Olhava algumas marcas do tempo no rosto enquanto, autonomamente, escovava os dentes. Sem o vapor do banho, o espelho é mais implacável, Itamar pensou. Súbito, um estrondo CRÁS BUM PÁ típico das revistinhas que ele lera na meninice penetrou pelo basculante. Itamar largou a escova e as conjecturas na pia.
No cruzamento da Pedro II com a XV de novembro, um Gol abalroara um Palio, empurrando-o contra o muro da escola. Imprensado, o motorista tentava, em vão, abrir a porta. Buzinas impacientes subiam a ladeira, o trânsito congestionava. Curiosos brotavam nas sacadas e janelas; um grisalho de óculos atravessou a rua, fotografando com o celular. Os pedreiros pararam de encher os baldes e rebocar as paredes, certamente pensaram como Itamar: tanto lugar pra bater, bateram logo no muro onde a massa ainda nem secou. A mulher que passeava com o maltês se juntou ao grupo na porta da venda.
De pé, o motorista parecia aturdido; passou a mão no carro, nos cabelos ralos, olhou ao redor, voltou a tocar o carro... o homem do Palio falava sabe-se lá com quem. A julgar pelo SOU FELIZ POR SER CATÓLICO colado na traseira, está conversando com algum santo, ou até mesmo direto com Jesus, ironizou Itamar.
Os pedreiros ajudaram a retirar o Gol; o outro motorista pode finalmente sair e avaliar o estrago. Limpou a mão na camisa; desolado, contemplou os estilhaços no asfalto: dividiam o sol em milhares de pontinhos vítreos. Impertinentes, as maritacas faziam o costumeiro rebuliço no jardim da escola. “O carro prata, menina, parece uma lata de cerveja depois de pisoteada por um bloco de carnaval; o capô afundou, foi parar no volante. O outro é um vinho, está com as laterais destruídas; um dos retrovisores, menina, voou pra longe... não, parece que o cara do carro vinho machucou só a mão; o outro está de costas, não dá pra eu ver.” Itamar ouviu a vizinha do 303 que falava ao celular.
Os curiosos se aproximavam; em seus olhos o desejo por sangue, mais sangue. Não houve, contudo, altercação, sequer trocas de acusações; o público, desapontado, dispersou. Os motoristas conversavam, conversavam indiferentes às buzinas e ao grisalho que fotografava cada detalhe. Um homem com camisa do Flamengo tentava organizar o sobe e desce dos veículos. Quando a polícia chegou, o guincho se preparava para levar o Gol. Sentado no meio fio “o cara do vinho fala e gesticula sem parar no celular.”
Itamar, cansado de ouvir a vizinha, fechou a janela. Vida que segue, lembrou-se da frase que sempre aparecia nas redes sociais. Voltou ao banheiro; mirou-se, desapontado. HUMMM HAMMM UHHH AHHH penetravam pelo basculante e, dessa vez, em nada lembravam as revistinhas que ele lera na meninice. Observou as entradas e os fios brancos na barba por fazer. Há anos/e com furor/amei-te sincero/entregando-te mais que tesão/e coração. Os versos que rascunhara ao acordar ricochetearam no espelho; agora, contudo, soavam tolos e inúteis.
Rosenilda entrou na sala. Largou as sacolas no chão: teve a impressão que o patrão falava sozinho.
_ O senhor não sabe o que aconteceu!
Sei sim, ô se sei, Itamar quis comentar. Mas como não adiantava, encostou-se à parede do corredor, esperando o relatório.
_ A filha do véio aí do 607 subiu o elevador comigo agora; chorando, desorientada, os braços tudo roxo. Disse que o marido bateu nela. Me garantiu que não volta mais pra casa; diz que o sujeito tá cada vez mais violento, que dessa vez bateu nela porque ela manchou o uniforme dele com água sanitária... semana passada foi porque ela salgou demais o feijão. Homem assim merece a morte, disgramado dos inferno.
A máscara e a indignação embaçavam os óculos de Rosenilda. O sorriso do patrão deixou-a ainda mais exasperada. Recolheu as sacolas, foi à cozinha. O vizinho cantava no chuveiro; “mais uma dessas porcarias do momento”, Itamar resmungou. Guardou o bozzano e a gilete: amanhã faço a merda dessa barba. Encarou-se novamente: as marcas do tempo e o falatório da empregada fizeram-no esquecer o poema.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor
*publicado originalmente na edição de janeiro/2022 da Revista Conhece-te.
Muito bom! Parabéns! Um relato que nos coloca dentro dele de forma especial pelos acontecimentos cotidianos. Não faço barba mas já guardei minha poesia...
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