domingo, 15 de novembro de 2020

Hoje tô pras letras não


O apito corta o tempo. Lá embaixo, trens da RFFSA manobram diante do Georgina Hotel. Pra lá e pra cá, pra cá e pra lá, pesados como nuvens gorduchas. Como a carroça do leiteiro que vai e vem pelos paralelepípedos que aguentam minha correria diária.

Cheirinho de arroz de forno se espalha na sala. Não há apagador, borracha, oxítonas, paroxítonas, proparoxítonas e tabuadas que afastam esse cheirinho. Que atravessa o pátio, passa pela amarelinha pintada no cimento, rodopia entre os livros coloridos da biblioteca até entrar, de vez, pela fresta da porta.  

        “Desculpa, tia, hoje tô pras letras, não.”

         Alguma coisa ronca aqui dentro. Compete com o apito da máquina e as ferramentas estridentes no barracão da oficina. Papai já deve estar na estação: jeans, camisa branca, suéter, sapato bem engraxado, bolsa de viagem. Em instantes, subirá a serra. Vai buscar bauxita lá para os lados do longe... O pensamento acompanha as partículas de pó de giz. Que brincam no mural colorido dos alunos da tarde. Que vagam sobre a mesa da tia.  E repousam na capa de plástico transparente do diário de classe.

       Outro apito invade a sala. A bandeira tremula. Assustada com o som da locomotiva. Ou ansiosa para o recreio. Vá saber. Só sei que, sentado ao lado da janela (hoje troquei de lugar com meu amigo) eu a vejo, desbotada, no mastro... Amanhã é dia de bochechar flúor e cuspir no gramado ressecado de frio. Será que vai passar o Cavalo de Fogo hoje de tarde... se o trem manobrar na entrada da minha rua, vou atrasar para o almoço.

Alguém bate o apagador na parede da janela. Pó, diesel e saudade nublam minhas lentes. 0,75° na esquerda e 1,5° na direita marejando por outro abraço. Um bobo joga bolinha de papel no meu cabelo que carece de tesoura. Desatenta, a coleguinha da frente suspira o primeiro amor. Enquanto a tia escreve no quadro as palavras do ditado. Chávena, cachecol, chuvisco, chupeta, Xuxa, xarope, xampu... cheirinho de arroz de forno, pó de giz, bauxita, flúor, bandeira, bolsa de viagem, saudade.

            “Desculpa, tia, hoje tô pras letras, não.”  

* texto publicado originalmente em

 http://revistavicejar.blogspot.com/2020/11/hoje-to-pras-letras-nao.html



                            Vista parcial do Georgina Hotel e dos vagões da RFFSA


Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto:  acervo do autor (São Geraldo,1994) 

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