A noite, ai,
morre fria
pingam
indecentes ecos
de anistia
estremeço, não ouso
levantar:
melhor seria
sonhar
como?
se ainda
pingam
anistia, anistia
anistia
Raphael Cerqueira Silva publicou Confissões (livro de contos). No blog, posta semanalmente crônicas e poemas.
A noite, ai,
morre fria
pingam
indecentes ecos
de anistia
estremeço, não ouso
levantar:
melhor seria
sonhar
como?
se ainda
pingam
anistia, anistia
anistia
Passeio
entediado pelo feed até que uma manchete fisga minha atenção: Bombeiros
combatem incêndio em restaurante no London.
É
onde mora Açucena do Carmo — última casa, na última rua. Se bem que, técnica e
geograficamente, não mora: se esconde.
Envio-lhe
o post. Imediatamente, ela responde:
—
Isso foi agorinha! Dava pra ver a fumaça daqui. Tô achando que esse incêndio
foi criminoso... Tá estranho isso. Tem peritos lá agora. Minha amiga, que mora
em frente, me falou.
Às
vezes tenho a impressão que Açucena passa o dia on-line.
—
Hoje em dia o que mais tem é adulto infantilizado. Você não pode falar nada! Não
pode chamar atenção, que emburra. Isso quando não mata. Tá uma matança danada! Ontem
mesmo tive problema na escola: chamei atenção duma menina. Ela entregou a
atividade toda rabiscada. Falei: “Você não tá mais na idade de rabiscar.” Em
todas as minhas aulas ela faz esses rabiscos... Hoje veio o pai e fez o maior
escarcéu! Então, tô achando que esse incêndio pode ser criminoso.
Enquanto
grava outro áudio, cantarolo baixinho: “Eu não consigo entender sua lógica.”
Afinal, qual a relação entre os rabiscos escolares e o restaurante incendiado?
—
Porque não pode mais falar nada com funcionário! Tá difícil ser empreendedor
nesse país. Tudo eles querem dinheiro, tudo eles te processam. Eu tô achando
que foi algum funcionário que fez isso aí.
Açucena,
incorporando um personagem de CSI, prossegue:
—
Um dia fui lá... tô falando porque trabalho ali perto... E eu via sempre os
funcionários irritados, muito revoltados. Ih, uma vez o atendimento demorou, desisti
de esperar, e o funcionário falou assim: “O dono daqui só visa dinheiro. Ele
sabe que é dia de movimento e não coloca mais gente. Aí temos que trabalhar
dobrado — mas isso vai mudar.”
Pelo
visto, vai demorar desvendar o caso.
—
Você não pode mais chamar atenção de funcionário, não pode falar nada. Você tem
que dar B e A pra todo mundo; se dá C, vem a família inteira te cobrir de
porrada. Eu dei B pra todo mundo. Não tão merecendo não, mas dei — pra não
arrumar problema. Porque moro e trabalho no London. Todo mundo sabe onde moro;
daqui a pouco vou ser linchada. Então dou B pra todo mundo e fico com menos um
problema. Quer me entregar rabiscado? Entrega. Eu ensino a menina a colorir
dentro, colorir fora. Aí vem com nhenhenhém? Falei: “Vai sentar no seu lugar.”
Agora cismou de não entrar na sala porque “a professora é isso, a professora é
aquilo”. Falei com o pai dela: “Vou deixar sua filha rabiscar, depois a vida
cobra. Lá na frente vocês vão ter problemas maiores do que só rabiscar.”
Puxa!
Açucena enveredou de novo pelas lamúrias docentes.
— Numa escola em que trabalhei, a diretora
chamou a atenção duma professora por n motivos. Minutos depois, começou
uma fumaçada no banheiro. Foi um corre-corre. O bombeiro falou: “Isso foi
criminoso. Alguém colocou um cigarro dentro da fralda.” Nossa, queimou o
banheiro todo. Corri com meus alunos pra fora da escola, eles me abraçando,
fumaça pra tudo quanto é lado... Por
isso tô te falando: não tá longe não, eu já vivi isso!
“Isso
dá uma crônica”, escrevo.
Açucena,
no entanto, ignora a mensagem:
—
A professora pegou o cigarro, deixou a pontinha pra fora e enrolou na fralda
dum aluno. O cigarro foi queimando devagarzinho. Quando chegou na fralda...
queimou tudo: roupas, uma porção de coisas dos alunos. Fiquei muito triste, o
banheiro tinha sido reformado há pouco tempo. Já vi cada coisa de funcionário!
Um dia, na lanchonete aqui perto, a moça falou: “Se o cliente é chato, eu cuspo
dentro do suco e esfrego o pão no chão.” Larguei o pedido no balcão e sumi.
Nunca mais pisei lá.
Ela
exagera nessas histórias, não é possível.
—
Ultimamente as pessoas andam muito revoltadas. Eu tô procurando comer em casa.
Hoje acordei com vontade de comer pão de cebola. Então tô bem aqui, preparando
com farinha, aveia e tudo. Não fui comprar, não — eu sei lá. Tô com medo até de
comer. Só vou no hortifruti e no açougue. Porque as pessoas tão muito
revoltadas, né? Evito falar. Evito ao máximo sair de casa...Tá muito complicado
de viver. E aqui no London, puta que pariu, as pessoas já são revoltadas de
graça.
Desligo
o celular.
