domingo, 18 de setembro de 2022

CRÔNICA ESQUECIDA NA GAVETA


O celular da mãe tomou chá de sumiço. Procura, procura, já reviramos toda a casa... parece arte de saci, alguém comenta. Olho sob as almofadas, recordo: ontem à noite ouvi assovios meio estranhos enquanto ventava... saci-trique, só pode. Resta apenas vasculhar as gavetas do meu quarto, embora a mãe não guarde suas coisas lá. Procura, procura, encontrei, esquecido num canto da gaveta, um texto sem título escrito em agosto de 2021. Li, reli, tem jeito de crônica, acho; compartilho-o com o leitor:

A noite principia. Vou caminhando pelas ruas. Vésper acompanha a lua nova. O céu, matizado de inverno, parece um idílio celeste. Que bom: ainda há espaço para idílios nestes tempos... Vou caminhando; levo o peso da burocracia. O expediente foi tenso: remarcar audiências e refazer todas as intimações porque, simplesmente, assim o querem. Querer é poder, diz o velho ditado. Há aqueles que querem, portanto, mandam; e como em toda sociedade há os que mandam e os que obedecem, cumpro as determinações. Insatisfeito, mas cumpro. Talvez Marx estivesse com a razão, penso, enquanto vou caminhando pelas ruas.

Olho para o céu: aos poucos enegrece, sem perder a beleza. Ao contrário das vias, que continuam lotadas de carros e motos e caminhões de lixo e ônibus e gente que se esbarra nas calçadas estreitas. Vou caminhando pelas ruas, um olho no idílio dos astros, outro no chão para não tropeçar. Como a feia que ontem tropicou na calçada do Senai e, meio sem graça, me disse: tem ouro ali. Tolamente, respondi: vamos cavar. Segui rumo ao centro, ela se perdeu na multidão. A feia e o tolo: rende um conto, quiçá uma novela.

Vou caminhando pelas ruas – esta crônica, percebo agora, parece aquela canção do José Augusto. Vou caminhando, observo os bares que se abrem, as lojas que se fecham, as academias com seus sons excessivamente altos, os garotos suados na portaria do clube... tudo voltou ao normal. Não obstante, ontem o Jornal Nacional noticiou: são quase 570.000 vidas ceifadas. Vou caminhando, recordo o que comentaram lá no trabalho: mais um morreu no hospital com COVID. Não obstante, os bares reabrem, as escolas retomam as atividades presenciais, a praça recebe os velhinhos para mais uma noite de jogatina, as sorveterias aproveitam o calor atípico e eu, burocraticamente, passei o dia redesignando audiências e expedindo novas intimações. Realmente, tudo voltou ao normal.

Um advogado me para em frente a padaria: quer saber se, na audiência marcada para outubro, o depoimento de seu cliente será tomado pessoalmente ou on-line. Como tudo anda tão incerto, digo-lhe: a informação que eu tinha às dezoito horas era que as partes e testemunhas serão ouvidas presencialmente, mas até outubro tudo pode mudar. O doutor quer saber o que fazer, sugiro: na véspera da audiência, ligue para o fórum... Deixo-o; vou caminhando com um sonho na mão.

Ontem um homem me parou na porta do Itaú: o fórum reabriu para atendimento? Desde final de junho, respondi. E segui meu caminho. Curioso: as pessoas só me param nas ruas para saber coisas de serviço... acho que trago tatuado na testa “meu nome é serviço”. Ninguém me traz notícias boas, nenhuma palavra amena, ninguém quer saber como suporto os tempos pandêmicos... também não comentam sobre a conjunção dos astros, o idílio de Vésper com a lua, as canções de amor que outrora se ouvia na Rádio Cultura, não querem saber sobre os livros que li ou as novelas que assisto...

Subo a ladeira. São tantas coisas a reverberar em meu peito inquieto... No cruzamento da Governador Valadares com a Said Slaibi e a Raul Soares paro, à espera de uma brecha para atravessar. Que falta nos faz um semáforo ou uma faixa de pedestres por aqui. Olho mais uma vez para o céu: inevitável não lembrar os versos daquela canção do Roberto: “Lua nova quando fores e voltares/Trás de volta o meu amor/Que partiu não sei para onde e se esconde/Do outro lado dessa dor...” 

