domingo, 31 de julho de 2022

Inverno em Beagá

  

            O sol não decide se vai ou se fica, a brisa não me deixa esquecer: ainda estamos no inverno. E que inverno! Há anos, não sentia tanto frio. A manhã se arrasta, abro o Estado de Minas: Vera Fisher é furtada na Feira Hippie. A que ponto a criminalidade chegou: não respeita sequer a deusa Vera. Por essas e outras, quero distância de Beagá (e das cidades grandes, em geral). Percorro os quatro curtos parágrafos da matéria, recordo a primeira vez que fui à capital... faz tempo, muito tempo, eu ainda não tinha fios grisalhos... Como eu dizia, fui à capital, convocado a participar de um curso de capacitação. Era também inverno, não tão rigoroso quanto o deste ano, mas em algumas vezes, sobretudo à noite, o vento uivou feito um cão danado.

            Domingo cinzento. Desembarquei na rodoviária, com o propósito de, nos dias seguintes, ir apenas do hotel às aulas e das aulas pro hotel. Peguei o táxi; faz favor, me leva até o Othon Palace, um amigo está me esperando lá. Antes de viajar, me recomendaram: fala que alguém te espera no lugar, assim, o motorista não vai rodar por ruas e avenidas a fim de encarecer a corrida... Pouco espiei pela janela, para não dar pinta que era a primeira vez que circulava pela capital. Nada de ficar olhando feito jeca pros prédios, me aconselharam.

            O taxista perguntou de onde eu vinha; de Juiz de Fora, menti. Pensei: se digo que sou de um lugar que nem está no mapa, provavelmente achará que sou um bocoió e vai querer me engambelar. Sorriu pelo retrovisor: ah, conheço, conheço muito. Senti um frio na barriga: ai, se esse sujeito começar a falar com intimidade em Juiz de Fora perceberá que, exceto o Parque Halfeld, não conheço mais nada lá... Para minha sorte, só comentou: é a cidade do Itamar, né, grande presidente; tivesse mais tempo pra governar, teria feito grandes coisas, não era como esses políticos de hoje. Assenti, aliviado. Ele mudou o rumo da prosa: a chuvinha que caiu ontem veio pra trazer mais frio.

            Hospedei-me perto do local onde Vera ficou sem sua bolsa. Preenchi a ficha, do hotel não saí. É ruim que vou perambular por essas ruas desertas, ruminei, enquanto desfazia a mala. Passei o resto da tarde a janelar, roendo Fandangos.

            A segunda-feira chegou com um alerta (na verdade, a confirmação do que eu previra): a professora, lá pelas tantas, aconselhou-nos: evitem zanzar pelo centro tá, pessoal; ano passado, uma turma do interior veio fazer esse curso e teve uns contratempos nas imediações do parque, e uma moça levou um susto aqui mesmo, na Afonso Pena.

            Como diz o velho ditado, para o bom entendedor um pingo é letra. E, como canta o Toquinho, com dois pingos tenho um guarda-chuva. Resumindo: captei a mensagem da professora e, já decidido a não dar bobeira, todos os dias eu fazia o trajeto de ida e volta com cara de mau para intimidar qualquer criatura, passava mais rápido que o Ligeirinho pelas mesmas calçadas, não me dava sequer o direito de olhar as vitrines.

            Uma vez protegido no aconchego e quietude do quarto, me debruçava na janela, olhava a vastidão pontilhada de neon. À medida que a noite avançava, carros e pessoas rareavam, as pernas pediam descanso. Ligava a televisão, pulava de canal em canal evitando os noticiários que certamente falariam em balas perdidas, assaltos, mortes, tragédias... nunca torci tanto para a semana voar, nem nos tempos de escola quando rogava aos céus pelas férias.

 Todavia, o tempo, tinhoso, custou a passar. Certo dia, colegas de curso me convidaram para um rolê. Vou não, agradecido, tô cansado. Menti, estava cansado nada; mas arriscar pra quê, sussurraram-me, em uníssono, a Senhora Cautela e o Senhor Receio.

Finalmente, o sábado chegou. Faz favor, pra rodoviária, o mais rápido possível, tá quase na hora do meu ônibus, disse ao taxista. Colou, paguei praticamente o mesmo valor da ida. Desci, ignorei um esquisito que veio oferecer não sei o quê, tomei chá de cadeira até às dezoito horas.

Embarquei, ileso. Ao contrário de Vera, que voltará para casa sem a carteira e os documentos, regressei com meus pertences, intactos, na mochila.

Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor

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