quarta-feira, 23 de março de 2022

Para o leitor que me escreveu

A chuva se aproxima em sua fúria habitual; o vento a denuncia antes que toque os prédios e o asfalto. Trovões imperam sobre os caminhões e as motos que rasgam a avenida. São Pedro está arrastando os móveis para faxinar o céu, dizia a mãe enquanto a serra branquejava, a tarde silenciava-se em trovoadas e eu, contrariado, recolhia os brinquedos do quintal.

      O vento “ventando pelas cortinas de tule” traz cheiro de terra molhada... lembro o dia que quase incendiei a casa: juntei um monte de papel de presente, risquei o fósforo... não fosse pela tia o fogo subiria pela cortina, se alastraria pelo forro do teto, provavelmente consumiria os brinquedos, os livros de colorir, as revistinhas, a casa toda... por que lembrei isso agora, indago ao vento; afinal, não chovia naquele dia...

      Não fosse a pandemia, neste exato momento crianças uniformizadas estariam correndo nas ruas. Certas coisas não mudam: nos meus tempos de escola, bastava relampejar ou o vento ventar mais forte para o sinal tocar; éramos liberados antes do toró cair. Como gnus desembestados nos empurrávamos no portão, descíamos a ladeira, cortávamos as ruas como coriscos. Todavia, para os meninos que moravam na roça e lá pras bandas da Bela Vista, era inútil: chegavam em casa como pintos molhados. Pelo menos, era o que nos contavam, cheios de prosa, no recreio do dia seguinte.

     Uma garça retardatária voa não sei para onde. O vento silva; na sala, as cortinas dançam. Respondo à mensagem de um leitor: obrigado e o emoji ruborizado, acho, são suficientes. As pessoas hoje não se ruborizam mais, ouvi Marilia Gabriela dizer há muito tempo na televisão. Se naquele tempo já não coravam, imagine agora. De qualquer forma, antes que o leitor me tome por grosseiro ou pernóstico, envio-lhe a mensagem.

     Continuo com o celular na mão, gasto o tempo e as vistas no Instagram. Quando menino, me mandavam desligar o televisor, não ligar o chuveiro, guardar facas e tesouras assim que começava a chover... Outro ribombar celeste; penso nas palavras do leitor: seus textos são melancólicos e ao mesmo tempo têm muita sensibilidade, fico com vontade de penetrar seu íntimo e conhecê-lo melhor. Fosse uma leitora a me escrever, eu tomaria tais palavras como uma cantada; mas, como se trata de um leitor, acho que é mero deboche. Por outro lado, e apesar dos trovões, ouço a voz politicamente correta a sussurrar-me: os tempos são outros, ao cronista não é permitido restringir o verbo e, muito menos, o gênero... talvez a mensagem contenha mesmo uma cantada vinda de um leitor, digamos, não tão explícito. Ou ele foi explícito e eu não percebi: sou tão lerdo para essas questões.

Súbito, a caneta salta à mão: garatujo numa folha qualquer. Como Emília, abro minha torneirinha, deixo as asneiras jorrarem. Incontroláveis, as palavras esparram-se, como a chuva que começou a tamborilar no telhado.

P.S: ao leitor que me enviou a cantada – ou o deboche, ainda não entendi bem – dedico esta crônica; que saiu assim, molhada e apressada, por culpa da faxina de São Pedro. Quanto a “penetrar-me o íntimo”... deixemos que as enxurradas levem as palavras – e as intenções, se as há -  para os bueiros e as águas turvas do Xopotó. Segue outro emoji ruborizado.

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

sábado, 19 de março de 2022

Voando com os flamenguistas

Vocês se lembram daqueles madrugadores que tingiram de rubro-negro uma de minhas crônicas mais recentes? Pois, então, não é que embarcamos no mesmo voo! Quando os vi zanzando pelo Santos Dumont, não pensei que tinham o mesmo destino que eu. São as coincidências – ou ironias – da vida... Vou pelo corredor à procura de minha poltrona e os vejo, sentadinhos como colegiais uniformizados. Ali estão as loirinhas que furaram a fila do check inn, o casal das malas, um rapaz entre duas moças “num fogo só” como dizia vovó... enfim, flamenguistas por todos os lados.

