domingo, 4 de setembro de 2022

MEU QUERIDO DIÁRIO II

  

        De vez em quando, gosto de reler meu diário: revela um pouco do menino que fui naquele longínquo 1997... Pobrezinho do meu diário, suas páginas amareleceram, o papel de presente que o encapa já se desgasta nas lombadas. Toco-o com cuidado – afinal, é o único que restou – e, sobretudo, toco-o com ternura. Oxalá resista a muitas décadas.

        Noutra crônica, contei aos leitores que, durante o primeiro grau, escrevi com regularidade um diário: fazia parte das tarefas de casa que a professora de Português passava para a classe. Todavia, eu não gostava de escrevê-lo e, para ser bem franco, eu odiava sentar todo fim de tarde ou começo de noite para preencher as vinte e tantas linhas exigidas... não via sentido nenhum em escrever sobre a vida besta que eu levava, num lugar besta, cercado de gente besta. Como podem perceber, eu era também uma besta, e pior, uma besta rebelde.

        Tanta coisa pra fazer, tantas fases do SuperMario pra vencer, tantas revistinhas pra ler e tenho que ficar aqui, inventando lorota... sentado à mesa, eu vociferava contra o afazer escolar.

        Às vezes dava vontade de soltar o verbo, até confessar para o diário o que me dilacerava o coração e inquietava a alma como fazia a Helena, personagem de Regina Duarte, em Por Amor. Mas – e sempre há um mas na vida da gente – eu me retraía, refreava a caneta. Afinal, os diários ficavam sujeitos ao visto e aos olhos cirúrgicos da professora, sempre à cata de erros ortográficos e de concordância ou de um chiste para contar à classe... É ruim de me expor ao mundo, eu resmungava sufocando a vontade de abrir o leque.

Mas, não pensem os leitores que eu tinha grandes revelações a fazer. Eram apenas pecadilhos e desabafos pueris, coisas de menino que, mesmo assim, não ousei registrar no diário. Vejam esta anotação do dia 02/09, feita às 18:37 horas:

“Cigarra morta

        Vês... É uma cigarra morta, asas douradas

        completamente roídas e estragadas,

        levada pelas formigas...

        Olhaste-me e eu pude compreender...

        Não digas nada, meu irmão, não digas,

        - os poetas... as cigarras

        não deviam morrer.

 

        Esta poesia de J. G. de Araújo Jorge mexeu muito comigo, pois gosto demais de animais.”

        Em minha meninice, não li muita poesia. Talvez porque não houvesse biblioteca na escola (e na cidade), talvez porque diziam “é coisa de menina e de fresco”, talvez... ah, há tantos talvez no caminho dum garoto. Em casa, havia poucos livros de poesia; uns volumes em capa dura do J. G. de Araújo Jorge com versos de amor, pelos quais eu não me interessava nem um pouco, e uma edição de bolso do Orfeu de Jorge de Lima. Mas este poema da cigarra me entusiasmou, a ponto de ir parar no diário.

Faltava-me poesia, sobravam-me animais...

        Tive a felicidade de morar numa casa com quintal. E de ter a companhia de muitos animais: galinhas, codornas, periquitos, papagaio, coelhos, cachorros, galo garnisé, canários. Imagine, leitores, que até seriema viveu lá em casa; pelo menos, viveu o tempo que precisou para se recuperar de um ferimento na perna. Afora esses bichos que, digamos, eram meus, tinha aqueles que circulavam pela casa: os vira-latas que alimentávamos na porta, os pombos e pardais que viviam no terreiro catando painço e alpiste, a corujinha que durante muito tempo fez ninho num buraco no telhado e, toda noite, nos encarava, ressabiada, enquanto a gente a olhava da janela.

Os animais nos ensinam muito sobre a alma do mundo.

        Hoje, sem quintal e sem um passarinho para alimentar, observo da varanda: pelas manhãs, tucanos costumam brincar na árvore da Escola Normal enquanto pombos inconvenientes arrulham e zanzam na cobertura do prédio; de tarde, as maritacas vêm desafinar sua melodia e, penduradas nas telhas, parecem dizer: bicho mais esquisito esse, vive sentado com um livro na mão e olhando pra nós feito uma besta... De uns tempos pra cá, deu para aparecer uns urubus feiíssimos que rodopiam pelos telhados dos prédios, pousam no muro das casas, batem as asas, se vão. Nos apartamentos vizinhos, cães fungam, rosnam e latem quando passo pela escada e, no 203, o gato, sempre refestelado na janela, sonha com o dia que enfim conseguirá escapar para o mundo. Ó, inocente gato, se soubesse como é a vida... colocaria seus bigodes de molho e nunca mais desejaria botar suas patas branquinhas aqui fora, nem por um segundo.

Como dizia uma canção contemporânea dos meus diários, os animais são uns bichos interessantes. Esse verso, acho, poderia ter escrito, sem problemas, nas páginas do meu querido diário. 

 

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

2 comentários:

  1. Ah Rafael...
    Acho que ainda há espaço em sua janela para alimentar uns sabiás e sanhaços, com uma simple banana ou uma banda de mamão logo depois do acordar fazendo um diálogo fantástico com o seu passado, seu diário e sobretudo, com ese seres alados maravilhosos, que estão precisando demais de Vc nesse momento. Assim como ocorreu com a siriema.

    ResponderExcluir
    Respostas
    1. Sanhaços ainda não vi por aqui, mas vou prestar mais atenção.
      Ah tinha tantos sábias no quintal de minha vó... Qualquer dia vou falar sobre eles, os sábias e o quintal da vó.

      Excluir

Outra vez no cinema

            Viu nas redes sociais que está em cartaz o novo longa dos Caça-Fantasmas. Nessas horas servem pra alguma coisa útil, essas redes...