O celular da mãe tomou chá de sumiço. Procura, procura, já reviramos toda a casa... parece arte de saci, alguém comenta. Olho sob as almofadas, recordo: ontem à noite ouvi assovios meio estranhos enquanto ventava... saci-trique, só pode. Resta apenas vasculhar as gavetas do meu quarto, embora a mãe não guarde suas coisas lá. Procura, procura, encontrei, esquecido num canto da gaveta, um texto sem título escrito em agosto de 2021. Li, reli, tem jeito de crônica, acho; compartilho-o com o leitor:
A noite principia. Vou caminhando pelas ruas. Vésper acompanha a lua nova. O céu, matizado de inverno, parece um idílio celeste. Que bom: ainda há espaço para idílios nestes tempos... Vou caminhando; levo o peso da burocracia. O expediente foi tenso: remarcar audiências e refazer todas as intimações porque, simplesmente, assim o querem. Querer é poder, diz o velho ditado. Há aqueles que querem, portanto, mandam; e como em toda sociedade há os que mandam e os que obedecem, cumpro as determinações. Insatisfeito, mas cumpro. Talvez Marx estivesse com a razão, penso, enquanto vou caminhando pelas ruas.
Olho para o céu: aos poucos enegrece, sem perder a beleza. Ao contrário das vias, que continuam lotadas de carros e motos e caminhões de lixo e ônibus e gente que se esbarra nas calçadas estreitas. Vou caminhando pelas ruas, um olho no idílio dos astros, outro no chão para não tropeçar. Como a feia que ontem tropicou na calçada do Senai e, meio sem graça, me disse: tem ouro ali. Tolamente, respondi: vamos cavar. Segui rumo ao centro, ela se perdeu na multidão. A feia e o tolo: rende um conto, quiçá uma novela.
Vou caminhando pelas ruas – esta crônica, percebo agora, parece aquela canção do José Augusto. Vou caminhando, observo os bares que se abrem, as lojas que se fecham, as academias com seus sons excessivamente altos, os garotos suados na portaria do clube... tudo voltou ao normal. Não obstante, ontem o Jornal Nacional noticiou: são quase 570.000 vidas ceifadas. Vou caminhando, recordo o que comentaram lá no trabalho: mais um morreu no hospital com COVID. Não obstante, os bares reabrem, as escolas retomam as atividades presenciais, a praça recebe os velhinhos para mais uma noite de jogatina, as sorveterias aproveitam o calor atípico e eu, burocraticamente, passei o dia redesignando audiências e expedindo novas intimações. Realmente, tudo voltou ao normal.
Um advogado me para em frente a padaria: quer saber se, na audiência marcada para outubro, o depoimento de seu cliente será tomado pessoalmente ou on-line. Como tudo anda tão incerto, digo-lhe: a informação que eu tinha às dezoito horas era que as partes e testemunhas serão ouvidas presencialmente, mas até outubro tudo pode mudar. O doutor quer saber o que fazer, sugiro: na véspera da audiência, ligue para o fórum... Deixo-o; vou caminhando com um sonho na mão.
Ontem um homem me parou na porta do Itaú: o fórum reabriu para atendimento? Desde final de junho, respondi. E segui meu caminho. Curioso: as pessoas só me param nas ruas para saber coisas de serviço... acho que trago tatuado na testa “meu nome é serviço”. Ninguém me traz notícias boas, nenhuma palavra amena, ninguém quer saber como suporto os tempos pandêmicos... também não comentam sobre a conjunção dos astros, o idílio de Vésper com a lua, as canções de amor que outrora se ouvia na Rádio Cultura, não querem saber sobre os livros que li ou as novelas que assisto...
Subo a ladeira. São tantas coisas a reverberar em meu peito inquieto... No cruzamento da Governador Valadares com a Said Slaibi e a Raul Soares paro, à espera de uma brecha para atravessar. Que falta nos faz um semáforo ou uma faixa de pedestres por aqui. Olho mais uma vez para o céu: inevitável não lembrar os versos daquela canção do Roberto: “Lua nova quando fores e voltares/Trás de volta o meu amor/Que partiu não sei para onde e se esconde/Do outro lado dessa dor...”
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor
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