Dezembro: mês propício à nostalgia. Talvez por ser o derradeiro mês; ou por trazer sempre a urgência entranhada em seus dias: corre-se para compras, corre-se para concluir cursos e tarefas, corre-se para entregar balancetes e relatórios, corre-se para organizar festas, corre-se para (e das) confraternizações de trabalho, corre-se para viajar, corre-se para fazer as unhas e os cabelos, corre-se à costureira para a última prova... em dezembro, até esquecemos de viver, e amar. Talvez por tudo isso, ou sei lá por que, dezembro me deixa nostálgico.
Pisca-piscas piscam nas árvores, lojas tocam velhas canções natalinas, pessoas falam em (re)encontrar-se. À janela, viajo em recordações... deram-me uma tarefa (valia preciosos pontos para alguma disciplina, não me lembro qual): encontrar pinhões. “Para enfeitar, junto com as bolas e as guirlandas e os festões, a nossa escola” Dalva justificou. Onde encontrar os tais pinhões, indaguei em pensamento às ruas vazias e aos trilhos esquecidos sob o sol. Como uma telepata de histórias em quadrinhos, Dalva me mandou ao horto florestal... horto, que horto? até então eu nunca ouvira falar que havia um horto na cidade... “na rua do cemitério, você quebra à esquerda, vai em frente toda a vida”, ela explicou e voltou aos seus afazeres. Contrariado, fui.
Pedala, pedala, pedala. Cheguei. Porteira rangente, casinha decadente sem vivalma (haveria assombração entre aquelas paredes empoeiradas, a imaginação, em ebulição, questionou). Isto não é um horto nem aqui nem na China comentei para o Mickey estampado na minha camiseta. Silêncio incômodo. Lugar ideal para o esconderijo de um psicopata que, a qualquer momento, saltaria pela janela, me atacaria com uma motosserra... a mente voou, as pernas bambearam, os olhos ficaram em alerta. Larguei a Monark, o mato seco farfalhou sob meu Rider; recolhi do chão os primeiros pinhões que vi, coloquei-os na sacola, a sacola foi para o guidom, parti ligeiro. Pedala, pedala, pedala, passei pela estação - que, assim como as ruas e o horto, estava morta -, quebrei à direita.
Dalva reclamou: os pinhões poderiam ser mais bonitos. Na garagem, sob as telhas de amianto, os colegas costuravam um Papai Noel. A princípio, achei-o esquisito, meio desengonçado; contudo, quando o rechearam com serragem, pareceu-me vivo e mais simpático. Dias depois, colocaram-no sentado numa cadeira no pátio da escola; ao seu lado, a Mamãe Noel, meio tímida, olhava o chão de cimento.
Ao longo da semana, tive também que recortar e pintar caixas de papelão. A tarefa: montar casinhas; dentro de cada casinha ficaria um boneco vestido com gorro e roupa vermelhos; aos seus pés, os pinhões que recolhi. Caixas e potes de tinta espalhados na mesa, cada um se esmerou em fazer a sua casinha. Eu, no entanto, pintava e reclamava achando tudo um saco: queria, na verdade, voltar para casa e assistir televisão... uma caminhonete passou a caminho do abatedouro. O guincho dos porcos rasgou o silêncio da tarde. Comentei para ninguém em particular: gente ruim e assassina. Sempre de butuca, Dalva quis saber: você come carne. Achei a pergunta óbvia pois, até então, eu pensava que todos comiam carne; respondi com naturalidade: sim. “Então, não fale o que não deve”, ela disse e caminhou para os fundos da garagem. Risos debochados espalharam-se na mesa; uma voz irritantemente grave disse “bem feito”. Calado, peguei meu pincel, voltei à minha obrigação.
As casinhas ficaram penduradas no corredor da escola. Tive a ideia de colocar na minha casinha o boneco do Chico Bento (o último brinquedo que ganhei de presente); colei algodão em seu rosto para simular a barba, joguei talco em seus cabelos, pedi à madrinha que costurasse uma roupinha e um gorro para vesti-lo... passei a noite revirando na cama, temendo que sumissem com ele. Na minha imaginação, um ladrão pularia o muro da escola só para roubar os bonecos fantasiados de Papai Noel, as casinhas de papelão e os pinhões.
O horto não existe mais: virou um bairro residencial (mais um); meu Chico Bento se perdeu no tempo assim como os bonecos que a turma costurou – aliás, por onde andam meus colegas de escola, questiono ao vento que adentra meu quarto anunciando chuva. A escola ainda está lá, mas diferente: me parece menor, não tem os sons e as cores daquele tempo... também mudei – antes fosse apenas uma mudança geográfica.
Da janela, observo o ano descerrar-se. Mais um dezembro se vai; apressado, como as pessoas e os veículos lá embaixo. Enquanto a chuva não chega, recordo uma antiga canção: e à tardinha o sol poente/deixa sempre uma saudade na gente.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: gentilmente cedida por Aparecida Tavares
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