sexta-feira, 1 de abril de 2022

As viagens de Umberto

 

          Mais uma vez Umberto colocou os livros na mala, decorou meia dúzia de poemas e frases que, supôs, causariam efeito na plateia, copiou versos de Adélia Prado. Vai ser bom ler algo de uma conterrânea, afinal, a gente tem que puxar a sardinha pro nosso estado. Achou que o trocadilho agradaria ao público, anotou-o. Na manhã seguinte, conferiu a quantidade de exemplares na mala – 48 –, a escova e a pasta de dentes, as roupas emboladas entre eles. Empurrou o pão murcho com Doriana, colocou um livro na jaqueta, saiu.

         Canarinhos e pardais brincavam na rua. Desde menino, Umberto admirava a elegância das aves, sobretudo, a liberdade das aves. Arrastando a mala pela calçada, desejou estar em um desenho de Walt Disney: provavelmente os passarinhos o ajudariam a levar a mala... Versos e esperança pesam pra caramba, pensou.

         O ônibus atrasou, como sempre. Não bastasse isso, ficou quarenta e cinco minutos parado na cidade vizinha: para fazer conexão, explicara o trocador. Essa empresa copia o que há de pior nas companhias aéreas, ouviu de uma passageira. Como nunca voara, Umberto sorriu, sem saber o que dizer. Embarcaram novamente. Poltrona dura, ônibus mais fodido que o outro, resmungou.

A estrada tá tão esburacada quanto as calçadas da cidade, alguém comentou. Umberto tentou focar na leitura, apesar dos solavancos. Lá pelas tantas, largou o livro; arrependeu não ter trazido o Jorge Amado: ele, sim, é excelente companheiro de viagem. Recostou a cabeça: disgreta de livro, quase nenhum enredo, esse portuga escreveu um monte de descrições cansativas e desnecessárias... único ponto positivo: chama o sono.

         Acordou horas depois, com o barulho da cidade. Essa chuva vai esticar pelo resto do dia, afastar o público do evento, previu. Não deu outra: pouquíssimas pessoas compareceram. Umberto declamou seus versos e as frases sem, contudo, causar o efeito esperado; ao ler os poemas de Adélia (na última hora o bom senso imperou, não fez o trocadilho), aplaudiram-no.

Uma escritora lhe pediu que lesse a crônica mais recente dela: sua voz me lembra o Lombardi, vou filmar pra postar no meu canal. Umberto riu, recordando a infância: nos domingos frios e chuvosos passava o dia inteiro assistindo o Sílvio Santos com a mãe...

Após o sarau, um homem corpulento, de chapéu e botas de couro, rosto curtido de sol e fartos bigodes se aproximou, pegou o livro, perguntou se podia pagar com PIX.

         _ Me chamo Arizona. Arizona Stone.

Umberto, lembrando os filmes de bang bang que via com o pai nas tardes de sábado, pensou em escrever: para o gatilho mais rápido do oeste, estes versos, árduos como o sol e o solo texanos, com um empoeirado abraço do xerife... Arizona, mãos na cintura, esperava a dedicatória com jeito nada amistoso. Umberto garatujou: um abraço do autor, e datou. O homem recebeu o livro, sacou o celular para mostrar o comprovante de transferência, atravessou o salão. Sorrindo, Umberto recordou o que pretendera escrever: até hoje não saí da quinta série, falou para os livros espalhados na mesa.

A romancista que lançava seu quinquagésimo quarto livro o encarou. Maldoso como só um moleque da quinta série sabe ser, Umberto comentou:

_ Pelo visto, não sou o único que vende pouco...

Furiosa, a mulher foi conversar com os organizadores. Ele riu. A tarde se arrastava, a enxurrada levava folhas e sacolas. À janela, Umberto contabilizava: sonhos e livros nos estandes; nos bolsos, caraminguás. Como no ano passado, suspirou, embaçando o vidro.

No final do dia, muitos escritores trocaram livros e afagos.

_ Parecem meninos trocando figurinhas; falta bater bafinho.

 Os contistas olharam-no com espanto, os poetas com desdém, os romancistas sorriram condescendentes. Os cronistas convidaram-no para um chopinho. Umberto recusou: encerraria o dia no hotel, rascunhando bobagens e assistindo à novela.

A chuva varou a noite, deixando-o melancólico. Ele sabia que a acusação fora injusta: ainda que fizesse sol, o público não compareceria; “isso aqui é um pouquinho de Brasil”, concluiu, encarando o livro. Portuga duma figa, você não volta comigo pra casa, não. Abriu a gaveta, jogou-o sobre a bíblia. O próximo hóspede talvez goste dessa porcaria. Deitou, para cair nos braços de Morfeu, como o pai lhe dizia todas as noites.   

          

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

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