De vez em quando, gosto de reler meu diário: revela um pouco do menino que fui naquele longínquo 1997.
Pobrezinho:
suas páginas amareleceram, o papel da capa já se desgasta em vários pontos.
Toco-o com cuidado – afinal, é o único que restou – e sobretudo toco-o com
ternura. Oxalá resista por muitas décadas ainda!
Noutra crônica[1] contei aos leitores que,
durante o primeiro grau, escrevi com regularidade um diário: fazia parte das
tarefas de casa que Dona Edith, a professora, passava para a classe. Todavia,
não gostava de escrevê-lo e, para ser bem franco, odiava sentar, todo fim de
tarde ou começo de noite, para preencher as vinte e tantas linhas exigidas... Não
via sentido algum em escrever sobre a vida besta que eu levava, num lugar
besta, cercado de gente besta. Como podem perceber, eu era também uma besta — e,
pior: uma besta rebelde.
Tanta coisa para fazer, tantas fases
do Super Mario para vencer, tantas revistinhas para ler... e eu tinha que
ficar ali, inventando lorota. À mesa da cozinha, vociferava contra o afazer
escolar.
Às vezes, dava vontade de soltar o
verbo, confessar ao diário o que me dilacerava o coração e inquietava a alma — como
fazia Helena, personagem de Regina Duarte, em Por Amor. Mas — sempre há
um “mas” na vida da gente — eu
me retraía e refreava a caneta: os diários ficavam sujeitos ao visto e aos
olhos cirúrgicos da professora, que vivia à cata de erros ortográficos e de concordância,
de um chiste para contar à classe... “É ruim que vou me expor ao mundo”, eu resmungava.
E, resmungando, sufocava a vontade de abrir o leque.
Mas
não pensem os leitores que tinha grandes revelações a fazer. Eram apenas
pecadilhos e desabafos pueris — coisas de menino que, mesmo assim, não ousei
registrar no diário.
O
que escrevia eram coisas como esta anotação, feita às 18h37 do dia 02/09:
Cigarra morta
Vês... É uma cigarra morta, asas douradas
completamente roídas e estragadas,
levada pelas formigas...
Olhaste-me e eu pude compreender...
Não digas nada, meu irmão, não digas,
— os poetas... as cigarras
não deviam morrer.
Esta
poesia de J. G. de Araújo Jorge mexeu muito comigo, pois gosto demais de
animais.
Realmente, gostava muito de animais — vivia mesmo
rodeado por eles. “Os
animal, tem uns bicho interessante”, dizia uma canção contemporânea dos
meus diários.
[1] Meu querido diário, publicada em A vida segue, livro de crônicas do autor.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor
Ah Rafael...
ResponderExcluirAcho que ainda há espaço em sua janela para alimentar uns sabiás e sanhaços, com uma simple banana ou uma banda de mamão logo depois do acordar fazendo um diálogo fantástico com o seu passado, seu diário e sobretudo, com ese seres alados maravilhosos, que estão precisando demais de Vc nesse momento. Assim como ocorreu com a siriema.
Sanhaços ainda não vi por aqui, mas vou prestar mais atenção.
ExcluirAh tinha tantos sábias no quintal de minha vó... Qualquer dia vou falar sobre eles, os sábias e o quintal da vó.