 

 
 

  

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

domingo, 11 de setembro de 2022

MANHÃS DE SETEMBRO

  

        20° C, marca o letreiro luminoso na fachada da farmácia. Dia cinza-chumbo, com ventinho que me força a puxar o zíper até o pescoço (se pudesse, puxava-o até o queixo). Olho mais uma vez o letreiro: engraçado, podia jurar que a temperatura estava mais baixa.

        Entre duas latas de lixo, uma placa anuncia: ALMOÇO COM OU SEM BALANÇA. Descalço e maltrapilho, um homem desce a Floriano Peixoto, leva nas costas um saco enorme; ri e balbucia... para quem, não sei, tampouco me interessa. Um motoqueiro xinga o garoto que atravessa na faixa. Quem diria, já não se pode sequer atravessar na faixa.

        Na esquina, um bem-te-vi jaz na frieza asfáltica. Será aquele que ainda a pouco trinava na mangueira da minha vizinha? Paro, olho-o. Pessoas apressadas trombam comigo, forçam-me a prosseguir... para onde, já não me lembro. Um careca com a trança mais branca que o cavalo de Napoleão deixa suas sacolas esbarrarem em minhas pernas. Fez de propósito, como quem diz: a calçada não é lugar para ficar plantado feito um poste. Compelido desse jeito acintoso, sigo rumo ao mercado.

        A moça do caixa não me cumprimenta, prefere continuar a fofoca com o embalador: vai rodar e não é só ela, a caixa três e o carinha do hortifrúti também. Ela apalpa minha sacolinha, pergunta se é maçã argentina. Não sabe diferenciar maçã argentina da gala, mas está em dia com a notícia, devia rodar junto com os outros, resmungo, sem tirar os olhos do monitor.

        Na porta do mercado, olho para a praça: estão armando as barraquinhas. Hoje já é quarta, me pergunto, sem saber se atravesso ou não na faixa. Parado feito um poste (começo a dar razão ao careca da trança), me dou conta: amanhã é feriado... deve ser por isso que anteciparam a feira. Férias fazem isso com a gente: perdemos a noção dos dias da semana.

        Na calçada da Carlos Soares, forço a vista: ué, a banca ainda está fechada. É bom que economizo meus tostões. Crianças gritam no pátio da escola, parecem porquinhos no abatedouro... sinto saudades dos recreios na Professor Ormindo: não tinha que me preocupar com mercado, faixa de pedestre, feira, tostões, também não prestava atenção em quem ia pelas ruas e se usava trança ou não, muito menos se o cavalo de Napoleão era mesmo branco.

        Ah, no gramado da Professor Ormindo sempre havia bem-te-vis, saltitando entre os galhos dos coqueiros, equilibrando-se na cerca. Eu os via da minha carteira, e invejava a tia Regina: sentada bem mais perto da janela que eu, podia ver não só os bem-te-vis, bem como as serras, os trens, o movimento na estação...  Será que aqueles bem-te-vis eram parentes daquele que faleceu ali na esquina? Talvez seus bisavós... não sei quantos anos vive um bem-te-vi.

Imerso em conjecturas e reminiscências, chego ao cruzamento. Não é cruzamento férreo, mas paro, olho, escuto. De manhã é mais tranquilo, o bicho pega aqui à tarde: não sei donde saem tantos carros e motos e caminhões e ônibus... mesmo assim, prefiro não arriscar, olho de novo.

Atravesso. O vento corta-me os beiços. Êh, setembro está copiando agosto: gelado e cinzento. Nada de céu azulzinho, sol radiante, vizinho cantando como naquela canção da Vanusa. Melhor assim: posso passar o dia enrolado no edredom, relendo velhos gibis.

       

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

domingo, 4 de setembro de 2022

MEU QUERIDO DIÁRIO II

  

        De vez em quando, gosto de reler meu diário: revela um pouco do menino que fui naquele longínquo 1997... Pobrezinho do meu diário, suas páginas amareleceram, o papel de presente que o encapa já se desgasta nas lombadas. Toco-o com cuidado – afinal, é o único que restou – e, sobretudo, toco-o com ternura. Oxalá resista a muitas décadas.