Deixo
Açucena e suas estórias pra lá — antes que ela me convença de que viver, de
fato, tá muito complicado.
Foto: acervo do autor
Novamente
sentado nesta cadeira desconfortável. Ah, se essa gente soubesse como odeio agências
bancárias, filas e cadeiras desconfortáveis, sobretudo, como odeio aguardar
atendimento. Nessas horas, penso: eu poderia estar dormindo, assistindo
televisão, poderia estar trepando ou falando do alheio... Nossa, eu poderia
estar fazendo tanta coisa, útil ou inútil, pra este achincalhado país! Contudo
e infelizmente, estou sentado aqui.
A leitora, eu vi, franziu a testa; encucada,
talvez, com o advérbio que introduziu a crônica. Explico-me: mais cedo estive
sentado nesta mesma cadeira, aguardando atendimento. Depois de muito esperar obtive,
finalmente, o termo de cancelamento de registro de alienação fiduciária em
garantia. Documento de nome pomposo, repleto de juridiquês e nove horas, que
muito juro e correção me custou ao longo dos anos. Recebi-o num envelope pardo
e, feito um bobo alegre, me dirigi ao cartório de registro de imóveis. Onde,
após esperar mais um bocadinho, obtive a informação: precisa reconhecer a firma
do gerente.
Então, lá fui eu atrás de um tabelionato
de notas. Dizem, tabelionato de notas é tipo a Drogasil: sempre tem uma pertinho
de você. De fato, topei com um na esquina. Vazio. Oh felicidade, não precisei
retirar senha e enfrentar fila! A notária olhou, releu o documento, me informou
que, pra identificar a assinatura e portanto reconhecer a danada da firma,
precisava do carimbo do gerente. Pelo que entendi, sem este símbolo da
burocracia ocidental não se averba nada.
Voltei ao burburinho da rua, às
sombras de julho. E cá estou: pernas e braços cruzados, emburrado, aguardando o
gerente carimbar as duas vias do tal termo.
O
guardinha, azia nas pupilas, me encara. Ignoro-o, atento à porta giratória: um flamenguista
já se desfez do cinto, da pochete, dos óculos, do boné, do chaveiro... Essas
portas, quando cismam de implicar com alguém, sai de baixo.
Enquanto rola o desagradável strip tease
ali na entrada, o cara de fuinha da mesa três gira e gira a caneta entre os
dedos, olhos pregados no computador; não atende ninguém, nem o telefone que
berra feito uma sirene.
Continuo pensando no monte de coisas
que poderia estar fazendo em casa: batendo um bolo de chocolate, garatujando
idiossincrasias crônicas, desejando corpos juvenis que gratuita e excitantemente
se despem no X, acompanhando na Globonews a quantas anda o tarifaço que aquele
mentecapto nortista-alaranjado nos impôs... Continuo, pois, pensando essas
coisas quando duas mulheres sentam ao meu lado.
— Ai, Senhor, onde enfiei aquela desgrama?
— Será que perdeu?
— Nem fala uma coisa dessa. Em nome
de Jesus, eu vou achar!
Desesperada, remexe mais no fundo da
bolsa. Talvez procure um documento que também carece de carimbo, penso.
— Pra tudo tem solução nessa vida.
Quer dizer, nem tudo. Cê não vê esse rolo aí com o Trump?
— Hein?
— Uai, cê não tá acompanhando na
internet essa crise das tarifas não?
— Misericórdia, menina, que
perturbação. No grupo da família só falam disso.
— Agora a gente afunda de vez.
— Pois é. Meu pastor postou no story
assim: eu avisei que esse Lula era coisa ruim.
—
Cê acha que é culpa dele?
— Uai, e num é? Você viu aquele
vídeo dele descendo a lenha nos Estados Unidos? Gravaram no encontro que ele
participou dia desses aí. Foi se meter com país poderoso, agora a gente paga o
preço.
— Eu vi no zap que o país nem vende
tanto pros Estados Unidos assim...
— Fake, menina, tudo fake. Meu
pastor falou que somos, sim, muito dependentes do dólar, e que não se mede
força com gente igual o Trump, não.
— É, isso é verdade. Quem somos nós
na fila do pão, né?
— Essa petralhada, se bobear, vai
afundar de vez com o país. Misericórdia, é o que eles querem. Por isso, hoje à
noite, a comunidade vai entrar em vigília. Meu pastor disse que a gente não pode
arredar pé da igreja até o Lula voltar atrás e pedir desculpas pro Trump.
— Minha chefe tava comentando mais
cedo que o problema nem é econômico. Diz ela que é um negócio ideológico porque
tão querendo interferir no julgamento do Bolsonaro.
— E tem que interferir mesmo. Onde
já se viu o que tão fazendo com nosso presidente? Desde que começou esse
processo, meu pastor tem alertado a gente. Diz ele que aquele processo é tudo
uma palhaçada.
—
Também acho. Tão perseguindo um cidadão de bem que tem coragem de falar o que
pensa e não se curva pros ímpios. Aqui quem é honesto e trabalhador, decente e justo,
é sempre perseguido. Sempre foi, mas agora, nessa ditadura esquerdista que tamo
vivendo, a perseguição virou política.
—
Mas Jesus tá vendo essa perturbação toda e não vai deixar impune não... Ó,
achei o cartão! Menina do céu, eu já tava desesperada achando que tinha perdido
esse trem.
