Passeio
entediado pelo feed até que uma manchete fisga minha atenção: Bombeiros
combatem incêndio em restaurante no London.
É
onde mora Açucena do Carmo — última casa, na última rua. Se bem que, técnica e
geograficamente, não mora: se esconde.
Envio-lhe
o post. Imediatamente, ela responde:
—
Isso foi agorinha! Dava pra ver a fumaça daqui. Tô achando que esse incêndio
foi criminoso... Tá estranho isso. Tem peritos lá agora. Minha amiga, que mora
em frente, me falou.
Às
vezes tenho a impressão que Açucena passa o dia on-line.
—
Hoje em dia o que mais tem é adulto infantilizado. Você não pode falar nada! Não
pode chamar atenção, que emburra. Isso quando não mata. Tá uma matança danada! Ontem
mesmo tive problema na escola: chamei atenção duma menina. Ela entregou a
atividade toda rabiscada. Falei: “Você não tá mais na idade de rabiscar.” Em
todas as minhas aulas ela faz esses rabiscos... Hoje veio o pai e fez o maior
escarcéu! Então, tô achando que esse incêndio pode ser criminoso.
Enquanto
grava outro áudio, cantarolo baixinho: “Eu não consigo entender sua lógica.”
Afinal, qual a relação entre os rabiscos escolares e o restaurante incendiado?
—
Porque não pode mais falar nada com funcionário! Tá difícil ser empreendedor
nesse país. Tudo eles querem dinheiro, tudo eles te processam. Eu tô achando
que foi algum funcionário que fez isso aí.
Açucena,
incorporando um personagem de CSI, prossegue:
—
Um dia fui lá... tô falando porque trabalho ali perto... E eu via sempre os
funcionários irritados, muito revoltados. Ih, uma vez o atendimento demorou, desisti
de esperar, e o funcionário falou assim: “O dono daqui só visa dinheiro. Ele
sabe que é dia de movimento e não coloca mais gente. Aí temos que trabalhar
dobrado — mas isso vai mudar.”
Pelo
visto, vai demorar desvendar o caso.
—
Você não pode mais chamar atenção de funcionário, não pode falar nada. Você tem
que dar B e A pra todo mundo; se dá C, vem a família inteira te cobrir de
porrada. Eu dei B pra todo mundo. Não tão merecendo não, mas dei — pra não
arrumar problema. Porque moro e trabalho no London. Todo mundo sabe onde moro;
daqui a pouco vou ser linchada. Então dou B pra todo mundo e fico com menos um
problema. Quer me entregar rabiscado? Entrega. Eu ensino a menina a colorir
dentro, colorir fora. Aí vem com nhenhenhém? Falei: “Vai sentar no seu lugar.”
Agora cismou de não entrar na sala porque “a professora é isso, a professora é
aquilo”. Falei com o pai dela: “Vou deixar sua filha rabiscar, depois a vida
cobra. Lá na frente vocês vão ter problemas maiores do que só rabiscar.”
Puxa!
Açucena enveredou de novo pelas lamúrias docentes.
— Numa escola em que trabalhei, a diretora
chamou a atenção duma professora por n motivos. Minutos depois, começou
uma fumaçada no banheiro. Foi um corre-corre. O bombeiro falou: “Isso foi
criminoso. Alguém colocou um cigarro dentro da fralda.” Nossa, queimou o
banheiro todo. Corri com meus alunos pra fora da escola, eles me abraçando,
fumaça pra tudo quanto é lado... Por
isso tô te falando: não tá longe não, eu já vivi isso!
“Isso
dá uma crônica”, escrevo.
Açucena,
no entanto, ignora a mensagem:
—
A professora pegou o cigarro, deixou a pontinha pra fora e enrolou na fralda
dum aluno. O cigarro foi queimando devagarzinho. Quando chegou na fralda...
queimou tudo: roupas, uma porção de coisas dos alunos. Fiquei muito triste, o
banheiro tinha sido reformado há pouco tempo. Já vi cada coisa de funcionário!
Um dia, na lanchonete aqui perto, a moça falou: “Se o cliente é chato, eu cuspo
dentro do suco e esfrego o pão no chão.” Larguei o pedido no balcão e sumi.
Nunca mais pisei lá.
Ela
exagera nessas histórias, não é possível.
—
Ultimamente as pessoas andam muito revoltadas. Eu tô procurando comer em casa.
Hoje acordei com vontade de comer pão de cebola. Então tô bem aqui, preparando
com farinha, aveia e tudo. Não fui comprar, não — eu sei lá. Tô com medo até de
comer. Só vou no hortifruti e no açougue. Porque as pessoas tão muito
revoltadas, né? Evito falar. Evito ao máximo sair de casa...Tá muito complicado
de viver. E aqui no London, puta que pariu, as pessoas já são revoltadas de
graça.
Desligo
o celular.
Deixo
Açucena e suas estórias pra lá — antes que ela me convença de que viver, de
fato, tá muito complicado.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor