sábado, 12 de julho de 2025

Outro encontro

 

Novamente sentado nesta cadeira desconfortável. Ah, se essa gente soubesse como odeio agências bancárias, filas e cadeiras desconfortáveis, sobretudo, como odeio aguardar atendimento. Nessas horas, penso: eu poderia estar dormindo, assistindo televisão, poderia estar trepando ou falando do alheio... Nossa, eu poderia estar fazendo tanta coisa, útil ou inútil, pra este achincalhado país! Contudo e infelizmente, estou sentado aqui.

         A leitora, eu vi, franziu a testa; encucada, talvez, com o advérbio que introduziu a crônica. Explico-me: mais cedo estive sentado nesta mesma cadeira, aguardando atendimento. Depois de muito esperar obtive, finalmente, o termo de cancelamento de registro de alienação fiduciária em garantia. Documento de nome pomposo, repleto de juridiquês e nove horas, que muito juro e correção me custou ao longo dos anos. Recebi-o num envelope pardo e, feito um bobo alegre, me dirigi ao cartório de registro de imóveis. Onde, após esperar mais um bocadinho, obtive a informação: precisa reconhecer a firma do gerente.

            Então, lá fui eu atrás de um tabelionato de notas. Dizem, tabelionato de notas é tipo a Drogasil: sempre tem uma pertinho de você. De fato, topei com um na esquina. Vazio. Oh felicidade, não precisei retirar senha e enfrentar fila! A notária olhou, releu o documento, me informou que, pra identificar a assinatura e portanto reconhecer a danada da firma, precisava do carimbo do gerente. Pelo que entendi, sem este símbolo da burocracia ocidental não se averba nada.

            Voltei ao burburinho da rua, às sombras de julho. E cá estou: pernas e braços cruzados, emburrado, aguardando o gerente carimbar as duas vias do tal termo.

O guardinha, azia nas pupilas, me encara. Ignoro-o, atento à porta giratória: um flamenguista já se desfez do cinto, da pochete, dos óculos, do boné, do chaveiro... Essas portas, quando cismam de implicar com alguém, sai de baixo.

 Enquanto rola o desagradável strip tease ali na entrada, o cara de fuinha da mesa três gira e gira a caneta entre os dedos, olhos pregados no computador; não atende ninguém, nem o telefone que berra feito uma sirene.  

            Continuo pensando no monte de coisas que poderia estar fazendo em casa: batendo um bolo de chocolate, garatujando idiossincrasias crônicas, desejando corpos juvenis que gratuita e excitantemente se despem no X, acompanhando na Globonews a quantas anda o tarifaço que aquele mentecapto nortista-alaranjado nos impôs... Continuo, pois, pensando essas coisas quando duas mulheres sentam ao meu lado.

            — Ai, Senhor, onde enfiei aquela desgrama?

            — Será que perdeu?

            — Nem fala uma coisa dessa. Em nome de Jesus, eu vou achar!

            Desesperada, remexe mais no fundo da bolsa. Talvez procure um documento que também carece de carimbo, penso.   

            — Pra tudo tem solução nessa vida. Quer dizer, nem tudo. Cê não vê esse rolo aí com o Trump?

            — Hein?

            — Uai, cê não tá acompanhando na internet essa crise das tarifas não?

            — Misericórdia, menina, que perturbação. No grupo da família só falam disso.

            — Agora a gente afunda de vez.

            — Pois é. Meu pastor postou no story assim: eu avisei que esse Lula era coisa ruim.

— Cê acha que é culpa dele?

            — Uai, e num é? Você viu aquele vídeo dele descendo a lenha nos Estados Unidos? Gravaram no encontro que ele participou dia desses aí. Foi se meter com país poderoso, agora a gente paga o preço.

            — Eu vi no zap que o país nem vende tanto pros Estados Unidos assim...

            — Fake, menina, tudo fake. Meu pastor falou que somos, sim, muito dependentes do dólar, e que não se mede força com gente igual o Trump, não.

            — É, isso é verdade. Quem somos nós na fila do pão, né?

            — Essa petralhada, se bobear, vai afundar de vez com o país. Misericórdia, é o que eles querem. Por isso, hoje à noite, a comunidade vai entrar em vigília. Meu pastor disse que a gente não pode arredar pé da igreja até o Lula voltar atrás e pedir desculpas pro Trump.

            — Minha chefe tava comentando mais cedo que o problema nem é econômico. Diz ela que é um negócio ideológico porque tão querendo interferir no julgamento do Bolsonaro.

         — E tem que interferir mesmo. Onde já se viu o que tão fazendo com nosso presidente? Desde que começou esse processo, meu pastor tem alertado a gente. Diz ele que aquele processo é tudo uma palhaçada.

— Também acho. Tão perseguindo um cidadão de bem que tem coragem de falar o que pensa e não se curva pros ímpios. Aqui quem é honesto e trabalhador, decente e justo, é sempre perseguido. Sempre foi, mas agora, nessa ditadura esquerdista que tamo vivendo, a perseguição virou política.

— Mas Jesus tá vendo essa perturbação toda e não vai deixar impune não... Ó, achei o cartão! Menina do céu, eu já tava desesperada achando que tinha perdido esse trem. 

            Enquanto aqui ao lado se comemora o achamento do cartão, os algarismos vermelho-comunistas no painel me convocam pra outro encontro com o gerente.


    
                                                foto: acervo do autor 

                                                Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Um comentário:

  1. Melhor ouvir certas coisas do que ser surdo. Vai que dá uma boa crônica, como essa.

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Outro encontro

  Novamente sentado nesta cadeira desconfortável. Ah, se essa gente soubesse como odeio agências bancárias, filas e cadeiras desconfortáve...