Enquanto aqui ao lado se comemora o
achamento do cartão, os algarismos vermelho-comunistas no painel me convocam pra
outro encontro com o gerente.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Venho pelo oitão da pousada. Aprendi com o
Velho Braga que, além de uma bonita palavra, oitão quer dizer ‘do lado’. E,
segundo o cronista, é muito usada no Recife. Como estou em terras
pernambucanas, uso-a. Mas, como ia dizendo, vinha eu pelo oitão quando uma
senhorinha de enormes óculos escuros comenta no celular:
— Imagina, querida, que ele falou, na maior
grosseria, que não vai chamar o táxi pra nós? Sujeitinho rude, esse dono da
pousada.
Passo
pela senhorinha, que agora resmunga e escreve com o indicador no smartphone. Passo também
pela Adonídia carregadinha de frutos, por uma cadeira de madeira que vive o
inverno de seus praianos dias.
Entro na recepção.
O
dono da pousada no computador, a mesma cara de desmantelo do check-in.
Hoje, no entanto, não desperdiçarei cumprimentos. Já calejado, largo a chave no
balcão.
—
Ó, o senhor faz favor de levar ela.
Olho
a pequena recepção, que faz às vezes de lojinha. Camisetas e cangas, canecas e chaveiros,
ímãs de geladeira e chapéus esperam alguma palavra, uma pergunta talvez. Comento
apenas que gostaria de deixar a chave do quarto.
O
sujeitinho franze as sobrancelhas e, riscando o bloco à sua frente com uma Bic
quebrada, retruca:
— O hóspede fica com ela até o dia de ir
embora.
Ora, essa é boa. Como se eu quisesse levar
esse lindo e exótico souvenir pra casa...
Passo
a mão na chave, enfio-a no bolso da bermuda.
—
Num vai perder ela, hein?
O excessivo emprego do pronome pessoal me irrita
demasiadamente, deixo a porta arreganhada.
— Mas assim num tem ar-condicionado que dê conta.
Penso
num palavrão. Mas a juventude que desfila na calçada, shorts e bonés coloridos,
músculos e tatoos me diz que não compensa desperdiçar um mísero palavrão com
esse camarada.
Os rapazes param diante dos buggies. O cara com
jeitão de Caio Castro entra na loja.
Agora são duas senhorinhas que vêm, lenta e
domingueiramente, pelo oitão. Perguntam para a que está sentada se já providenciou
o táxi. Ela repete a história num tom entre o revoltado e o indignado.
Observo uma rolinha, que me observa da guarita
malcuidada do ponto de ônibus. Não, não é rolinha, é uma pomba-de-bando,
informa a proprietária da pousada, que vem com garrafas d’água sob os braços. Ela
deixa um bom-dia sorridente, entra na recepção. Fico imaginando como os
opostos, realmente, se atraem: o marido, um tosco; ela, uma lady que,
desde minha chegada, se desmancha em zelos e agrados.
Olho novamente a rua. A pomba-de-bando se
mandou, foi caçar companhia mais agradável. Os rapazes fecharam a locação do
buggy. O Caio Castro salta ao volante, os outros se dividem: o descamisado a
seu lado, cooler e ecobags entre as pernas tatuadas, os outros dois atrás. O
motor ronca, ruge, cospe fumaça azulada.
A senhorinha de enormes óculos indaga se vou
ao Porto. Largo meus pensamentos quase indecentes na grama esturricada, respondo
que sim.
— Quer dividir táxi com a gente?
As outras duas se aproximam, rostos e ombros
besuntados de protetor solar. Concordo: toda economia é bem-vinda, ainda mais
num lugar carésimo desses.
— Ah, que bom. Então pode chamar o carro que a
gente vai esperar ali na sombrinha.
E dizendo isso, o trio caminha para o oitão,
onde o sol matutino ainda não marcou presença.
Ora, essa é boa, penso. E como aqui no paraíso
a Uber ainda não espalhou seus carros, o negócio é dar uma googlada para
descobrir o telefone de um táxi.
Foto: acervo do autor
Viu nas redes sociais que está em cartaz o novo longa dos Caça-Fantasmas. Nessas horas servem pra alguma coisa útil, essas redes... Pensando assim, tratou de pedir a conta no restaurante. Como estava de bobeira à tarde, resolveu conferir o filme.
Pessoas
passavam apressadas com sacolas e pacotes, adolescentes uniformizados zoavam
uns aos outros, carros buzinavam no engarrafamento. À sombra, ele aguardava o
Uber, pensando que, em tempos não tão distantes, bastava atravessar a Rio
Branco para encontrar um cineminha. Ali mesmo, na esquina da Halfeld com a
Batista, assistiu a bons filmes: O Discurso do Rei, Star Trek: Além da
Escuridão, Os Senhores da Guerra, e tantos títulos que não se lembra mais. Sempre
no meio da tarde, tendo por companhia a Coca e as pipocas... Ah, só quem
escapou da vida ordinária no meio de uma tarde e se refugiou nos braços de uma
poltrona de uma sala quase vazia conhece bem o que é felicidade. Mas, hoje em
dia os cinemas de rua desapareceram, sucumbiram ao império dos shopping
centers.
