bem, se nem um vírus mortífero como o corona deu jeito na humanidade, não será este texto placebo...

         Falando em encenação, o teatro – por extensão, a cultura – está em festa. Festa linda e nada hipócrita: Fernanda Montenegro entrou para o panteão da ABL. Ela que já foi tantas (Dora, Bia Falcão, Charlô, Dona Jacutinga, Zazá, Vó Manoela, Gilda, Bete Gouveia, A Compadecida, Mercedes, Teresa) agora é imortal. Aplausos àquela a quem Clarice Lispector adjetivou de “excelente”.

         Fernanda, contudo, não chega sozinha à Casa de Machado. Adentra o recinto em boa e sonora companhia: ao seu lado, também de fardão, vai Gilberto Gil. O Gil da Bahia, da Tropicália, da MPB, da Arte enfim, e merecidamente, imortaliza-se também. Gil é ritmo e poesia, acordes e notas, sons e silêncio. Ao versejar “marmelada de banana/ bananada de goiaba/goiabada de marmelo”, Gil deu cor, som e poesia à minha meninice; e, convenhamos, isso não é pouco, embora seja para poucos.

         Neste novembro frio e molhado, bom é ficar em casa, ouvindo uma musiquinha, pois, como disse Clarice, “não viver com música é trair a condição humana que é cercada de música.” Friozinho pede também televisão. Felizmente, voltamos a ter novela inédita no horário das nove. Sinal que a normalidade está, timidamente, voltando apesar do desinteresse de uns tantos... A normalidade retorna e Lícia Manzo apresenta um novelão para ninguém botar defeito. Se seguir a receita usada em “A vida da gente” (uma das mais lindas novelas a que assisti), não perderei um capítulo. A escolha de Cauã Reymond para protagonizar a trama foi acertada: esse menino é grande. Enfim, “Um Lugar ao Sol” é tudo o que um noveleiro como eu precisa e quer nestes tempos ainda turbulentos.

         Apesar da friagem atípica, saúdo o penúltimo mês do ano. Evoé também aos novos imortais. E, apesar de certas coisas que estão por aí, “amanhã há de ser outro dia”, como cantou Chico que, espero, se imortalize em breve. 

 

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

domingo, 7 de novembro de 2021

Enfim, c'est la vie

 

         Os leitores que me seguem sabem: nos dias livres, saio a caminhar pela avenida. Quando possível, fotografo: gosto de eternizar as flores que insistem em brotar no meio de tanto concreto, a revoada das maritacas, tucanos nos fios elétricos, corujinhas nos barrancos pelados, as árvores que resistem ao Capital... Por outro lado, nos dias chamados úteis, preso aos grilhões da burocracia, resta-me apenas sonhar. Digitando números e cumprindo despachos, sonho com as tardes de sábado e domingo, com os feriados e suas emendas.

         Ontem, porém, não pude flanar: um circo atrapalhou minha passagem. Ergueram na avenida, atabalhoadamente, toldos e lonas pavorosos, cuja serventia era só ofuscar o poente. Em torno, balões de cores berrantes; desesperado, um azul, meio murcho, pulou da ponte: preferiu se afogar nas águas esquecidas do Xopotó. No picadeiro asfáltico, a trupe pouco se importou com o destino do balãozinho: ensaiava pantomimas de gosto duvidoso.   

         Eu ia pela travessa, fazendo dueto com Zé Ramalho. Na calçada enlodada, estaquei; levei incontinenti a mão no bolso, resgatei minha preciosa máscara. Atravesso a rua ou não, passo ou não passo no meio da turba? Uma maritaca na copa do coqueiro zombou de minhas inquietudes. Sem resposta, encarei o povo, que dançava como bruxas bêbedas ao luar. Vi acrobatas, malabaristas, homens-fera, mulheres barbadas, ilusionistas, contorcionistas, palhaços – muitos palhaços. Enfim, matinê para espectador nenhum botar defeito. Mudo minha rota? Dos fones ecoou o refrão: povo marcado, eh!/ povo feliz!

         O circo venceu. Dei meia volta, desisti de caminhar. Subi a Raul Soares, contrariado: céu azulíssimo de primavera, sol cândido, brisa estimulante... tudo desperdiçado por conta daqueles saltimbancos duma figa. Se ainda fossem renomados ou originais, vá lá. Mas era um cirquinho pobre de marré deci... nem bicho tinha, afora os bovinos insanos e toscos que ainda não se libertaram da canga, embora se achem estrelas talentosíssimas. Não assisto a espetáculos assim nem se me pagarem em barras de ouro que, segundo Sílvio Santos, valem mais que dinheiro.

         Hoje pela manhã uma maritaca me contou: haverá matinê de novo. Contou e voou para a copa da mangueira. Fiquei a olhar o céu nublado... Amanhã me acorrentarei novamente; sonharei com o próximo fim de semana. Enfim, c’est la vie. 

 

           


 

Texto: Raphael Cerqueira Silva

Foto: acervo do autor

Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...