domingo, 3 de outubro de 2021

Meu querido diário

 

 

      Lembranças dos tempos de escola brotam, inesperadamente; durante o banho, olhando a paisagem pela janela do ônibus, ao vestir o pijama, lendo revista, vendo televisão, no caminho de casa após um dia burocrático... também ao escrever. Sentado diante de uma folha em branco, quase sempre as memórias escolares, afoitas para se converterem em palavras, desfilam por minhas retinas. Hoje falarei de uma dessas memórias salientes que, volta e meia, insistem em virar vocábulo, ganhar vírgulas e pontos: lembranças de quando eu tinha que escrever um diário.

         Sim, na época do primeiro grau tive que registrar diariamente as coisas que fazia. Todavia, morando em uma cidade pequena e levando uma vida rotineira - alguns dirão apequenada – eu não tinha grandes feitos para narrar. Noutras palavras, não corria o mundo vivendo aventuras intrépidas e extraordinárias como as do Jonny Quest, Tio Patinhas ou Tintim. Então, só dando trato às bolas para conseguir manter um diário cujos relatos não se repetissem feito minha vida. Como precisava escrever para mostrar à professora e cumprir minha obrigação estudantil, eu inventava.  

         Por quê, diabos, você tinha que escrever um diário, indaga o leitor. Exigências de Dona Edith Fois, que justificava: diários exigem disciplina para escrever; só se aprende a escrever, escrevendo; escrita é prática. Não tendo outro jeito, lá ia eu contar, ou melhor, inventar sobre o cotidiano. Com o caderno brochura à mesa, a caneta a postos, a má vontade estampada na cara e meus resmungos ricocheteando nas paredes, eu tentava preencher as vinte e poucas linhas exigidas. Para isso, recortava e colava entre os parágrafos tiras de jornais ou revistinhas para ocupar a folha... e, claro, me esforçava para fazer “letra decente, letra de gente e não essas bostinhas de barata que você escreve” dizia D. Edith, para deleite dos colegas de classe.

         Eu odiava escrever o diário. Aqui não há exagero de cronista, não. Eu odiava mais o diário que as equações de matemática, a xaropada das aulas de religião, a educação física... Talvez por conta daquela obrigação cotidiana, criei certa resistência às aulas de português; e não escondia isso de ninguém (nem do próprio diário). Contudo, passados mais de vinte anos, vejo que a elaboração daqueles textos foi importante à minha formação. Enquanto eu copiava versos, descrevia o clima e as tarefas de casa, narrava as brincadeiras de rua e resumia os programas que assistia na tevê, eu estava, sem perceber, desenvolvendo minha escrita. Mesmo sem um assunto empolgante - como na maioria das vezes -, a obrigação de escrever me exigia atenção à qualquer coisinha, porque ela poderia virar o mote para o texto do dia. Os diários me impuseram disciplina, me estimularam a observação; acho que são a base para as crônicas que escrevinho atualmente. Por isso, quando escrevo, é inevitável lembrar D. Edith e os diários.

         O tempo consumiu os cadernos; restou um, que compreende os meses de junho a dezembro de 1997. Das páginas já amarelecidas transcrevo a seguir o registro escrito às 14:30 horas do dia 05/08, uma terça-feira. Peço ao leitor que releve os errinhos de pontuação e concordância, afinal, é o texto de um menino de quatorze anos. E, nessa idade, tudo é permitido a um menino, inclusive desvios gramaticais.

         “Hoje o dia está ventando muito. Fui para a escola (pois começou as aulas ontem) e imaginem só: a aula começou com a pior aula de todas – a aula de Português. Quando vi a professora entrar, vi que o dia seria terrível.

         Foi quando o que eu temia aconteceu: ela abriu a pasta de papéis e tirou duas folhas de exercícios.

         Tive então uma idéia supimpa: Tomara que esse exercício seja feito como Para Casa! Mas não foi bem assim. Tivemos que fazer lá, ou seja, não ia dar tempo mesmo, mas tinha que começar lá. De repente: TCHAM, TCHAM, TCHAM (adoro esse som) eu senti uma baita fome. Olhei para dentro da mochila para ver se encontrava algum resto da merenda, mas nada. O dia não estava para mim!

         Quando tocou o sinal saí mais que depressa, correndo feito um crazy! Ufa! Que bom voltar para meu lar doce lar!”

 

        

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

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