Saudoso daquelas tardes, tornou a olhar o
celular: motorista a caminho. Claro que bater perna no shopping no meio da
tarde tem lá seus encantos. A juventude zanza entusiasmada pelas escadas
rolantes; as lojas estão às moscas; compra-se o sorvete, o lanche, o ingresso
sem precisar enfrentar fila. Mesmo assim, os cinemas à beira da calçada com
seus cartazes e letreiros a disputar a atenção dos transeuntes são
insubstituíveis, pensou, deixando a brisa outonal levar outro suspiro.
***
No
balcão, a atendente responde com enfado ao seu boa-tarde: não pode deixar, um
instante sequer, de checar as novidades no smartphone. “Perder meu precioso
tempo emitindo um ticket? Ah, este sujeito bem que podia me poupar desse
esforço, né? Instalaram o terminal de autoatendimento ali, perto da porta, pra
quê?”
Ele
percebeu os pensamentos chispando dos olhos castanhos de Olímpia. Como sabe seu
nome? Ora, nosso personagem, além de saudosista, é muito observador. E
observando, leu o crachá pendurado em seu pescoço por uma cordinha de náilon
vermelho.
Olímpia
não sabe, mas ele é daqueles que prefere o tête-à-tête. Afinal, de encontros
assim pode surgir inspiração para um personagem ou, quiçá, o amor pode voltar a
brotar em seu peito empedernido.
“Escolhe
a poltrona”, ela ordena, a mão agarrando o mouse, o olhar naufragado no monitor.
Forçando
a vista, ele aponta a M111. Enquanto aguarda a emissão do ticket, acompanha os
longos dedos de Olímpia a agredir o teclado, as unhas recém pintadas de carmim,
a pulseira de prata relando o MDF do balcão, a pequenina cicatriz no punho direito.
“Até
que é bonitinha, essa menina”, conclui, enlevado. Ela larga o ticket e o indefectível “obrigado e
bom filme” no balcão.
“Nunca
entendi por que essa gente deseja ‘bom filme’, assim como os bilheteiros de
teatro desejam ‘bom espetáculo’. Quem pode fazer do filme ou da peça um evento
bom, espetacular ou uma bosta é o diretor, o elenco, não o espectador”, ele vai
pensando, sem muita convicção, a caminho do banheiro.
***
No
canto, um garoto mija rindo para o celular em sua mão.
— Há
que ponto chega o vício dessa geração, ele resmunga.
O
garoto passa por ele, os olhos ainda grudados na tela. “É, as coisas mudaram
mesmo: no meu tempo, a molecada não saía de um banheiro sem antes se olhar no
espelho, ajeitar o cabelo...” Seus pensamentos, contudo, são interrompidos por
um grupo de adolescentes que acaba de entrar. O de moletom faz trocadilhos de
cunho sexual, os outros riem se dispersando pelos mictórios. O de boné cospe o
chiclete na louça, solta um “caralho, mais um pouco e eu mijava na calça.” As gargalhadas
ecoam com mais força entre os azulejos.
Diante
do espelho, ele alisa o que restou dos cabelos, saudoso da adolescência, de
quando saía em turma pela tarde afora caçando um cineminha a preço camarada.
***
Para
satisfazer a curiosidade do cinéfilo leitor, Ghost Busters: Apocalipse de
Gelo cumpre o que promete. Entretém com toques de nostalgia, trazendo personagens
e atores da franquia dos anos 1980; a fotografia é clara, à moda antiga, bem ao
contrário das produções atuais que estão cada vez mais soturnas. Comparado
também com os novos filmes, é um roteiro curto: 114 minutos. Embora o excesso
de personagens comprometa sua dinâmica, o enredo desenvolve bem a estória.
Enfim, diverte. Se o cronista fosse igual ao bonequinho d’O Globo aplaudiria,
contudo, sentado.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor
A Rainha do pop está entre nós.
Ou melhor, em terras brasilis, desfrutando a brisa que assanha os
cabelos das meninas e o corpo dos rapazes que circulam e mergulham e se bronzeiam
em Copacabana.
Ai de ti Copacabana, não serás mais a mesma
depois da passagem de Madonna.
Assim como não deve ter sido a mesma
depois que por ali passei, fotografando cada ladrilho do calçadão, cada folha
de coqueiro, cada prédio, cada bandeira a tremular sobre a areia. Inclusive, a
bandeira nacional, fincada no topo do Copacabana Palace, onde a diva
americana está hospedada.
Uma colega de ofício, que não é diva nem
rainha, muito pelo contrário, disse certa vez: “Um dia, vou me hospedar lá”. Suspendi
a redação do alvará, perguntei “lá em Copacabana?”. Ela tomou como ironia, franziu
o cenho, retrucou: “Claro que não. No Copacabana Palace. Você vai ver as fotos,
porque vou fazer questã de postar”. Tempos depois, vi: fotos
pavorosamente mal feitas, dela e do marido, ambos forçando um sorriso na beira
da piscina do hotel. Na repartição, o povo quis saber: será que o casamento dura
o tempo das parcelas do cartão? À boca pequena, se comentou que, além de ter
gasto os tubos com a festa do casório, ela pagou o dobro e mais um pouco para se
hospedar por uma noite apenas no Copa... Eu, discípulo de São Tomé, até
hoje não pus fé naquelas fotos.
