Poucas casas, muito pasto, um boi ou outro a vagar junto às horas. Depois da ponte se escondia o nada. E o nada, naquele tempo, era uma imensidão de mistérios... tanta coisa passava por minha cabeça de menino.
Quando a serra esbranquiçava e o vento anunciava chuva, atravessava de bicicleta os trilhos do trem, a pracinha com o busto oxidado do coronel, a rua da prefeitura. Depressa. Debruçado na ponte, olhava o rio se avolumar, levando galhos, sacos plásticos, brinquedos quebrados... O rio ganhava corpo. Fazia barulho sob a ponte. Desmanchava o abrigo dos selvagens.
Os selvagens, diziam os antigos, eram criaturas perversas que viviam escondidas nos pilares da ponte. À noite, saíam sorrateiros pelas ruas a praticar o mal. Mijavam na escadaria da Matriz, pisoteavam os canteiros coloridos da praça, tão bem cuidados por Seu Ernesto. Na madrugada, colocavam pedras nos trilhos para descarrilar os trens que chegariam, na manhã, carregados de bauxita. Furtavam galinhas, mangas... crianças. Os selvagens eram a síntese do mal. Por isso eu só ía à ponte durante o dia. Para ver a água turva girar e girar debaixo do bambuzal e, tonta, passar pela ponte. Para, enfim, seguir seu desconhecido destino.
Numa noite pavorosa de dezembro, choveu muito. Minha rua encheu de barro. Barro vermelho, escorregadio, que desceu do morro da Cafuringa. Trovejava sem parar. Tive medo. Deu goteira no meu quarto: dormi no colchonete ao lado da cama de mamãe. Pela manhã, os passarinhos não apareceram na laranjeira do quintal. O vento frio me deu soluço. Fiquei enrolado no cobertor, vendo os heróis na televisão. Quando chovia muito era bom: não tinha aula.
Mamãe desceu para esperar o padeiro no portão. Voltou com dois pães-tatu e três de sal. Contou que o rio transbordara e invadira a casa da professora Maristela. Fiquei tentando imaginar como era possível. Afinal, a casa dela era tão alta, imponente com suas janelas de madeira sempre pintadas de azul... Estendendo a toalha xadrez na mesa, mamãe explicou que o rio passava atrás da casa da professora: a enchente viera pelo quintal.
“Enchente”. Palavra estranha, pesada. Que encheu minha cabeça. Foi a primeira vez que ouvi falar em enchente. Fiquei a pensar na professora – velha, solteirona, sozinha - assustada com a enchente invadindo o quintal, entrando pela porta da cozinha, molhando os livros na estante da sala. Fui duas ou três vezes com mamãe à sua casa. Para rezar a novena de Natal. Era a última casa da rua da Igreja. Depois dela, o bar do Índio, um terreno baldio... e a ponte. Voltei a atenção para o televisor: Superamigos começando. Mas com a vista inundada de enchente não acompanhei o episódio direito. Quando dei por mim, passava o comercial da Philco.
O tempo enveredou pelo calendário. Dias viraram semanas, que viraram meses, que terminaram em formatura do primário... Entrei naquela fase em que super-heróis, novenas e pontes não interessavam mais. Agora, o que me tirava o sono, além do vídeo game, era o rosto róseo da Luciane, o uniforme ligeiramente desabotoado da Tati, as histórias que os rapazes do segundo grau contavam na saída da escola.
Nessa época eu passava todo dia pela ponte. Contra minha vontade: o pai me transferira para a escola recém-construída no São Pedro. Bairro novo, calçado e arborizado. Vizinhos e professores diziam que o progresso estava chegando além da ponte. Ia e voltava, quase sempre a pé, vez ou outra na Monark azul e amarela. E lá estava a ponte: intacta, carecendo apenas de pintura.
Quando os caras mais velhos, em grupos de três ou quatro, iam à minha frente contando vantagens e proezas da juventude, eu diminuía o passo. Se estivesse pedalando, descia. Seguia empurrando lentamente a bicicleta. Excitado, prestava atenção nos gestos, trejeitos e, sobretudo, em suas palavras. Palavras ditas às vezes em bom som, noutras sussurradas. Palavras interrompidas pelo ploc de uma bola de chiclete, outra ajeitada nos cabelos avolumados, cuspidelas na calçada. À noite, sem sono, remexia na cama. Tentava imaginar as cenas que eles descreviam com tanta naturalidade entre baforadas de cigarros e grossas gargalhadas.
A ponte era ponto de encontro dos casais após as aulas. Para não atrapalhar os amassos dos mais assanhados eu arriscava ser atropelado pelas bicicletas que, vindas também da escola, zuniam por ali. Passar pela ponte era parte da minha rotina, assim como atravessar o trilho da ferrovia desativada, cortar a pracinha, a rua da Prefeitura, passar em frente à casa da professora Maristela...
A casa de amplas janelas azuis, que sempre nos recebia para as novenas natalinas, agora vivia trancada: a professora fora levada para o asilo, na vizinha Ares Formosos. As paredes, outrora pintadas e bem cuidadas, agora lamentavam a falta das ladainhas, dos doces que ela distribuía no vinte e sete de setembro. Doces de coco, mamão, figo, leite... que eu devorava com meus amigos. Sentados na mureta da ponte, com os lábios e dedos lambuzados, esperávamos a tarde se despedir. E, sem saber, com a tarde desciam também as derradeiras ilusões infantis.
Certamente, a ponte também lamentava a ausência da professora. Quem, além dela, ainda se lembraria de lançar no rio perfumadas rosas brancas na virada do ano? E, olhando firmemente suas águas, fazer silenciosas preces na primeira sexta-feira de cada mês?
As águas que passavam pela ponte não contavam mais segredos. Transportavam tanto lixo das fábricas, que silenciaram. A ponte era apenas mais uma parte da cidade. E, como a cidade, não me despertava mais prazer, curiosidade, sequer especulações. Eu já estava na fase de sonhar com outras terras, outras cidades. Queria ver coisas e gente nova, enfim.
*publicado em Confissões, meu livro de contos
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor
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