quinta-feira, 10 de dezembro de 2020

Clarice e eu

 

         A Folha trouxe na Ilustrada de 05/12 série de artigos sobre o centenário de Clarice Lispector. Escrevo esta crônica para não deixar a efeméride passar em brancas nuvens. E, de antemão, advirto: fãs e idólatras de Clarice, não leiam este texto.

       A primeira vez que ouvi falar em Clarice eu tinha por volta de dezesseis anos. Para a geração que cresceu dentro das redes virtuais, isso pode soar estranho. Afinal, Clarice é a escritora mais citada nas redes, sobretudo, no Facebook. Claro que, muitas vezes, atribuem-lhe frases que não são de sua lavra. Mas em tempos de fake news, convenhamos, isso é insignificante. Dito isto, regresso ao meu longínquo ensino médio quando a professora nos obrigava a decorar escolas literárias, datas, ler e reler fragmentos de romances e poemas. Para apresentar trabalho sobre Clarice, fiz cartaz em cartolina, caprichei na caligrafia - escrevi palavras-chave para explicar o pensamento lispectoriano -, decorei frases da apostila. Tudo para explicar aos colegas os pontos importantes da matéria e, principalmente, ganhar pontos no bimestre. Eu não lera sequer um livro da Clarice, mas tinha que explicá-la... coisas de escola.  

        No ano seguinte, às vésperas do vestibular, me meti a ler Laços de Família. Naquela época as universidades exigiam a leitura de alguns livros literários. Não tenho certeza se foi a UFV ou a UFJF que adotou o livro da Clarice. Lembro que o li, por três motivos: primeiro, porque gostava de literatura e pensei: será a oportunidade para conhecer uma obra sua. Segundo motivo: rebeldia. Rebelde, eu recusava a ler os resumos dos livros, como os colegas faziam. Rebeldia às avessas, bem meu estilo mesmo... O terceiro motivo foi, digamos assim, mais novelístico. Na época, a Globo exibia Laços de Família, novela com a estonteante Vera Fisher como protagonista. Achei que se tratava de adaptação da obra de Clarice. Daí, curioso para conhecer os destinos de Helena, Edu, Camila e companhia me aferrei ao livro. Ah, dupla decepção! Do livro, a novela só tinha o título. E os contos eram tão incompreensíveis para mim – tão introspectivos, como dissera a professora – que me decepcionei. Recordo um conto que narrava o aniversário de uma velha; sentada à mesa a infeliz encarava a hipocrisia familiar ao seu redor. Lembro também da narrativa meio filosófica sobre uma galinha. O que a velha e a galinha faziam, não me recordo. Vinte anos se passaram... o tempo ruge, como diria Giovanni Improtta. E a memória se fragmenta, eu digo.

       O tempo rugiu. Muitas memórias se fragmentaram. Não voltei aos textos de Clarice. Tomei ranço, como a moçada diz hoje em dia. Certa noite, assisti no canal Brasil A hora da Estrela. Que xaropada! Não fui acostumado a ver esses “filmes cabeça”, como diz um colega. Curto filmes de ação com Stallone, Bruce Willis, Steve Segall, do Indiana Jones, de super-heróis e os faroestes com o Clint Eastwood. Mas filmes cult não são minha praia: tenho que pensar muito para entender. E, para mim, filme bom é aquele que se assiste anestesiado, comendo pipoca, bebendo guaraná e torcendo para o herói socar a cara do vilão. No entanto, insone, assisti ao filme da Clarice até o fim. E continuei com ranço. Coitada, e agora a culpa nem era dela.

Há cerca de quatro anos, fazendo hora para pegar o Unida, entrei na Nobel. Passeei os olhos pela estante de literatura. Em destaque, uma edição bonitinha, tons suaves na ilustração da capa. Lá estava Clarice com seu A hora da Estrela. A obra estava na lista de leituras obrigatórias para o exame do COLUNI, ou do PASES, não lembro bem. A história de Macabea, que a professora falara tanto e que me entediara na televisão, estava ali ao alcance de meus dedos. Trouxe para casa, como resultado de minha incursão na livraria: O Crocodilo (livro chatérrimo do Dostoievski), Tarzan (numa edição capa dura e fascinante da Zahar) e A hora da Estrela. Chegara, enfim, a hora de reencontrar Clarice. Li, depois do Tarzan. Não digo que gostei, também não desgostei. Não me tocou o espírito. Mas, pelo menos, fui até o fim.

2020, o anno horribilis. COVID, cloroquina, vermífugo-mata-vírus, inflação, desemprego, incêndio no Pantanal, Jair & Filhos, Moro e a reunião nos idos de abril, Queiroz, o vai e vem de Regina na Cultura, o circo eleitoral... enfim, avalanche de pragas. Piores que as bíblicas. Nas horas vagas - e foram muitas - li. Nas esquinas da casa, encontrei Clarice. Cruzei com Perto do Coração Selvagem. Não passei da quinta página. Sentado na varanda, sob o silêncio imposto pela pandemia, entendi patavina do que estava escrito. Reli mais atento. Continuei sem entender. Como a vida é curta demais para tanto esforço, larguei Clarice de lado. Fui viajar com Júlio Verne pela África em um balão.

Um dia, talvez, me reconcilie com Clarice. Por enquanto, não dá. Estamos de mal, rompidos. No seu centenário, continuarei a lê-la no Facebook (ainda que a maioria das frases não seja sua). É o mais perto que o meu coração selvagem consegue chegar da Clarice.   

 






       Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto:  Casa dos Contos, Ouro Preto (acervo do autor) 


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