domingo, 31 de dezembro de 2023

No escurinho do cinema

          

O tempo está virando para chuva. Inclusive, sinto a umidade no vento. Apresso o passo. E, para encurtar o caminho, me espremo entre motos mal estacionadas. Minha sacola engancha no guidão de uma Shineray, obrigando-me a retroceder para soltá-la. Bem feito, tivesse ido até a faixa de pedestre, não acontecia isso, digo a mim mesmo.   

        Os veículos descem lentamente, parece cortejo fúnebre. Impaciente, espero uma brecha para atravessar. Brecha que, pelo visto, não virá tão cedo.

        O sino da matriz bate as três. Um corolla para. Agradeço com um aceno. Uma gestante passa por mim a levar um menino pela mão. “Num quero ir, quero ficá!”, berra, tentando se soltar. Buzinas cobram agilidade. Um motoqueiro xinga o motorista do corolla, avança a toda pela direita. Por um triz, não levou o birrento.  

 Nessa cidade, as pessoas se impacientam até com uma gentileza. Já a salvo na praça, rio de mim mesmo: censurei as buzinas, mas há alguns minutos era eu o impaciente que resmungava contra a lentidão do trânsito.

O cadarço do tênis me afasta das divagações. Deixo a sacola no banco, agacho para amarrá-lo. Donde estou, vejo, num ângulo interessante, o prédio onde funcionou o cinema. Em reformas. ‘Restauração da fachada’, publicaram n’ A Voz. Segundo a reportagem, ao término das obras, terá ‘uma sala para atividades audiovisuais’... Queiram os deuses protetores da Sétima Arte não fique só na promessa!

Pego a sacola. Retomo minha marcha apressada.

        Os antigos contam dos tempos que o Cine Brasil funcionava ali naquele prédio. Alguns, cuja memória não se foi junto com os cabelos e o vigor, recordam os filmes assistidos: sessões de faroeste, musicais em preto-e-branco, comédias do Mazzaropi, chanchadas da Atlântida... Certa feita, um senhorzinho me confidenciou: os peitos de mulher mais bonitos que eu vi na vida foram nesse cinema aí. Cofiou o bigode à lá Charles Bronson, seguiu calçada afora levando o sorrisinho dúbio. E eu fiquei a cismar se estariam os peitos em techinicolor ou ao alcance de sua mão na poltrona ao lado.

As árvores sacolejam com a ventania. Um galho tomba a poucos centímetros de mim. Os velhinhos desfazem canastras, recolhem o tabuleiro. Devem ter frequentado o Cine Brasil e chupado muitos drops de anis, penso... lamento não ter, como se diz, pego esse tempo: quando nasci, o cinema estava desativado há décadas.

De repente, o dia veste cinza-chumbo. Vou pela Raul Soares feito um expressinho.

A chuva me pega na porta de casa.  

Subo as escadas. Nalgum apartamento entre o segundo e o terceiro andar, assistem a um filme: as sirenes da polícia americana são inconfundíveis. Os sons vêm ao meu encalço como se fora eu o meliante que os tiras pretendem capturar.

Destranco e tranco a porta, ligeiro como um foragido de Alcatraz.

Enquanto as pipocas estouram, guardo a compra. Um antigo jingle vem à ponta da língua: pipoca na panela começa a arrebentar/pipoca com sal que sede que dá... Abro a geladeira. Não tem guaraná. O jeito é tomar a limonada que sobrou do almoço.

Dou o play em Gênio Indomável. Matt Damon, no auge da juventude, e Robin Williams (pra mim, a eterna babá quase perfeita) hão de me fazer esquecer o toró, as inquietudes que sempre me assaltam no fim do ano, essa vontade doida de beber um Antartica.

O clássico dos anos noventa e Maestro, que assisti ontem, exigem do espectador atenção, entrega e, sobretudo, paciência: são lentos e ultrapassam duas horas... ou talvez não exijam nada disso, eu é que entendo patavina de cinema. Porém, uma coisa sei: à medida que o tempo passa (e não me refiro à duração dos longas), dou conta de que preciso apenas de cenas com bons diálogos, silêncios bem dosados e pouca, ou nenhuma, ação. Ação é para a juventude. Ou, como disse Olyveira Daemon:

“a galera acha que filme adulto é filme com sexo & violência extrema... meu povo, isso é filme juvenil. filme adulto é sempre ritmo lento, lentíssimo, cheio de silêncios & vazios, sem enredo bem definido sem hora pra acabar.”

A chuva salpica a janela. Talvez, enciumada: tenho, em 42” e só para mim, a bela e indomável rebeldia de Will Hunting.

Fecho a cortina. O filme vai começar.    


Texto: Raphael Cerqueira Silva 
Foto: acervo do autor 

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