Era
uma turma de quase cinquenta graduandos. Poderiam ter sido sessenta e cinco, se
alguns não tivessem desistido ao longo do caminho, trancado matrícula, transferido
de curso... Quase cinquenta alunos e ele sabia: seu nome seria um dos últimos a
ser anunciado. Já se acostumara: foram inumeráveis aulas, ao longo dos longos
cinco anos de curso, que esperou ansiosamente para responder às chamadas dos professores.
Sentado na quarta fila, sabia, tinha muito que esperar. Não
só para subir ao palco e cumprimentar o reitor, o diretor, o paraninfo e alguns
professores, mas também para ter em mãos, definitivamente, o diploma. Sim,
porque o que estavam entregando naquela tarde não era o diploma, e sim uma
certidão de conclusão do curso. Impressa em folha A4, assinada toscamente por
alguém da burocracia, dobrada em três partes para caber no envelope branco.
Estalando os dedos, observava os colegas retornarem aos seus
assentos: abriam o envelope, desdobravam o papelote, liam – ou fingiam ler – os
termos da certidão, tornavam a dobrá-lo e guardá-lo. Digo, estalando os dedos,
porque ele nunca foi muito fã desses momentos em que se via protagonista.
Quando havia seminários e trabalhos para apresentar, tremia e suava, às vezes gaguejava,
a ponto de algum professor mais camarada intervir: “relaxa, ainda não é a apresentação
da monografia”. E ele tremia mais ainda, só de pensar que, ao cabo da
graduação, teria que apresentar a tal monografia.
Felizmente, os deuses conspiraram e não foi preciso
apresentar ou defender qualquer coisa: uma mudança na burocracia da instituição
passou a exigir, apenas, que os formandos entregassem o TCC. Que, se aprovado,
os libertariam da vida acadêmica... Foi o que pensou, já de saco cheio com
provas, professores, chamadas, seminários, trabalhos em grupo, reuniões do
fundo de formatura... No meio de tanta chatice, enfim, uma notícia boa, concluiu.
Entregue o TCC, sem precisar sequer dizer: “ó, isto aqui é sobre ‘As mazelas do
sistema penitenciário e suas consequências na (des)valorização da pessoa humana’,
ele recebeu o protocolo, se mandou para casa.
Agora estava ali. Suando e tremendo, o coração acelerado,
esperando sua vez. Que, feliz ou infelizmente, chegaria. Afinal, a fila anda.
Só não gaguejava porque estava em silêncio, olhos atentos no vaivém do palco. Não
gaguejava, ainda: ele sabia que, uma vez lá em cima, teria que falar qualquer
coisa ao cumprimentar os componentes da mesa. Ia se embabanar e gaguejar, tinha
certeza. Diria apenas boa noite e obrigado. Palavras curtas, errar seria quase
impossível.
A fila andou. Anunciaram seu nome. Passou pelos colegas,
sentiu que pisou no sapato de alguém. O coração acelerado parecia querer rasgar
o peito e voltar à cadeira desconfortável que ainda a pouco abrigara seu corpo suado.
Subiu os seis degraus de madeira, esbarrou o cotovelo no jarro de flores. A oradora
correu em socorro do jarro que, por pouco, não tombou lá embaixo. Ela sorriu,
ele baixou a cabeça.
Mais alguns passos pelo tapete vermelho... cafonice, pensou, sentindo
o rosto ainda afogueado. Parou diante de um homem de ar circunspecto. Naquele
momento, já não lembrava o nome e/ou o cargo de nenhuma daquelas personagens. Sentiu
a mão fria do sujeito tocando a sua, suada e trêmula. Passou adiante. Ao
receber o cumprimento do segundo
componente da mesa, deu por conta: tinha um envelope branco na mão. Passou-o
para a esquerda, para receber o novo cumprimento. Tremeu, dessa vez de espanto:
o baixote à sua frente parecia o bruxo Ravengar, que tanto medo lhe despertar
na infância. Balbuciou um ‘brigado’ e, caminhando adiante, sentiu-se ridículo: gaguejara
mesmo tendo dito só uma palavra, e ainda por cima incompleta... Uma mão de
longos dedos finos que terminavam em esmaltes escarlates lhe cumprimentou. Ele
nada disse, seguiu.
Enfim, de volta à cadeira, suspirou aliviado. Agora sabia o que
um náufrago sente ao encontrar uma tábua em alto mar. Por um momento, achou que
aquela via crúcis não teria fim... Ainda mais quando se aproximara da última
pessoa para cumprimentá-la e tropeçara numa dobra do tapete e, por pouco, não beijou
o chão... Sentado na cadeira, indagou-se: “quando me apoiei na mesa, não
derrubei um copo?” Na hora, pareceu ter ouvido vidro se quebrando.
Os nomes continuaram a ser anunciados. Secou as mãos na beca,
abriu o envelope. Vazio. Piscou os olhos, como se assim a certidão se materializasse
ali dentro. “Coisas do ardiloso Ravengar”, pensou, tornando a olhar o palco.
Selidônia
comentou: “Ah, o seu também veio vazio!”
Ele franziu o cenho, encarou a colega sentada ao seu lado.
“Tô
com as mensalidades do último semestre todas atrasadas. Meus pais divorciaram,
aí ficou aquela confusão lá em casa pra saber quem ia pagar os boletos... Acabou
sobrando pra mãe. E pra mim também, porque tive que ajudar com o que ganho no
estágio. Mesmo assim, as últimas mensalidades a gente não conseguiu saldar.”
“Eu
estou em dia com os pagamentos. Tanto que me deram um nada consta na tesouraria”,
retrucou, notando condescendência e sarcasmo no sorriso de Selidônia. “Essa vai
dar uma ótima promotora de justiça”, concluiu, amassando o envelope.
A beca o incomodava, o capelo não parava no lugar, aquela
falação de nomes anunciados o irritava, os aplausos e cochichos do público tiravam-o
do sério... Súbito, levantou.
“Não
pode ir embora. Lembra que o diretor falou que se alguém saísse antes da hora,
ele ia anular a colação?”, Selidônia alertou.
“Dane-se!
Pra todos os efeitos, não formei mesmo”, vociferou, lhe mostrando o envelope entre
os dedos.
Selidônia
ainda tentou retê-lo, ele puxou a beca, furioso; passou pisando nos sapatos dos
colegas, trombando em seus joelhos e pernas... no meio do corredor, puxou a
beca e, feito a Cinderela à meia-noite, fugiu.
No estacionamento, extravasou a raiva pulando e sapateando em
cima do capelo. Bufando, telefonou à mãe: “Tô aqui do lado do carro. Vambora!”
Quando os pais chegaram, já havia se despido da beca, aberto
a camisa, arregaçado as mangas. O capelo jazia ao lado da roda. Não quis dar explicações;
recusou o convite do pai para irem à pizzaria e, emburrado, ignorou os comentários
da irmã:
“Um jarro tão bonito... quase foi espatifado por esse desastrado, cês viram?”
Texto: Raphael Cerqueira Silva
Foto: acervo do autor
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