Voltando à pop star: sei quase nada
sobre sua carreira. Da discografia, ainda menos. Mas, como fui criado com o
rádio ligado o dia inteiro na cozinha, trago na memória algumas de suas
canções. La Isla Bonita, Like a Prayer, Papa Don’t Preach e Crazy for
You rolaram bastante pelas ondas da Cultura. Hoje, quando as ouço, brotam
saudades que não sei bem explicar. Talvez, saudade da infância que se perdeu
nas brumas do tempo, da época em que minha única preocupação é se não faltaria
luz para assistir à novela... Na suíte presidencial do Copa, será que a Rainha
também se entrega a pensamentos nostálgicos?
O noticiário, que cobre a passagem de Madonna
desde que seu jatinho aterrou no Galeão no começo da semana, divulgou: durante
o show, telões enormes projetarão imagens de personalidades brasileiras. Acredito
que lá estará também Ayrton Senna: nesta semana, completam-se trinta anos do
desastre que ceifou sua vida. E a pergunta que muitos fizeram na tevê, num
esforço tolo de memória, é: o que você fazia naquele domingo quando o carro do
piloto colidiu com a barreira de concreto em Ímola? Eu, que nunca fui chegado à
fórmula 1 (aliás, a qualquer esporte), assistia desenho noutro canal, ou jogava
videogame. O que me lembro mesmo é que a televisão só falou da tragédia no
resto daquele dia, e no seguinte e nos seguintes. Na escola, na manhã de
segunda, só se falava nisso; teve até gente chorando durante a aula de Português.
Cena semelhante veria anos depois, quando do acidente com a Princesa Diana. Eu não
entendia aquelas lágrimas. E, sem entender, tentava vencer mais uma fase no meu
videogame.
Ali, nos arredores onde Madonna está
hospedada, há uma estátua do Senna. Bom turista, também tirei foto lá. Como
dizia aquela mulher da novela: cada mergulho é um flash... E como sob o sol
escaldante de Copacabana não é necessário flash para registrar boas fotos, o turista
se esbalda. Há aqueles que vão para torrar na areia, os que preferem observar
os minúsculos biquinis perdidos nas curvas bronzeadas, os que bebem como se não
houvesse amanhã... e os que fotografam. Ah, é há aqueles que gastam todas as
economias se hospedando em hotéis badalados, como a colega lá da repartição. Que,
como bem acertaram as previsões, não manteve o casamento tempo suficiente para
quitar as parcelas do cartão.
Foto: acervo do autor
Na
fila da Americanas, observo. Dezenas, deliciosas e irresistíveis guloseimas espalhadas
nas gôndolas. Em sacos plásticos que desfilam mais cores que o arco-íris, balas
e salgadinhos, bombons e biscoitos recheados serpenteiam a clientela. Para não
sucumbir às tentações, presto atenção nos dois caras que, à minha frente, também
aguardam atendimento:
—
Cê já foi ver o filme do Wagner Moura?
—
Tá doido, velho? Vou lá perder meu tempo e dinheiro com filme daquele mamador
da lei Rouanet?
—
Produção americana, cara. Não rola dinheiro público brasileiro, não.
—
E daí? Aquele atorzinho é esquerdopata, eleitor do ladrão-de-nove-dedos... Eu
que não dou meu dinheiro pra ver a bosta desse filme.
—
Eu também não.
Lá
do balcão, quase escondida pelos pacotes de Fini, a atendente chama o ‘próximo’.
Os
caras se despedem com risadinhas bovinas. Um vai pagar a compra, o outro fica
deslizando o dedo torto pelo feed do Instagram.
Tentando
equilibrar as barrinhas de chocolate, o Oreo e a garrafa de água, dou uma
olhadela por cima de seu ombro. Na tela do smartphone, a carantonha do (enfim inelegível)
ex-presidente aparece cuspindo uma besteira qualquer. “Ainda bem que esse cara
está com fones porque ninguém merece ouvir essas boçalidades, ainda mais em pé numa
fila”, suspiro aliviado.
Volto
a olhar as gôndolas.
Passo
a mão em duas pastilhas de hortelã e no saquinho de caramelos.
***
Não
há fila. Me aproximo da bilheteria, atento ao letreiro com os títulos e os
horários.
A
atendente parece cochilar diante do monitor. Responde ao meu boa-tarde com mau
humor, manda escolher a poltrona. Enquanto o ticket é impresso, encaro suas
olheiras: será que ficou assim depois de assistir ao filme?
O
cartaz dos Caça-Fantasmas e minha pergunta quase me fazem arrepender da compra.
***
Na
sala, número razoável de espectadores. Para ser sincero, me espantei:
normalmente, a primeira sessão nunca enche assim. Ainda mais em tardes frias e
xexelentas, como hoje.
Vou
subindo a escada, atento para não tropeçar. Da outra vez, fomos eu, as pipocas
e o refrigerante ao chão. Acho, nunca passei tanta vergonha. E, na telona, as
peripécias do oitentão Harrison Ford soaram para mim mais como provocação que
heroísmo.
Noto
que algumas pessoas sequer esperam o filme rolar para devorar as pipocas e os
biscoitos de queijo.
Sigo
em busca da fila R. Sempre escolho poltrona ali. Não pense o leitor que o faço
por razões esotéricas ou coisa semelhante. É que, atrás desta fila, só a
parede. E, embora digam que parede tem ouvidos, não importo: pior são os que
têm boca e desembestam a tagarelar durante a sessão. Como aconteceu quando vim
assistir Jurassic World: Domínio e tive que suportar uns enjoados
palestrando o tempo inteiro. Daquela vez, cheguei meio atrasado, então não deu
pra comprar a poltrona na R.
