O dia se
arrastava. Desatento, eu lia revistinha na varanda. As ruas continuavam silenciadas:
novo decreto entrara em vigor. Indiferente aos comandos normativos, o cão da
vizinha ladrava como um danado. Fevereiro, sempre propício a nostalgias, me fez
recordar outras tardes ensolaradas. No ano em que Momo não pôde botar seu bloco
na rua, minhas memórias desembestaram para outros carnavais.
No
entorno da Raul Soares, entre risos e gritinhos de satisfação, a molecada
corria. Enorme e desengonçada, os braços esticados à frente feito a cuca, Maria
Pereira chispava atrás. Os mais arteiros puxavam sua saia estampada revelando,
por instantes, o rapaz de short e camiseta que manipulava a boneca. Da calçada
do Bradesco, eu observava a criatura girando, girando, indo e vindo... quase
esbarrava nos galhos desnudos do ipê da praça, na amendoeira que sombreava a
banca de jornal.
Sem tirar
os olhos da Maria, eu chupava picolé. Na mente rodopiava a história que ouvira dias
antes. Ao sair da padaria, vi um homem e um menino de mãos dadas. Tinha mais ou
menos a minha idade, comia Surpresa e olhava para a direção em que o homem
apontava. “Lá, naquela casa roxa de janelas amarelas, mora a mãe da Maria
Pereira”. Talvez para refrescar a memória do menino, arrematou: aquela boneca
que só sai de casa no carnaval. Eu conhecia a senhora que morava do outro lado
da rua; contudo, até então ignorava que ela concebera uma boneca de pano, tal
como fizera tia Nastácia. Fiquei encucado: gente de carne, osso e cabelos
brancos podia ser mãe de boneca, ainda mais boneca gigante, de cabeleira
colorida, que saía apenas no carnaval para correr atrás da criançada e rodar a
longa saia? Minha cabeça girou como lápis no apontador... até esqueci de comer
meu Skiny.
Enquanto
os meninos corriam na praça e tropeçavam nos paralelepípedos, aquela questão
voltou a martelar meu pensamento. Encantado, eu matutava... O picolé derretia; um
pingo travesso pingou no meu pé. A cabeçorra da Maria Pereira ultrapassava a
fiação dos postes, parecia tocar o céu. Outro pingo; desta vez caiu no matinho
que crescia no meio-fio. Maria corria em frente à papelaria da Odila; os meninos
insistiam em puxar sua saia; os medrosos ficavam nos bancos da praça
escancarando as janelinhas, comendo pipoca, soprando bolas de chiclete...
Perdi o
rumo das lembranças quando uma moto rasgou o silêncio da tarde. O sino da Santo
Antônio marcava o tempo, o vento brincava na árvore da escola e, no chão, a
revistinha jazia com as páginas abertas.
*Agradeço ao Centro Cultural de São Geraldo que, gentilmente, me enviou a foto abaixo.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do Centro Cultural de São Geraldo/MG
Nenhum comentário:
Postar um comentário