O
tempo está virando para chuva. Inclusive, sinto a umidade no vento. Apresso o
passo. E, para encurtar o caminho, me espremo entre motos mal estacionadas. Minha
sacola engancha no guidão de uma Shineray, obrigando-me a retroceder para soltá-la.
Bem feito, tivesse ido até a faixa de pedestre, não acontecia isso, digo a mim
mesmo.
Os veículos descem lentamente, parece cortejo
fúnebre. Impaciente, espero uma brecha para atravessar. Brecha que, pelo visto,
não virá tão cedo.
O sino da matriz bate as três. Um
corolla para. Agradeço com um aceno. Uma gestante passa por mim a levar um
menino pela mão. “Num quero ir, quero ficá!”, berra, tentando se soltar. Buzinas
cobram agilidade. Um motoqueiro xinga o motorista do corolla, avança a toda
pela direita. Por um triz, não levou o birrento.
Nessa cidade, as pessoas se impacientam até
com uma gentileza. Já a salvo na praça, rio de mim mesmo: censurei as buzinas,
mas há alguns minutos era eu o impaciente que resmungava contra a lentidão do
trânsito.
O
cadarço do tênis me afasta das divagações. Deixo a sacola no banco, agacho para
amarrá-lo. Donde estou, vejo, num ângulo interessante, o prédio onde funcionou
o cinema. Em reformas. ‘Restauração da fachada’, publicaram n’ A Voz. Segundo a
reportagem, ao término das obras, terá ‘uma sala para atividades audiovisuais’...
Queiram os deuses protetores da Sétima Arte não fique só na promessa!
Pego
a sacola. Retomo minha marcha apressada.
Os antigos contam dos tempos que o Cine
Brasil funcionava ali naquele prédio. Alguns, cuja memória não se foi junto com
os cabelos e o vigor, recordam os filmes assistidos: sessões de faroeste,
musicais em preto-e-branco, comédias do Mazzaropi, chanchadas da Atlântida... Certa
feita, um senhorzinho me confidenciou: os peitos de mulher mais bonitos que eu vi
na vida foram nesse cinema aí. Cofiou o bigode à lá Charles Bronson, seguiu calçada
afora levando o sorrisinho dúbio. E eu fiquei a cismar se estariam os peitos em
techinicolor ou ao alcance de sua mão na poltrona ao lado.
As
árvores sacolejam com a ventania. Um galho tomba a poucos centímetros de mim.
Os velhinhos desfazem canastras, recolhem o tabuleiro. Devem ter frequentado o
Cine Brasil e chupado muitos drops de anis, penso... lamento não ter, como se diz,
pego esse tempo: quando nasci, o cinema estava desativado há décadas.
De
repente, o dia veste cinza-chumbo. Vou pela Raul Soares feito um expressinho.
A
chuva me pega na porta de casa.
Subo
as escadas. Nalgum apartamento entre o segundo e o terceiro andar, assistem a
um filme: as sirenes da polícia americana são inconfundíveis. Os sons vêm ao
meu encalço como se fora eu o meliante que os tiras pretendem capturar.
Destranco
e tranco a porta, ligeiro como um foragido de Alcatraz.
Enquanto
as pipocas estouram, guardo a compra. Um antigo jingle vem à ponta da língua:
pipoca na panela começa a arrebentar/pipoca com sal que sede que dá... Abro a
geladeira. Não tem guaraná. O jeito é tomar a limonada que sobrou do almoço.
Dou
o play em Gênio Indomável. Matt Damon, no auge da juventude, e Robin
Williams (pra mim, a eterna babá quase perfeita) hão de me fazer esquecer o
toró, as inquietudes que sempre me assaltam no fim do ano, essa vontade doida
de beber um Antartica.
O
clássico dos anos noventa e Maestro, que assisti ontem, exigem do
espectador atenção, entrega e, sobretudo, paciência: são lentos e ultrapassam
duas horas... ou talvez não exijam nada disso, eu é que entendo patavina de
cinema. Porém, uma coisa sei: à medida que o tempo passa (e não me refiro à
duração dos longas), dou conta de que preciso apenas de cenas com bons diálogos,
silêncios bem dosados e pouca, ou nenhuma, ação. Ação é para a juventude. Ou,
como disse Olyveira Daemon:
“a
galera acha que filme adulto é filme com sexo & violência extrema... meu
povo, isso é filme juvenil. filme adulto é sempre ritmo lento, lentíssimo,
cheio de silêncios & vazios, sem enredo bem definido sem hora pra acabar.”
A
chuva salpica a janela. Talvez, enciumada: tenho, em 42” e só para mim, a bela
e indomável rebeldia de Will Hunting.
Fecho
a cortina. O filme vai começar.
Nenhum comentário:
Postar um comentário