***
Guerra
Civil entrega uma lição: a democracia pode ser frágil, muito
frágil. E mostra o quão a sociedade encontra-se polarizada. Embora seja uma
distopia, é assustador imaginar que poderíamos estar vivendo tudo aquilo caso o
golpe de 2023 tivesse se concretizado. E, o que é aterrador, se continuarmos condescendentes
com as práticas fascistas que todo dia pululam nos noticiários, nada impede que,
em um futuro não tão distante, o país passe pelo caos narrado no filme.
Alex
Garland, diretor do longa, deixa-nos este alerta. Um alerta de como
radicalizações e fanatismos são perniciosos. Um alerta do mal embutido nos discursos
extremistas que, não raro, enfiam deus, pátria e família em cada uma de suas
frases ardilosas.
***
Simbólica
a cena em que a bandeira norte-americana tremula ao vento apenas com duas
estrelas. Significativa a fala de um miliciano que julga algumas pessoas mais
americanas que outras, conforme seu estado de origem. E, com isso, se arvora o
direito de eliminar os menos americanos e os estrangeiros.
Também
simbólica a cidadela por onde passam os protagonistas: apesar do clima bélico em
que chafurda a nação, seus habitantes vivem em aparente calmaria. Como diz a
mocinha da loja, não quiseram se envolver. Sua explicação me fez lembrar alguns
conhecidos que arrotam por aí: “ditadura nunca existiu”, “ditadura só é ruim
pra quem não anda na linha”, “não tenho problema com a polícia porque estou
trabalhando” ou, ainda, “esse papo de golpe é invenção de comunista petralha”.
Negar
o óbvio: idiotia ou tática de sobrevivência? Sempre me pergunto isso. Ainda não
encontrei a resposta.
As
cenas de Washington, sitiada e arrasada, me fizeram lembrar a tomada de Berlim pelos
Aliados. O bombardeio à Casa Branca, os ataques ao La Moneda, que ceifaram
Allende e a democracia no Chile.
***
Refletindo,
mal dou por conta que os créditos sobem e o público se dispersa.
Recolho
as embalagens vazias, bebo o restinho da água.
Desço
a escada pensando nos ruminantes lá da loja: perderam um filmaço. A moça da
limpeza me encara. Acho, mais uma vez pensei em voz alta. Envergonhado, enfio o
derradeiro caramelo na boca e, cabisbaixo, tomo o rumo da rua.
Domingo
de Páscoa. Esta crônica poderia reclamar dos preços do bacalhau e do ovo de
chocolate, dissertar sobre fé e espiritualidade, enveredar pela metafísica de
Aristóteles ou de Tomás de Aquino. Poderia, ainda, perder-se em frivolidades
burocráticas — esbanjando, assim, “os erros do meu português ruim”. Poderia,
quiçá, resvalar em lembranças e sentimentalismos que, imagino, já encheram o
saco do leitor.
Todavia,
se escrevesse sobre quaisquer desses assuntos, agiria como Lula, ao determinar
que seus ministros se abstivessem de falar sobre o fatídico 31 de março de
1964. Segundo O Globo, o presidente ‘queria evitar que a data fosse
usada para “conflagrar o ambiente político do país”.’ Discordo da decisão:
vetar eventos sobre os sessenta anos do golpe não apaga as marcas deixadas pela
ditadura.
Mas,
quem sou eu para dar pitacos nos assuntos governamentais, não é mesmo? Se Lula
— que conheceu a repressão — não quer remoer a ditadura, porque “já faz parte
da história”, deixemo-lo em Brasília com questões mais prementes.
A
História, essa ciência que se alimenta de restos feito um chacal, analisa e
pondera, explora e perscruta documentos. Das fontes de Clio, bebemos nós,
cronistas e historiadores. Então, que minhas palavras jorrem serenas por este
texto, como o arroio onde as Musas banham sua alva beleza.
Sessenta
anos do golpe. Ou da “revolução vitoriosa”, como pretendem alguns. Independente
do conceito, trata-se de uma ferida. E ferida nacional demora mais a
cicatrizar. Basta uma voltinha pelas ruas, entrar num bar ou numa repartição,
visualizar posts nas redes sociais: a ferida ainda está aberta. Bem
aberta. E não necessita laudo médico para perceber que a cicatrização vai
demorar.
Dizem
que efemérides não podem passar em branco. Para o bem ou para o mal, o 31 de
março precisa ser lembrado. Até porque há muito cidadão de bem por aí negando a
realidade, distorcendo fatos, enaltecendo figuras que não merecem um bom
adjetivo.
Busquei
na estante o Darcy Azambuja. Assoprei a poeira e transcrevo ipsis litteris:
“Quase
sempre a ditadura surge por meio de uma revolução: é um homem, apoiado pelas
forças armadas, que depõe o detentor do Poder Executivo, dissolve o Parlamento
e governa, com um partido que o apoia, promulgando ordens que são leis no
sentido material.”
Foi
o que ocorreu em abril de 1964: destituição de Jango, assunção dos militares ao
poder (primeiro, uma junta autointitulada “Comando Supremo da Revolução”;
posteriormente, Castelo Branco, eleito indiretamente), decretação do primeiro Ato
Institucional, cassações de parlamentares, suspensão de direitos políticos e
garantias de estabilidade, perseguições a líderes oposicionistas, entre outras
medidas.