À minha frente, um deles inventou de mexer na mala. A fila cresce como os índices do desemprego e ele lá, indiferente, esticando o braço, bufando com a máscara sob o nariz, xingando o zíper. E a fila vai crescendo, como os preços dos alimentos... o sujeito se esforça, a camisa 11 sobe revelando a protuberância abdominal. O zíper, enfim, abriu; ele tateia procurando algo no meio das roupas. Eu o observo: é parecido com o Dennis Nedry, de Jurassic Park... suspira; parece ter encontrado o que tanto procurava. Eu ainda o observo, acho que o povo na fila também. O sujeito não pegou nada; agora confere se a mala está bem fechada, se joga na poltrona, sorri pra mim feito um bobo contente. Só espero que nosso Dennis Nedry não esteja contrabandeando nenhum embrião de dinossauro... Sigo à procura de minha poltrona; atrás, vêm os demais passageiros, a maioria flamenguistas. Pensei que em um voo para Porto Alegre eu só encontraria gremistas e colorados.

Mensagens e advertências de praxe, decolamos.

Ninguém ao meu lado, atrás apenas um garoto com o rosto cheio de espinha e um headphone enorme; à frente, um homem de barbicha ruiva cochila. Condições ideais de voo e, sobretudo, ideais para colocar a leitura em dia. Todavia, mal decolamos, os flamenguistas se juntam no meio do corredor, pertinho de mim... a felicidade deste pobre cronista-leitor durou pouquíssimo. Conversam alto e animadamente, como se estivessem num bar ou no Maracanã. O barrigudo é o mais empolgado; fala, gesticula, ri uma risada que mais parece um grunhido de dilofossauro. Um menino de vozinha chata grita para ser ouvido, fala que o Gabigol isso, o Gabigol aquilo... ah, isso me dá coisas, como dizia o Dr. Chapatin. O rapaz e as moças baixaram o facho e, ajoelhados nas poltronas, dão palpites na arbitragem... Agora as loirinhas se juntam ao grupo. Que coisa mais linda, mais cheia de graça: no meio do avião, a delegação rubro-negra se encontra pra trocar figurinhas. E eu achando que em um voo para o sul encontraria o Veríssimo, a Carol Bensimon, o Assis Brasil, o Daniel Galera...

Não consigo me concentrar na leitura. Troco o Érico pelo Tex. Pela segunda vez, a aeromoça adverte: coloquem as máscaras no nariz. No nariz, frisa. Até hoje os infelizes não sabem disso, indago ao índio do terceiro quadrinho que observa a imensidão texana. Eles não sabem usar a máscara, assim como eu nada sei sobre quem jogou ontem e onde o Flamengo jogará – se jogará - nos próximos dias. “Bem aventurados os que não entendem nem aspiram a entender de futebol, pois deles é o reino da tranquilidade.” Carlos Drummond estava certíssimo.

Viro a página; começou a troca de chumbo. Danação, acertaram o ombro do Tex; felizmente foi de raspão. Os flamenguistas falam mais alto, parece que quanto mais subimos, mais elevam o tom. Gargalham como se estivessem no quintal preparando o churrasco enquanto o Galvão anuncia “bem amigos da Rede Globo, em instantes começa mais um clássico...” Impossível ler: parecem apaches em guerra. E, no entanto, o barbicha ruiva ronca na poltrona. Oh, que falta me faz um Dramin!

O sol castiga meu braço; mas se eu fechar a janela, não terei o que ver e vou me irritar ainda mais com o falatório dessa gente. Só falta tirarem das mochilas pandeiros, tamborins, cuícas e improvisarem uma roda de samba... Pensando bem, ver as loirinhas se requebrando não seria nada mal... Retorna a aeromoça. Pede à turba “para usar a máscara adequadamente”, se vai. Do barulho, nada falou. Fico pensando: quem tem cabeça para falar “adequadamente” num voo desses. Os caras gargalham; uma das loirinhas, quem diria, é piadista. O grisalho encostado na poltrona ao meu lado se coça como se tivesse um ninho de carrapatos dentro da bermuda.

