quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

O VERÃO COMEÇOU CHUVOSO


        A serra branquejava no meio da tarde. Sem entender o que se passava, o menino ajeitou os óculos e perguntou: cadê a serra. Quando criança também fiz tal pergunta. Me disseram: toda vez que chove lá na serra, ela fica branquinha e a chuva chega aqui pouco depois. Repeti essa explicação ao menino. Mas acho que não o convenci, a julgar pela sua cara. Incrédulo – ou me achando um bobalhão – foi jogar no celular.

          A chuva chegou precedida da brisa úmida. Lembrei os tempos de escola: quando as nuvens se avolumavam e o vento balançava as palmeiras do pátio, o sino batia. Todo mundo era, então, liberado. Saíamos correndo, feito mulas desembestadas, pelas ruas, atravessando os trilhos da Rede, a pracinha, a ponte, torcendo para chegar a casa antes do toró desabar.

         Toró. Há quanto tempo não ouço essa palavra. “Vai cair o maior toró”, assim dizia a vizinha do 92 que vivia sentada à porta. Quando os primeiros pingos caíam na rua de terra batida, ela corria para recolher as roupas do varal. Na calçada a cadeira, esquecida, suportava o toró.

           Quando a chuva chegou, eu estava sentado na varanda. Rápida e furiosa, molhou minhas pernas, respingou as folhas do livro que eu lia. Tive que correr para recolher as roupas no varal. Ironia do destino, hoje sou eu quem se preocupa com as roupas no varal. Também me apressei para fechar as janelas. Finda a missão doméstica, fui para o quarto concluir a leitura de “A águia de quinze dólares”. Pela fresta da janela, vi as nuvens carregadas: hoje não vou caminhar na Dr. Lelé. Pensei também na tatuagem que o personagem do conto da Sylvia Plath mandou fazer no braço. Nunca tive vontade de me tatuar. A vida deixa marcas demais, não preciso tatuar águias, nomes e corações ingênuos.

          O tempo fechou. Pela fresta da janela, eu filosofava. Filosofia de alcova, literalmente.  A chuva forte atrapalhou os feirantes que armaram barracas na praça. Coitados, na quarta passada também choveu... se criaram expectativas de impulsionar as vendas para a ceia do Natal, se frustraram.

           Chove muito forte. Sinto fome. Na cozinha, me arrependo de não ter comprado um chocotone maior. O que comprei ontem à tarde já se transmutou em calorias e saudade. O estômago ronca querendo aparecer para os trovões. Competição vã, tento lhe explicar. Mas meu estômago não se alimenta de palavras tolas. Uma banana, então, para enganá-lo.  Pela fresta da janela, observo a enxurrada cobrindo as ruas, a praça, passando sob as barracas. O verão começou chuvoso esse ano.

 



Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: Bento Gonçalves (acervo do autor) 

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