As ruas, desertas, como todo domingo; alguns habitués nos copos-sujos da vida, poucas senhoras às janelas (parece-me, rareiam as senhoras que janelam: talvez seja o frio, talvez ainda medo do vírus, vai ver foram também arrastadas pela avalanche dos smartphones e WhatsApp). Vesti o moletom, "saí pela cidade, me sentindo um jovenzinho" como o Rei cantou naquela canção, fui assistir Thor: Amor e Trovão.
Na bilheteria, um cabeludo imberbe quer pagar meia: tô na facul já, mas esqueci a carteirinha. A moça, certamente cansada de ouvir estórias parecidas, sai da cabine, vai conversar com o careca emburrado que recolhe os ingressos. O rapazola tira o celular do bolso, os dedos nervosos correm pela tela. A porta range, a moça vende a meia-entrada. Ele sai, rindo, como se tivesse adquirido o ingresso para o Valhalla. Próximo.
Inteira, peço. Risinhos atrás de mim. De esguelha, vejo três mocinhas elegantes: cobra, jacaré, elefante... perdão, leitor, não resisto ao chiste. Levam as mãos aos cabelos tingidos em vários tons, ajeitam as madeixas e, como bobas alegres, não param de rir. Pago, saio apressado, me esqueço de comprar as pipocas.
O careca emburrado não responde ao meu boa tarde, recolhe o ingresso, exige o RG de alguém atrás de mim. Subo com dificuldade os degraus: ou está escuro demais ou são esses óculos novos, resmungo, agarrando-me ao corrimão.
Sala cheia, falatório intenso, parece estádio de futebol em final de campeonato. Vozes de taquara rachada, gritinhos, risinhos, piadinhas típicas de ensino médio. Imagino rostos cheios de espinhas, alguns mal barbeados, bocas nervosas mascando chicletes, olhares cobiçosos em cima daquelas meninas que, desenvoltas, sobem pela escada onde quase tropecei... troco de fila.
Entram outras meninas; um garoto desengonçado, de óculos e franja, me lembra da foto que tirei na formatura da oitava série. Um sujeito corpulento adentra a sala de mão dada com uma criança - felizmente, não sou o único coroa presente, penso. Uma mulher de trinta e poucos, com um balde de pipocas suficiente para saciar a fome de Asgard, senta-se duas poltronas à minha frente.
Os trailers colorem a tela, a molecada não faz silêncio. Um grupinho para ao meu lado. A loirinha diz: aqui não dá, véi, a gente somos quatro e só cabe três aqui. A frase aferroa minh’alma. O carinha de jaqueta cutuca o garoto que traz HELLFIRE CLUB estampado na camiseta: pede pro moço arredar pra outra poltrona, aí cabe todo mundo. Finjo prestar atenção aos trailers. Pelo menos, não me chamou de tio ou senhor: estes epítetos pesam-me tanto...
O grupinho parlamenta, a loirinha decide: vocês dois sentam aí, eu e Simoninha sentamos atrás. Oh, Odin, como odeio nomes no diminutivo! Os moleques se jogam nas poltronas, abrem latas de Coca e embalagens de Cheetos... o garoto da camiseta do inferno se esparrama, rela o braço no meu moletom.
Se você vai ficar no celular, pra quê que veio então, a loirinha indaga. Simoninha, sem desligar o aparelho, quer saber quanto tempo dura o filme. A merda da luzinha começa a me incomodar... Papai, quero ir no banheiro. O sujeito passa à minha frente, a criança tropeça no meu tênis, me mostra a língua. Os adolescentes riem. A cena na tela é trágica, então, só podem estar rindo de mim, concluo.
O filme prossegue, ainda não entendi do quê morreu a menina, ou se morreu mesmo: o homem passou com a pestinha na hora, não pude ver direito a cena... Thor é presenteado com um par de bodes que gritam sem parar, parecem histéricos. Presente de grego. Sinceramente, não sei o que é pior: os bodes ou a loirinha aqui atrás que dá gaitadas toda vez que os bichos gritam... Em horas assim, anseio pelo Ragnarok.
Agora, Thor desafia Zeus (o roteiro mistura todas as mitologias, Jesus). Em fúria, o onipotente olimpiano despe as vestes do asgardiano. Thor, nuinho em pelo, arranca suspiros de alguém duas poltronas à frente. Aqui atrás, Simoninha quer saber: vai mostrar de frente. E pensar que ainda a pouco não se interessara pelo filme... Safadinha, essa Simoninha. Os deuses discutem, se enfrentam. Uma personagem é ferida pelas costas, alguém lá no fundão grita: filho da puta. Os adolescentes ao meu lado riem.
A aventura caminha para o fim, o homem e a criança passam de novo. É a quarta vez e, pela quarta vez, ela bota a língua pra fora: deve ser piriri. Bem feito.
O filme cumpre seu papel, entretém: cenas ágeis e divertidas, o eterno embate entre o mal e o bem rende boas sequências; no final, o herói vence, embora não possa viver seu grande amor.
Saio do cinema com uma certeza: fiquei velho. Velho e impaciente. Senti o mesmo, há uns anos, quando assisti à derradeira sequência de Os Vingadores: o cinema estava lotado de crianças e adolescentes que não calavam a boca. Pra piorar, dei o azar de me sentar perto de um nerd idiota que ficou o tempo todo comparando o filme às HQs para impressionar as moças ao seu lado. Definitivamente, meu negócio é assistir filme em casa.
Encontro Hermenegildo sentado na calçada, ouvindo o jogo pelo rádio. Relato-lhe o acontecido. Como o Mestre Ancião, mira a rua vazia, uma pipa presa nos fios da rede elétrica, sentencia: o tempo passa, a gente envelhece, e isso é terrível. O locutor grita gol. Hermenegildo, do alto de seus quase cinquenta anos, sorri. Deve saber o que diz, penso. E isso é terrível.
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor
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