Segue
Darcy: “a ditadura (...) é o processo enérgico de vencer uma crise quando o
governo normal não o pode fazer.” Os historiadores relatam sucessivas crises no
começo da década de 1960, que se agravaram com a renúncia de Jânio e pelas
reformas de Goulart, consideradas perigosas e de inclinações comunistas. Março
de 1964, ainda segundo a História, foi turbulento, acarretou sucessivas perdas ao
governo e culminou na suspensão democrática por duas décadas.
Antônio
Carlos Lemos Ferreira, poeta juiz-forano, verseja:
“saiu
daqui/um personagem abestado/vestido de azeitona/um boca de cachimbo/ressentido
sem fama/parecido com o Popeye/mandado pelo civil banqueiro Magalhães Pinto...”
É
notório: o golpe de 64 não pode ser atribuído apenas às Forças Armadas.
Empreiteiros, intelectuais, empresários, políticos de direita, religiosos
contribuíram ativamente para a ruptura constitucional. Queriam afastar um
governo que, segundo eles, “se dispunha a bolchevizar o País”. Assim, a
revolução viria “drenar o bolsão comunista”. Balela. Mero pretexto para incutir
medo na patuleia e justificar os atos antidemocráticos. Por isso, estudos mais
recentes falam em “ditadura civil-militar”.
Voltemos
ao poema: infelizmente, Minas carrega nos ombros a mácula de ter capitaneado o
movimento golpista. De Juiz de Fora partiram as forças destrutivas da ordem e
da democracia, comandadas pelo general Olímpio Mourão Filho. E marchavam,
ironicamente, “em defesa da ordem e da democracia”! Paradoxos que a História
tenta explicar às novas gerações, apesar dos sucessivos ataques e
desqualificações promovidas por pseudointelectuais e reaças de plantão.
Com
o tempo, os tentáculos ditatoriais fortaleceram e se alastram pelo país. Em
Juiz de Fora, para ficarmos com um exemplo, deixaram marcas fatais nas celas da
Penitenciária de Linhares, como revelou Daniela Arbex em Cova 312.
Em A Ditadura Envergonhada, Elio
Gaspari analisa:
“A repressão política, porém, emanava do
coração do regime e tinha uma nova qualidade. Não se tratava mais de espancar o
notório dirigente comunista capturado no fragor do golpe. A tortura passava a
ser praticada como forma de interrogatório em diversas guarnições. Instalado
como meio eficaz para combater a “corrupção e a subversão”, o governo
atribuía-se a megalomaníaca tarefa de acabar com ambas.”
Para
tanto, instauravam-se os temíveis IPMs (inquéritos policiais militares). E
muita gente penou com eles. A tortura, que já existia antes, com a ditadura
civil-militar se embrenhou de tal forma no cotidiano das prisões, que a
historiografia a considera uma ferramenta institucionalizada pelo Estado.
Por
outro lado, a maior parte da população sequer tomava conhecimento de tudo isso.
O povo vivia “alienado”, diziam os militantes de esquerda. Na verdade, a
censura, outra ferramenta institucional, amordaçava qualquer possível tentativa
de denúncia feita por uns poucos veículos de imprensa que resistiam à
revolução.
Antônio
Maria, no dia seguinte ao golpe, dá conta da dimensão dos fatos:
“Eles
estão brigando, mas sabem por quê. E nós, que não temos causa? Faremos parte de
uma pequena classe média, ao sabor dos mais humilhantes receios. O ordenado irá
atrasar? Será que eles vão nos botar na rua? São essas as perguntas que nós
faremos, diariamente. É por isso que estamos assim: porque não temos nada a
ganhar, depois dessa briga (...) Temos a máquina de escrever, onde somos
levados a escrever, quase sempre o “mais conveniente” e, mesmo assim, com o
risco de perdê-la.” Para o cronista, tudo era previsível, inclusive “o que iria
acontecer hoje, 31 de março, e amanhã, e depois e depois de depois”. Assim,
restaria ao povo se perguntar: “E se o ordenado atrasar? E se não houver mais
ordenado?.”
Escrever,
(re)ler, analisar documentos, ouvir versões, buscar esclarecimentos é a tarefa daqueles
que buscam compreender as engrenagens político-sociais do país. Compete a
governantes, sociedade e, sobretudo, às Forças Armadas não obstaculizar as
pesquisas. Uma sociedade bem informada é capaz de formar cidadãos
melhores. É preciso transparência para
que todos possamos conhecer a verdade ou, ao menos, vislumbrar o passado.
Talvez, se tivéssemos sido mais transparentes e menos complacentes com anistias, não teríamos assistido às cenas absurdas e patéticas que tomaram o noticiário nos últimos anos — culminando no dantesco espetáculo de 8 de janeiro de 2023.
Na
fila do correio, encontro Euzebiozinho. Cabisbaixo, receoso de encarar o mundo.
É assim desde a faculdade...
—
Faz tempo, ô se faz — comenta, como se adivinhasse meu pensamento.
Assinto
com a cabeça. O tempo nos fez assim: sem assunto, feito desconhecidos que se
cruzam em uma repartição qualquer.
Euzebiozinho
encara, com ar filosófico, o escarro que alguém largou no piso. Parece abatido.
O
cabeludo à minha frente chia:
—
Não é possível, só um funcionário pra atender!
Continuo
a observar meu antigo companheiro: bastante grisalho, óculos tortos, roupas
largas e amarrotadas, camisa manchada, corpo encurvado. A pandemia,
definitivamente, não lhe fez bem.