        Noutra crônica, contei aos leitores que, durante o primeiro grau, escrevi com regularidade um diário: fazia parte das tarefas de casa que a professora de Português passava para a classe. Todavia, eu não gostava de escrevê-lo e, para ser bem franco, eu odiava sentar todo fim de tarde ou começo de noite para preencher as vinte e tantas linhas exigidas... não via sentido nenhum em escrever sobre a vida besta que eu levava, num lugar besta, cercado de gente besta. Como podem perceber, eu era também uma besta, e pior, uma besta rebelde.

        Tanta coisa pra fazer, tantas fases do SuperMario pra vencer, tantas revistinhas pra ler e tenho que ficar aqui, inventando lorota... sentado à mesa, eu vociferava contra o afazer escolar.

        Às vezes dava vontade de soltar o verbo, até confessar para o diário o que me dilacerava o coração e inquietava a alma como fazia a Helena, personagem de Regina Duarte, em Por Amor. Mas – e sempre há um mas na vida da gente – eu me retraía, refreava a caneta. Afinal, os diários ficavam sujeitos ao visto e aos olhos cirúrgicos da professora, sempre à cata de erros ortográficos e de concordância ou de um chiste para contar à classe... É ruim de me expor ao mundo, eu resmungava sufocando a vontade de abrir o leque.

Mas, não pensem os leitores que eu tinha grandes revelações a fazer. Eram apenas pecadilhos e desabafos pueris, coisas de menino que, mesmo assim, não ousei registrar no diário. Vejam esta anotação do dia 02/09, feita às 18:37 horas:

“Cigarra morta

        Vês... É uma cigarra morta, asas douradas

        completamente roídas e estragadas,

        levada pelas formigas...

        Olhaste-me e eu pude compreender...

        Não digas nada, meu irmão, não digas,

        - os poetas... as cigarras

        não deviam morrer.

 

        Esta poesia de J. G. de Araújo Jorge mexeu muito comigo, pois gosto demais de animais.”

        Em minha meninice, não li muita poesia. Talvez porque não houvesse biblioteca na escola (e na cidade), talvez porque diziam “é coisa de menina e de fresco”, talvez... ah, há tantos talvez no caminho dum garoto. Em casa, havia poucos livros de poesia; uns volumes em capa dura do J. G. de Araújo Jorge com versos de amor, pelos quais eu não me interessava nem um pouco, e uma edição de bolso do Orfeu de Jorge de Lima. Mas este poema da cigarra me entusiasmou, a ponto de ir parar no diário.

Faltava-me poesia, sobravam-me animais...

        Tive a felicidade de morar numa casa com quintal. E de ter a companhia de muitos animais: galinhas, codornas, periquitos, papagaio, coelhos, cachorros, galo garnisé, canários. Imagine, leitores, que até seriema viveu lá em casa; pelo menos, viveu o tempo que precisou para se recuperar de um ferimento na perna. Afora esses bichos que, digamos, eram meus, tinha aqueles que circulavam pela casa: os vira-latas que alimentávamos na porta, os pombos e pardais que viviam no terreiro catando painço e alpiste, a corujinha que durante muito tempo fez ninho num buraco no telhado e, toda noite, nos encarava, ressabiada, enquanto a gente a olhava da janela.

Os animais nos ensinam muito sobre a alma do mundo.

        Hoje, sem quintal e sem um passarinho para alimentar, observo da varanda: pelas manhãs, tucanos costumam brincar na árvore da Escola Normal enquanto pombos inconvenientes arrulham e zanzam na cobertura do prédio; de tarde, as maritacas vêm desafinar sua melodia e, penduradas nas telhas, parecem dizer: bicho mais esquisito esse, vive sentado com um livro na mão e olhando pra nós feito uma besta... De uns tempos pra cá, deu para aparecer uns urubus feiíssimos que rodopiam pelos telhados dos prédios, pousam no muro das casas, batem as asas, se vão. Nos apartamentos vizinhos, cães fungam, rosnam e latem quando passo pela escada e, no 203, o gato, sempre refestelado na janela, sonha com o dia que enfim conseguirá escapar para o mundo. Ó, inocente gato, se soubesse como é a vida... colocaria seus bigodes de molho e nunca mais desejaria botar suas patas branquinhas aqui fora, nem por um segundo.

Como dizia uma canção contemporânea dos meus diários, os animais são uns bichos interessantes. Esse verso, acho, poderia ter escrito, sem problemas, nas páginas do meu querido diário. 

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...