domingo, 11 de setembro de 2022

MANHÃS DE SETEMBRO

  

        20° C, marca o letreiro luminoso na fachada da farmácia. Dia cinza-chumbo, com ventinho que me força a puxar o zíper até o pescoço (se pudesse, puxava-o até o queixo). Olho mais uma vez o letreiro: engraçado, podia jurar que a temperatura estava mais baixa.

        Entre duas latas de lixo, uma placa anuncia: ALMOÇO COM OU SEM BALANÇA. Descalço e maltrapilho, um homem desce a Floriano Peixoto, leva nas costas um saco enorme; ri e balbucia... para quem, não sei, tampouco me interessa. Um motoqueiro xinga o garoto que atravessa na faixa. Quem diria, já não se pode sequer atravessar na faixa.

        Na esquina, um bem-te-vi jaz na frieza asfáltica. Será aquele que ainda a pouco trinava na mangueira da minha vizinha? Paro, olho-o. Pessoas apressadas trombam comigo, forçam-me a prosseguir... para onde, já não me lembro. Um careca com a trança mais branca que o cavalo de Napoleão deixa suas sacolas esbarrarem em minhas pernas. Fez de propósito, como quem diz: a calçada não é lugar para ficar plantado feito um poste. Compelido desse jeito acintoso, sigo rumo ao mercado.

        A moça do caixa não me cumprimenta, prefere continuar a fofoca com o embalador: vai rodar e não é só ela, a caixa três e o carinha do hortifrúti também. Ela apalpa minha sacolinha, pergunta se é maçã argentina. Não sabe diferenciar maçã argentina da gala, mas está em dia com a notícia, devia rodar junto com os outros, resmungo, sem tirar os olhos do monitor.

        Na porta do mercado, olho para a praça: estão armando as barraquinhas. Hoje já é quarta, me pergunto, sem saber se atravesso ou não na faixa. Parado feito um poste (começo a dar razão ao careca da trança), me dou conta: amanhã é feriado... deve ser por isso que anteciparam a feira. Férias fazem isso com a gente: perdemos a noção dos dias da semana.

        Na calçada da Carlos Soares, forço a vista: ué, a banca ainda está fechada. É bom que economizo meus tostões. Crianças gritam no pátio da escola, parecem porquinhos no abatedouro... sinto saudades dos recreios na Professor Ormindo: não tinha que me preocupar com mercado, faixa de pedestre, feira, tostões, também não prestava atenção em quem ia pelas ruas e se usava trança ou não, muito menos se o cavalo de Napoleão era mesmo branco.

        Ah, no gramado da Professor Ormindo sempre havia bem-te-vis, saltitando entre os galhos dos coqueiros, equilibrando-se na cerca. Eu os via da minha carteira, e invejava a tia Regina: sentada bem mais perto da janela que eu, podia ver não só os bem-te-vis, bem como as serras, os trens, o movimento na estação...  Será que aqueles bem-te-vis eram parentes daquele que faleceu ali na esquina? Talvez seus bisavós... não sei quantos anos vive um bem-te-vi.

Imerso em conjecturas e reminiscências, chego ao cruzamento. Não é cruzamento férreo, mas paro, olho, escuto. De manhã é mais tranquilo, o bicho pega aqui à tarde: não sei donde saem tantos carros e motos e caminhões e ônibus... mesmo assim, prefiro não arriscar, olho de novo.

Atravesso. O vento corta-me os beiços. Êh, setembro está copiando agosto: gelado e cinzento. Nada de céu azulzinho, sol radiante, vizinho cantando como naquela canção da Vanusa. Melhor assim: posso passar o dia enrolado no edredom, relendo velhos gibis.

       

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

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