Vou distraído pela
calçada ouvindo Simone.
“Gás de cozinha, cem
real. Isso mesmo, só cem real!” Entre chiados e vilipêndios gramaticais, o
alto-falante anuncia a promoção. O caminhão passa, vagarosamente, levando os
botijões e a voz fanha.
Aumento o som.
Tento não pensar no
sobe-e-desce dos preços: você vai ao mercado, o produto custa X; retorna amanhã,
custa X+2; daí a alguns dias cai pra X+1 para, no dia seguinte, saltar para X+3...
“PROMOÇÃO”, “OFERTA” insistem as letras vermelhas nos cartazes espalhados pelo
mercado. Na minha terra isso tinha outro nome.
O caminhão do gás,
que agora dobra à esquerda, também vive nessa roda-viva. Aliás, quem não vive?
Já posso baixar o
volume.
Em dueto com Simone,
pareço um besourão com amigdalite. Mesmo assim, canto. Para não pensar na
inflação, na fatura do cartão, na xaropada da burocracia e, sobretudo, para não
pensar no joelho. Que dói, depois das extravagâncias no treino: tentando
impressionar certa pessoa que malhava ao meu lado, abusei dos exercícios. É o
preço que pagamos por nossas, digamos, vaidades bestas.
Retomo a marcha pela
calçada. E quase piso na pipoca que, laboriosamente, vai ladeira acima.
Lembro-me da fábula:
as formigas já começaram seu mister. Unidas, somam forças para carregar o
troféu. Deram sorte: fui eu a passar neste momento. Fosse um apressadinho
qualquer, desses que andam como se tivessem as asas de Hermes nos calcanhares, teriam
sido esmagadas junto com a pipoca.
Observo a fileira de
operárias. A Cigarra continua seu canto melodioso em meus ouvidos.
Súbito, feito a M60 do
Rambo, uma moto dispara: “hoje! é hoje a grande inauguração da Pizzaria Mamma
Mia!”.
Tento lembrar a
última vez que saí para comer pizza. Afinal, convenhamos, pedir pizza ou
qualquer outra coisa pelo Ifood não é o mesmo que sair para comer... Ainda que
o estabelecimento esteja lotado, que as pessoas se esgoelem ao conversar, que o
cantor continue entoando seu canto “não importando se quem pagou quis ouvir”,
ainda que ao cabo da noite cobrem um absurdo pelo lanche que só servirá para
aumentar a circunferência abdominal e o peso da consciência...
A moto avança o
‘PARE’ quase apagado, leva o retrovisor do Onix. Junto, minhas conjecturas.
O motorista xinga. O
motoqueiro acelera, escapole pela travessa.
Esquecido das pizzas
e formigas, sigo meu caminho.
Vou cantando, antecipando-me
aos festejos natalinos: O ano termina e nasce outra vez... Recordo
aquela noite no Central. Simone desfilou grandes sucessos para comemorar seus cinquenta
anos de carreira. Uma noite memorável. Preciso escrever sobre, penso.
Meus pensamentos
novamente interrompidos. Agora, pelo Oran. Outros pensamentos, contudo, me
assaltam: curioso passar por aqui, não é seu trajeto... Lenta e ruidosamente,
ele sobe. Uma fila de veículos se formando logo atrás. Sem o saber, o velho
ônibus despertou-me reminiscências:
Muitos anos me
separam daquele garoto que ia e voltava no Oran. Ia sonolento, voltava faminto no
uniforme amarelo e preto. (Hoje, o sono rareia. E a fome? Estrangulo-a com
biscoitos e doces, poderosíssimos aliados das pizzas na invencível Batalha das
Calorias). Mas, aquele garoto franzino e quatro-olhos sequer sabia o que eram
calorias: suas preocupações bem diferentes dessas que me afligem atualmente: contas
a vencer, cabelos rareando, metas burocráticas, amores não vividos, outros tantos
fracassados...
Aquele garoto, “leve
buço lhe sombreava o lábio”, sempre levava um livro nas mãos. Às vezes, lia-o durante
a viagem; noutras vezes, impiedosas, as pálpebras impediam-no. Vejo-o na dura
poltrona, cabelos fartos em desalinho, o Noite na taverna xerocado em
seu regaço, a cabeça tombada... ainda lê as mórbidas e poéticas frases de
Álvares de Azevedo, ou capitulou ante o poderio de Morfeu? Ao lado, a Company
cinza, que o pai comprara, no crediário, em prestações a perder de vista.
Dormindo ou lendo, certamente, preocupações rondam-no: testinhos semanais,
equações matemáticas, fórmulas químicas, leis newtonianas, orações subordinadas
substantivas, problemáticas envolvendo senos e cossenos e catetos e hipotenusas...
O ônibus, a custo,
vence a ladeira. Vai sentido cemitério. Para onde também vou.
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