domingo, 21 de agosto de 2022

Outro texto

 

Estava preparando a crônica desta semana (um pouco atrasado, reconheço, normalmente no sábado já tenho o texto praticamente pronto) quando estaquei: além de ter uma frasezinha a inquietar-me os ouvidos, senti falta de um sinônimo. Levantei-me para retirar o Aurélio da estante. No criado-mudo, sobre o Crime e Castigo, meu celular me atentou: vem me usar, vem! Feito a Alice, que não resistiu à mensagem de “beba-me” contida no frasco misterioso, passei a mão no aparelho.

Deslizando pelo feed do Facebook, deparei-me com a triste notícia: faleceu Cláudia Jimenez. Agosto tem sido um mês de perdas... noutro dia, Jô Soares partiu para o andar de cima, hoje é a Cláudia que embarca.

Como dizia aquele personagem da Escolinha: quando eu era criança pequena lá em Barbacena... Bem, não cresci em Barbacena, mas noutras bandas do interior e, portanto, também usufruí da plena liberdade de zanzar pelas ruas a qualquer hora, sem riscos. Isso, todavia, não me impediu de passar horas e horas na frente da televisão, afinal, nunca fui o tipo rueiro, como se dizia na época. Largado no sofá, ou deitado no tapete da sala, assistia de tudo: filmes, novelas, seriados, desenhos, programas de auditório... ainda não tinha que ganhar o pão e, graças aos céus, desconhecia a rotina da burocracia. A gente era feliz e não sabia/ pensava só em festa todo dia cantavam The Fevers no radinho que a mãe deixava em cima da geladeira.  

 Ainda de pé no meio do quarto, li a notícia. Rapidamente vieram-me à mente as personagens vividas por Cláudia Jimenez, artista marcante na telinha nos anos 1990: a fogosa Dona Cacilda, que lascava seu “beijinho, beijinho e pau, pau” para provocar o pobre professor Raimundo; a debochada Edileuza, uma espécie de faz-tudo do Largo do Arouche; a garçonete Bina Colombo que me arrancava boas risadas com o bordão “tô podendo” e até me fazia esquecer o maior mistério de 1998: quem explodiu o shopping de Torre de Babel.

A televisão, alguém já o disse, cria um mundo de sonhos, fascina. De repente toda aquela gente, diariamente, entra em nossos quartos e salas, partilha de nossa intimidade, convive conosco como se membros da família. Aliás, não raro, são mais presentes que muitos parentes: uma vizinha, viúva e sem filhos, me disse certa vez: a televisão é minha companhia, deixo ligada até madrugada, dou boas risadas com os programas... Cláudia Jimenez, durante anos e anos, frequentou minha sala, me divertiu, me presenteou com seu sorriso aberto e carismático.

Corre na internet que, em seus últimos dias no hospital, Jô Soares, parafraseando Edmund Gwenn, teria dito: viver não é problemático, difícil é fazer humor. Realmente, arrancar um riso do outro não é tarefa simples, sobretudo, porque há mais motivos para chorar que rir. A comédia é a maior das artes e ao comediante os deuses conferem a virtude de espalhar alegria e despertar sorrisos. Por isso, poucos são os eleitos, como Jô, Chico Anysio, Golias. E Cláudia.

O humor critica, provoca, incomoda, alegra, desentedia, desanuvia... Num dos livros de Jô que guardo desde os tempos de garoto, há a seguinte citação: Humor não é um estado de espírito, mas uma visão de mundo. Quando li o livro pela primeira vez, não sabia quem era Wittgenstein; hoje, através do Pai Google, descobri: foi um filósofo austríaco. E continuo concordando com sua frase.

Por ocasião do falecimento de Gilberto Braga, escrevi: se existir televisão no céu, espero que eu chegue lá no dia que estiver passando uma novela sua. Hoje, complemento: espero que, nesse dia, antes ou depois da novela, esteja no ar um humorístico com a Cláudia, daqueles bem estereotipados, com bordões, claques e chistes para eu relaxar da viagem e me sentir em casa.  

Desligo o celular. Basta de notícias tristes. Em vão, retiro o dicionário da estante: já não quero mais sinônimos, não me importa aquela frasezinha. A crônica, por ora, ficará inacabada. Neste sábado frio e acabrunhado, preciso começar outro texto. 



Texto: Raphael Cerqueira Silva 

Foto: acervo do autor 

 

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