domingo, 11 de abril de 2021

PÁGINAS ABERTAS


O dia se arrastava. Desatento, eu lia revistinha na varanda. As ruas continuavam silenciadas: novo decreto entrara em vigor. Indiferente aos comandos normativos, o cão da vizinha ladrava como um danado. Fevereiro, sempre propício a nostalgias, me fez recordar outras tardes ensolaradas. No ano em que Momo não pôde botar seu bloco na rua, minhas memórias desembestaram para outros carnavais.

No entorno da Raul Soares, entre risos e gritinhos de satisfação, a molecada corria. Enorme e desengonçada, os braços esticados à frente feito a cuca, Maria Pereira chispava atrás. Os mais arteiros puxavam sua saia estampada revelando, por instantes, o rapaz de short e camiseta que manipulava a boneca. Da calçada do Bradesco, eu observava a criatura girando, girando, indo e vindo... quase esbarrava nos galhos desnudos do ipê da praça, na amendoeira que sombreava a banca de jornal.

Sem tirar os olhos da Maria, eu chupava picolé. Na mente rodopiava a história que ouvira dias antes. Ao sair da padaria, vi um homem e um menino de mãos dadas. Tinha mais ou menos a minha idade, comia Surpresa e olhava para a direção em que o homem apontava. “Lá, naquela casa roxa de janelas amarelas, mora a mãe da Maria Pereira”. Talvez para refrescar a memória do menino, arrematou: aquela boneca que só sai de casa no carnaval. Eu conhecia a senhora que morava do outro lado da rua; contudo, até então ignorava que ela concebera uma boneca de pano, tal como fizera tia Nastácia. Fiquei encucado: gente de carne, osso e cabelos brancos podia ser mãe de boneca, ainda mais boneca gigante, de cabeleira colorida, que saía apenas no carnaval para correr atrás da criançada e rodar a longa saia? Minha cabeça girou como lápis no apontador... até esqueci de comer meu Skiny.

Enquanto os meninos corriam na praça e tropeçavam nos paralelepípedos, aquela questão voltou a martelar meu pensamento. Encantado, eu matutava... O picolé derretia; um pingo travesso pingou no meu pé. A cabeçorra da Maria Pereira ultrapassava a fiação dos postes, parecia tocar o céu. Outro pingo; desta vez caiu no matinho que crescia no meio-fio. Maria corria em frente à papelaria da Odila; os meninos insistiam em puxar sua saia; os medrosos ficavam nos bancos da praça escancarando as janelinhas, comendo pipoca, soprando bolas de chiclete...

Perdi o rumo das lembranças quando uma moto rasgou o silêncio da tarde. O sino da Santo Antônio marcava o tempo, o vento brincava na árvore da escola e, no chão, a revistinha jazia com as páginas abertas.  


*Agradeço ao Centro Cultural de São Geraldo que, gentilmente, me enviou a foto abaixo. 





Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do Centro Cultural de São Geraldo/MG

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Outra vez no cinema

            Viu nas redes sociais que está em cartaz o novo longa dos Caça-Fantasmas. Nessas horas servem pra alguma coisa útil, essas redes...