O apito
corta o tempo. Lá embaixo, trens da RFFSA manobram diante do Georgina Hotel. Pra
lá e pra cá, pra cá e pra lá, pesados como nuvens gorduchas. Como a carroça do
leiteiro que vai e vem pelos paralelepípedos que aguentam minha correria diária.
Cheirinho
de arroz de forno se espalha na sala. Não há apagador, borracha, oxítonas,
paroxítonas, proparoxítonas e tabuadas que afastam esse cheirinho. Que atravessa
o pátio, passa pela amarelinha pintada no cimento, rodopia entre os livros
coloridos da biblioteca até entrar, de vez, pela fresta da porta.
“Desculpa,
tia, hoje tô pras letras, não.”
Alguma
coisa ronca aqui dentro. Compete com o apito da máquina e as ferramentas
estridentes no barracão da oficina. Papai já deve estar na estação: jeans,
camisa branca, suéter, sapato bem engraxado, bolsa de viagem. Em instantes,
subirá a serra. Vai buscar bauxita lá para os lados do longe... O pensamento
acompanha as partículas de pó de giz. Que brincam no mural colorido dos alunos
da tarde. Que vagam sobre a mesa da tia.
E repousam na capa de plástico transparente do diário de classe.
Outro
apito invade a sala. A bandeira tremula. Assustada com o som da locomotiva. Ou ansiosa
para o recreio. Vá saber. Só sei que, sentado ao lado da janela (hoje troquei
de lugar com meu amigo) eu a vejo, desbotada, no mastro... Amanhã é dia de
bochechar flúor e cuspir no gramado ressecado de frio. Será que vai passar o
Cavalo de Fogo hoje de tarde... se o trem manobrar na entrada da minha rua, vou
atrasar para o almoço.
Alguém bate
o apagador na parede da janela. Pó, diesel e saudade nublam minhas lentes. 0,75°
na esquerda e 1,5° na direita marejando por outro abraço. Um bobo joga bolinha
de papel no meu cabelo que carece de tesoura. Desatenta, a coleguinha da frente
suspira o primeiro amor. Enquanto a tia escreve no quadro as palavras do
ditado. Chávena, cachecol, chuvisco, chupeta, Xuxa, xarope, xampu... cheirinho
de arroz de forno, pó de giz, bauxita, flúor, bandeira, bolsa de viagem,
saudade.
“Desculpa,
tia, hoje tô pras letras, não.”
* texto publicado originalmente em
http://revistavicejar.blogspot.com/2020/11/hoje-to-pras-letras-nao.html
Vista parcial do Georgina Hotel e dos vagões da RFFSA
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor (São Geraldo,1994)
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