Volto a olhar as nuvenzinhas. “Horizonte não enche a barriga de ninguém: mas enche os olhos” como escreveu Rubem Braga. Feliz mesmo é o carinha atrás de mim: ouve sei lá que tipo de música, marcando o compasso com a cabeça e o All Star. Pelo menos, não está ouvindo essas maritacas irritantes... Será que aposentaram o urubu e a maritaca virou a nova mascote do Flamengo e eu não estou sabendo? Preocupado com os fora-da-lei, Tex cavalga sem me responder.




Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor

 

sábado, 5 de março de 2022

Madrugadores



Diz o ditado: Deus ajuda quem cedo madruga. Meu professor de História discordava: os que mais cedo madrugam são os que mais padecem. Não sei com quem está a razão; mas, as quatro e pouca da manhã, as filas já estavam “enormes de grande” no Santos Dumont. Gente com mala, com cara de sono, tensa, emburrada, roendo biscoito, esperançosa, falando pelos cotovelos ou num mutismo agradabilíssimo... pelo visto, não fui o único a madrugar, concluí. Apesar do movimento, os sanitários ainda estavam fechados. O jeito é segurar, pensei. 

Na fila, como de costume, as pessoas reclamavam: do tempo, do preço das passagens, do check in, da taxa para despachar bagagem, do governo (mais pandêmico que os tempos atuais, disse uma dona; mortífero como esse vírus que nem falo o nome, arrematou a senhora ao lado)... Enfim, nada novo: as pessoas estão sempre reclamando. Novidade, ao menos para mim, foi a quantidade de flamenguistas zanzando pelo aeroporto. Parecia que a delegação em peso do Flamengo madrugara. Como eu não tinha o que fazer, comecei a contar: um pouco à frente, quatro homens e um garoto; mais atrás, dois rapazes e um senhor; lá na ponta da fila, duas mulheres e um rapaz; no guichê, um casal despachava a mala; perto da escada, três homens e um menino; no piso superior, mais um punhado se movimentava, não deu nem para contar. Todos trajavam rubro-negro da cabeça aos pés. 

A senhora-que-não-fala-o-nome-do-vírus quis saber: o Flamengo ganhou. Coitada, perguntou para a pessoa errada: sobre futebol, só sei que são vinte e dois homens correndo atrás de uma bola; e isso, pra mim, é suficiente. Para não ser indelicado, contudo, respondi: não sei, quando saí de casa ontem à noite deixei o pai assistindo ao jogo; se o Flamengo jogava, não sei. O assunto morreu. Eu queria tanto que o assunto continuasse, ainda que fosse para falar de futebol; pelo menos o tempo passaria mais rápido, eu não pensaria no banheiro fechado, não ficaria ouvindo a reclamação dos chatos, não olharia os flamenguistas (a animação deles, àquela hora da madrugada, me irritava).  

A fila seguia a passos sonolentos. Quanta gente sem máscara, disse a baixinha que protegia o queixo com uma máscara preta. Tantos avisos espalhados por aí e o povo nem liga, né, comentou uma moça. Um homem cujo bigode me lembrou o Leôncio do Pica-Pau sentenciou: a pandemia acabou faz tempo. A baixinha assentiu, a moça se calou, olhei duas flamenguistas loirinhas que furavam a fila. 

       Uma senhora, voz rouca, cabelos pintados “negros como as asas da graúna” disse: tenho medo de avião, muito medo. Lembrei da canção do Belchior, desejei profundamente que a dona não segurasse na minha mão durante o voo... Como ninguém comentou nada, falei: a primeira vez é assim mesmo, dá medo. Ela me encarou com as lentes embaçadas pela máscara, disse em tom professoral: já viajei quinze vezes de avião, até pros Estados Unidos já fui, e não perco o medo. Olhei para as pessoas que subiam a escada rolante, pensei: eu devia ter ficado calado. Sorri; mas sorriso sob a máscara serve para alguma coisa, tive vontade de indagar à fila que se arrastava. 


Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor


*Publicado originalmente na revista Vicejar

Madonna in Rio

            A Rainha do pop está entre nós. Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os cabelos das meninas e o corp...