sábado, 5 de março de 2022

Madrugadores



Diz o ditado: Deus ajuda quem cedo madruga. Meu professor de História discordava: os que mais cedo madrugam são os que mais padecem. Não sei com quem está a razão; mas, as quatro e pouca da manhã, as filas já estavam “enormes de grande” no Santos Dumont. Gente com mala, com cara de sono, tensa, emburrada, roendo biscoito, esperançosa, falando pelos cotovelos ou num mutismo agradabilíssimo... pelo visto, não fui o único a madrugar, concluí. Apesar do movimento, os sanitários ainda estavam fechados. O jeito é segurar, pensei. 

Na fila, como de costume, as pessoas reclamavam: do tempo, do preço das passagens, do check in, da taxa para despachar bagagem, do governo (mais pandêmico que os tempos atuais, disse uma dona; mortífero como esse vírus que nem falo o nome, arrematou a senhora ao lado)... Enfim, nada novo: as pessoas estão sempre reclamando. Novidade, ao menos para mim, foi a quantidade de flamenguistas zanzando pelo aeroporto. Parecia que a delegação em peso do Flamengo madrugara. Como eu não tinha o que fazer, comecei a contar: um pouco à frente, quatro homens e um garoto; mais atrás, dois rapazes e um senhor; lá na ponta da fila, duas mulheres e um rapaz; no guichê, um casal despachava a mala; perto da escada, três homens e um menino; no piso superior, mais um punhado se movimentava, não deu nem para contar. Todos trajavam rubro-negro da cabeça aos pés. 

A senhora-que-não-fala-o-nome-do-vírus quis saber: o Flamengo ganhou. Coitada, perguntou para a pessoa errada: sobre futebol, só sei que são vinte e dois homens correndo atrás de uma bola; e isso, pra mim, é suficiente. Para não ser indelicado, contudo, respondi: não sei, quando saí de casa ontem à noite deixei o pai assistindo ao jogo; se o Flamengo jogava, não sei. O assunto morreu. Eu queria tanto que o assunto continuasse, ainda que fosse para falar de futebol; pelo menos o tempo passaria mais rápido, eu não pensaria no banheiro fechado, não ficaria ouvindo a reclamação dos chatos, não olharia os flamenguistas (a animação deles, àquela hora da madrugada, me irritava).  

A fila seguia a passos sonolentos. Quanta gente sem máscara, disse a baixinha que protegia o queixo com uma máscara preta. Tantos avisos espalhados por aí e o povo nem liga, né, comentou uma moça. Um homem cujo bigode me lembrou o Leôncio do Pica-Pau sentenciou: a pandemia acabou faz tempo. A baixinha assentiu, a moça se calou, olhei duas flamenguistas loirinhas que furavam a fila. 

       Uma senhora, voz rouca, cabelos pintados “negros como as asas da graúna” disse: tenho medo de avião, muito medo. Lembrei da canção do Belchior, desejei profundamente que a dona não segurasse na minha mão durante o voo... Como ninguém comentou nada, falei: a primeira vez é assim mesmo, dá medo. Ela me encarou com as lentes embaçadas pela máscara, disse em tom professoral: já viajei quinze vezes de avião, até pros Estados Unidos já fui, e não perco o medo. Olhei para as pessoas que subiam a escada rolante, pensei: eu devia ter ficado calado. Sorri; mas sorriso sob a máscara serve para alguma coisa, tive vontade de indagar à fila que se arrastava. 


Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor


*Publicado originalmente na revista Vicejar

3 comentários:

  1. Tive o privilégio de vivenciar esses momentos com você! Que experiência! Que venham mais viagens com aquela!

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  2. Tive o privilégio de vivenciar esses momentos com você! Que experiência! Que venham mais viagens com aquela!

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  3. Tive o privilégio de vivenciar esses momentos com você! Que experiência! Que venham mais viagens com aquela!

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