sexta-feira, 8 de abril de 2022

RESIGNADO

 _____Tenho cabelos brancos. Muitos cabelos brancos. Faz tempo que os tenho. E a cada dia surgem mais, por todos os lados. Não gosto deles; contudo, não vou pintá-los: acho ridículo cabelo pintado. Quando os homens pintam de preto, parece que carregam um corvo; ficam como Johnny Depp em O Cavaleiro Solitário... Ou seria gralha aquele bicho emplumado que vivia na cabeça dele? Não importa: corvo, gralha ou anu é ridículo do mesmo jeito.

_____Por outro lado, se tingir meus cabelos de acaju, como faz certo doutor que passa todo dia na minha porta, dirão: ó, um urutau está ninhando na cabeça do cronista... porque eu penso isso sempre que vejo o doutor (não digo, porque temo ser processado, mas penso). Nem a sua pasta velha, seu terno amarrotado e sua cara de boi cansado me chamam tanto a atenção quanto seus cabelos. Enfim, preto ou acaju, o cabelo fica igualmente ridículo.

_____Resigno-me, então, aos cabelos brancos. Deve ser melhor tê-los que levar a cabeça pelada como os habitantes de Tatipirun. Afinal, o que tem de careca sonhando com cabelos, ainda que brancos... as perucas e os implantes que o digam. Pensando bem, eu não deveria escrever sobre questões capilares: vai que algum deus zombeteiro lê e arranque-me todos os cabelos, brancos e não-brancos... “Certa manhã, depois de despertar de sonhos conturbados (...) encontrou-se em sua cama metamorfoseado” num tristíssimo velhinho, sem um fio sequer de cabelo. Parece que ouço as gargalhadas divinas, insensíveis ao meu dilema quase kafkiano.

_____Suporto, então, meus cabelos brancos. Homessa, o que se há de fazer, indago ao espelho. Sem resposta, observo a brancura capilar. Como o servo ante o senhor, a caça ao caçador, o desejo ao amor curvo-me, sem jeito e resignado.

_____Tenho cabelos brancos. Cabelos brancos que me açoitam toda manhã: o tempo passou, meu caro, agora és o tio da Sukita, em pouco serás como o Painho da novela Renascer, daí para virar o Mestre dos Magos será um pulo, um reles piscar de olhos. Meus cabelos brancos lutam e vencem e esfregam na minha cara o que o corpo diz há certo tempo: já não tens mais vinte e poucos anos. “O que que há, velhinho?” Agora entendo como o Pernalonga era maldoso...

_____Outro dia, em um fim de tarde burocrático, uma senhora que atravessa os trinta me disse: cabelo grisalho em homem é charme. Olhei a rua, os adolescentes saindo da escola, pensei: as pessoas e seus eufemismos, talvez trocando branco por grisalho achem que suavizam nosso outono. Sorvi as últimas gotas do chá, vesti a máscara, resmunguei – de uns tempos para cá dei pra resmungar como o Detetive Rabugento. A burocrata continuou o assunto, falando nos artistas grisalhos... tive ganas de dizer-lhe algo indecoroso, uma palavrinha atrevida quase saltou de minha garganta feito um refluxo, mas me contive, em respeito à sua idade, e aos seus cabelos pintados.

_____Na cabeça do Édson Celulari, do George Clooney, do Hugh Grant, do Fábio Assunção, do Richard Gere ou do Brad Pitt cabelos brancos podem ter lá seu charme. Mas como estou anos luz de ser galã, passo os dias olhando a branquitude que se espraia em minha cabeça. Sem opção e resignado, “toco a vida pra frente/fingindo não sofrer”.



Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor 


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