Num
suspiro, confessa estar cansado. De tudo, frisa, sem me encarar. Quer
desabafar, percebo. Na faculdade era assim: quando se perdia numa página de
doutrina ou diante de um panfleto no mural, era batata: precisava desabafar. Como
nos velhos tempos, empresto os ouvidos. Ele aceita. De bom grado, a julgar pelo
sorrisinho amarelo que se esboça na barba malfeita.
— Amigo, ando cansado. Aliás, farto.
Todo dia a mesma ladainha lá na secretaria, a mesma coisa de anos. Mas a
falsidade, a hipocrisia, o cinismo daquela gente é que me impacientam e me
fazem perder a fé no bicho-homem. Ontem, pra você ter ideia, uma mocoronga
falou, com todas as letras, que devia trabalhar menos e fazer como ela. Porque,
sendo efetivos, nada vai nos acontecer. Jogou a bituca pela janela e completou:
fazendo muito ou pouco, nosso vencimento é o mesmo. Foi pra cantina, ignorando
os que esperavam atendimento. Se parar pra pensar, errada ela não está. Nesses
anos todos, nunca vi servidor ser punido. Mas a fala dela é asquerosa,
antiética, reforça o discurso do povo — e de certos políticos — de que o
serviço público não presta, que é um mafuá onde transitam parasitas indolentes
à espera dos vencimentos. Discordo mas, infelizmente, muitos servidores
contribuem para essa visão. Por isso, amigo, minha sina é triste. Toda tarde,
aquela lengalenga: falam de tudo, principalmente dos outros. E trabalhar, que é
bom... deixam sempre pro dia seguinte, ou pra alguém fazer. Nessas horas me
sinto um alienígena que abandonaram no meio de humanos preguiçosos,
inoperantes, cínicos. Sei que não devia dar bola, que devia continuar fazendo
minha parte, bater o ponto e ir pra casa de consciência tranquila. Mas é
difícil. Outro dia, uma boçal disse que destilo ódio com minhas ironias. Tudo
porque comentei que, sendo contratada, devia se colocar no lugar dela e parar
de se meter em assunto de efetivo. Ih, não gostou. Me chamou de tóxico, ameaçou
se queixar ao chefe. Vai, eu disse, e dá um abraço nele por mim. A criatura tem
as costas quentes, eu sei, mas não abaixo para qualquer um, não... Amigo, estou
farto. Farto da mediocridade, de nadar e sempre morrer na praia. Farto de
produzir e ver os colegas puxando pra trás. Outro dia, soltaram esta pérola:
quando alguém se empenha em produzir muito, prejudica os que não conseguem acompanhar...
Ou seja, em vez de mandar a cambada trabalhar, querem que eu reduza o ritmo!
Quem trabalha incomoda. Sinto-me desmotivado, essa é a verdade. O serviço
público — com suas regras estúpidas, sua burocracia arrogante, seus desmandos
irracionais — é desalentador. E digo mais, é enlouquecedor. Quase sempre me
sinto perdido em ordens e contraordens, cercado de índios que se julgam
caciques. Semana passada, a chefia sugeriu que eu devia me afastar, pedir
férias-prêmio ou licença. Vá viajar e arejar as ideias, foi o que disse. Desde
o entrevero com a contratada, corre o boato de que não bato bem da cachola. A
faxineira me contou. Loucos são eles, não eu! Estou em pleno gozo das
faculdades mentais, como dizia nosso professor. Lúcido o suficiente pra
enxergar o caráter daquela corja. Não me suportam porque digo a verdade. E, como
não tenho rabo preso com ninguém, me dou o direito de falar o que penso. Dane-se
se me criticam pelas costas. Mas esgota tanto viver num lugar desses... chego
em casa desanimado, a cabeça pesada, não consigo prestar atenção no noticiário.
Quando deito, o sono custa a vir. Pra ser curto e direto, amigo: estou de saco
cheio daquele bando de cretinos.
Durante
todo o tempo, Euzebiozinho não desgrudou os olhos do escarro. Os ombros cada
vez mais encurvados, o rosto hirto como um boneco de madeira.
Em
vermelho-sangue, brota no painel o 26. A fila retoma a marcha.
—
Num era sem tempo — resmunga o cabeludo.
Euzebiozinho,
seduzido pelo escarro, nem percebeu que o funcionário se ausentara por longos
minutos. Dou-lhe um empurrãozinho. Ele se arrasta até o balcão. À distância,
parece um senhorzinho às portas da aposentadoria.
Rabiscando
qualquer coisa em um papel, o atendente informa:
—
As correspondências tão sendo entregues mais devagar porque estamos sem pessoal.
Euzebiozinho
acompanha a caneta com os olhos:
—
Todo mês os boletos chegam atrasados e tenho que pagar juros.
—
Entendo, senhor, mas não podemos fazer nada.
Há
desdém no sorriso do atendente. Euzebiozinho também nota e brada que é um
absurdo, que vai reclamar na ouvidoria.
Aí
é que está o busílis, tenho vontade de alertá-lo — como aquele
personagem do Rubem Fonseca. Mas o 27 se acende no painel, imperativo, me
convocando.
A noite, ai, morre fria pingam indecentes ecos de anistia estremeço, não ouso levantar: melhor seria sonhar como? se ainda pingam anisti...