Primeiro dia de aula. Como sempre, o ônibus atrasou; já me acostumei: ano passado foi todo assim. Numa noite, o trânsito congestionou a Beira Rio; noutra, o ônibus demorou a cortar as ruas estreitas do Centro; na época das chuvas fortes, os buracos no asfalto reabriram e foi uma dificuldade vencer os vinte quilômetros entre minha cidade e Ares Formosos... Às vezes, eu achava que chegaria no horário, mas o ônibus custava a conseguir vaga no estacionamento; resultado: descer lá longe e andar até a faculdade e encarar seus setenta e um degraus porque o elevador... ah, o elevador vive na promessa da reitoria. Nessas horas invejo a galera da Pedagogia: o curso é no térreo. E ainda dizem por aí que vida de estudante é fácil. Fácil é a vida de parlamentar em Brasília.
Porta entreaberta. O professor, de pé, ereto no terno preto como um sabugo encasacado, lia o que julguei fosse o conteúdo programático ou a bibliografia. Caminhei até o fundão. Doralina, sempre gentil, deixou o caderno marcando lugar para mim. O Gianecchini sorria, sem camisa, na capa. Sentei, enxuguei o suor da testa; Doralina recolheu o caderno, sorriu; ao contrário do Gianecchini, um sorriso compreensivo: antes de se mudar para Ares Formosos, ela também passou pelos mesmos perrengues que eu.
No alto do quadro, em letra feia: DOUTOR CLÁUDIO CÂNDIDO. Os colegas acompanhavam a leitura em folhas A4 semelhantes às do professor-doutor. Pedi-lhe uma. Ele abaixou a folha que lhe encobria parcialmente o rosto mal barbeado; o indicador sujo de tinta empurrou os óculos do nariz, a mão voltou ao bolso da calça.
- Meu caro, não tolero interrupções. Esta foi minha primeira advertência ao adentrar a sala. Mas, como o senhor atrasou-se para a aula... Recapitulando, senhores: atrasos e interrupções não são, e não serão, admitidos; a dinâmica da aula é, como comunicado anteriormente, exposição do conteúdo por cinquenta minutos; findo este prazo, concederei aos senhores, no máximo, dez minutos para perguntas. Friso: perguntas atinentes ao conteúdo abordado em sala de aula; quesitos referentes a tópicos estudados anteriormente não serão admitidos. Vale dizer, os senhores quedarão sem resposta. Matéria lecionada é como água do rio: flui, segue seu curso. O conteúdo ministrado é levado pela correnteza do tempo e o Direito, como os senhores devem saber, não socorre aos que dormem. Regra básica para o bom jurista: nunca perca o prazo. Preclusão, senhores; portanto, aula dada, assunto encerrado. Outrossim, não tolerarei questões sobre tópicos ainda não lecionados; futurologia é para cartomantes, adivinhos e os ingênuos que creem neles. Se os senhores sobreviverem ao longo do semestre, terão oportunidade de ouvir-me prelecionar sobre suas eventuais questões. Dito isto, espero ter deixado claro a metodologia empregada, e espero também não regressar mais a este assunto. Duas coisas enfastiam-me profundamente: I) alunos descompromissados com o horário da aula e II) repetir-me.
Doutor Cláudio destampou a garrafinha que suava ao lado das canetas, bebericou. Não entendi se a careta foi para mim ou em razão do trem esverdeado que engoliu. Ignorou minhas desculpas com um pigarro, tornou a cobrir o rosto com a folha. Doralina puxou a carteira, seu ombro tocou o meu: acompanha comigo. O professor retomou a leitura, voz arrastada, monótono como as ladainhas de novena que ouvi na meninice.
- Ele só vai dar uma aula mesmo?
- Disse que ninguém presta atenção no outro por mais de cinquenta minutos. É científico, diz ele.
- Mas ele vai receber pelas duas aulas né, retruquei, concluindo mais uma espiral no caderno.
- Pois é. E teve a cara de pau de dizer, desse jeito empolado aí: espero os senhores não tenham quesitos, assim regressarei mais cedo à minha casa: tenho artigos para finalizar e publicar.
Doralina imitou a voz do professor, tão direitinho... parecia o Tom Cavalcante imitando outros artistas. Sufoquei o riso, copiei os títulos que o professor acabara de anotar no quadro com sua letra ridícula.
- Estes a inoperante da estagiária não digitou, então os senhores anotem, pois usaremos alguns capítulos do Sussekind a partir da sexta aula, e do Maranhão logo após nossa primeira avaliação.
- Ninguém questionou esse absurdo de apenas cinquenta minutos de aula?
Doralina, com a caneta rosa, transcrevia os títulos em caligrafia caprichada; com a roxa, sublinhou-os duas vezes. Metódica, como sempre.
- O Dauro questionou, foi o único.
- E?
- E o professor disse que a metodologia dele é assim, que tem base científica e respaldo da direção da faculdade... só faltou dizer que foi abençoada pelo papa João Paulo II.
Rabisquei no topo do caderno: ASSHOLE TEACHER. Doralina riu; sinal que meu curso de inglês estava servindo para alguma coisa.
- Uai, e ficou por isso mesmo, ninguém falou mais nada?
- A Danusa pediu pra aula começar um pouco depois das sete. Falou que muitos colegas vêm de outras cidades e chegam atrasados devido ao trânsito e aos ônibus que custam a estacionar... comentou que os outros professores esperam uns dez minutos ...
- E ele?
- Disse que é diferente dos outros professores. E Doralina imitou-o novamente: a começar pelo meu título: caso os senhores ainda não saibam, sou o único professor com doutorado contratado por esta instituição de ensino. O único, aliás, desta cidade provinciana... Depois ele falou que a primavera antecede o verão e as andorinhas, o inverno... não entendi muito bem, acho que quis dizer que o bom aluno chega antes do professor. Ah falou também que não é dono das empresas de ônibus, nada tem a ver com “questões de mobilidade de trânsito”, que os prejudicados devem reclamar na prefeitura, ou sair mais cedo de casa.
- Disgramado filho duma...
- Caso minha preleção esteja a perturbar a confabulação dos senhores aí dos fundos, por favor, avisem-me: não quero ser inoportuno. Posso, outrossim, ceder-lhes a palavra a fim de compartilharem conosco vosso brilhantismo e sapiência. Afinal, o que os senhores têm a dizer certamente é mais instrutivo que minha aula.
Os bajuladores de plantão riram, feito hienas. Encarei o doutor: seus óculos novamente na ponta do nariz, o deboche escancarado entre as desagradáveis rugas de expressão. Danusa, três carteiras à frente, fez um gesto para eu me acalmar. Dauro saiu, deixou a porta escancarada: um grupo do décimo período conversava debruçado no parapeito do corredor; o relógio da igreja de Santo Ivo marcava 7:35; o tempo virava para chuva.
I WILL KILL THIS GUY, garatujei no caderno. Doralina acarinhou minha coxa. Doutor Cláudio bebericou mais um pouco, fez outra careta, tornou a ler. Tentei me concentrar na mão de Doralina ainda a brincar no meu jeans, ousando um pouco além da coxa. Lembrei a noite em que nos entregamos entre as estantes de Constitucional e Penal... por pouco, não ficamos trancados na biblioteca. Não teria sido nada mau, penso. Doutor Cláudio fechou a porta com força, resmungou sobre os alunos no corredor. Àquela altura a mão de Doralina me despertava outros sentimentos, e eu estava pouco me lixando para “o único doutor da instituição”.
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